Ensaios
1.
Nelson Cavaquinho é o Ingmar Bergman do samba;
AC/DC, os James Browns do metal;
Marcelo Nova foi o Toquinho do Raul;
o seu Francisco (a duas quadras daqui de casa)
é o Shakespeare dos pastéis; Ramones
são Beatles arruaceiros; Faulkner, um pedreiro
experimental; Lou Reed é um Frank Sinatra
roto; Carver é Hooper (em formato conto);
Tom Zé é um misto de Marcel Duchamp
com Jackson do Pandeiro; Seinfeld é Homero.
2.
Beatles é uma perfeição
a que a humanidade
raramente chega.
É Tchékhov, Rilke, Pelé
e Coutinho, Nonas
Sinfonias, Ilíadas, Catherine
Deneuves, pirâmides
egípcias de três minutos.Bruxismo
Isto podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por
exemplo. NÃO, não uma bebedeira, mas o começo
encantador da embriaguez. Um dia bom, qualquer
motivo, a vida irrigando o corpo com nicotina.
Podia ser uma baleia encalhada na praia
do amor. Um pote de raiva esquecido no sótão.
Podia ser uma antena em estado de coma.
Ou cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo
desolado por não estar com sua câmera
naquele momento. Ou um menino sentado
na ponte, balançando os pés ao som de si mesmo.
Podia ser uma seleção de crônicas publicadas
em lugar nenhum. Um deus discotecando
instantes. Um hidrante aberto no agora.
Podia ser uma mulher suspendendo a barra
da calça para saltar uma poça. Aqueles insetos
que morrem após a picada. Uma adega de
ausências que o tempo elabora. Podia ser
um exame que, buscando uma coisa, diagnostica
outra. SIM, podia ser isso tudo. Uma solidão
acesa no abajur da melodia. Um macaco
se olhando na água no primeiro dia do mundo.Cabaré
para Paulo de Tharso (in memoriam) e Ester Laccava
E se apenas cantássemos
como dois cansaços
num “deserto sem bússola”?
E se inscrevêssemos nosso sopro
na vidraça suja do mundo?
E se parássemos
de gastar nossas fichas nesta máquina?
E se apenas fingíssemos
como dois copos tingidos
de vinho no fundo?
E se nos anunciássemos
com bocejos sinceros em reuniões de negócios?
E se apenas sangrássemos
feito fiapos de riso
que escapam do choro?
E se topássemos, entre abandonos,
com o prenúncio invisível
de um poema lindo?
Resistiríamos, desistindo?Desassossegos
García Lorca
olhando uma mariposa
afogada no tinteiro
Brian Wilson
sentando ao piano
depois de escutar Rubber Soul
Lucia Berlin
na enfermaria
da simplicidade
Cartier-Bresson
fotografando
a eternidade
Alejandra Pizarnik
terminando sozinha
o que ninguém começou
Murilo Mendes
vendo a cidade cair
das prateleiras do céuCinecittà
Sabe aqueles sonhos em que você entra num consultório e quem te atende é a desconhecida que acendeu seu cigarro ontem à tarde? Depois você sai de lá e dá de cara com a praça em que brincava de balanço na sua infância? Aqueles posts que merecem curtidas tanto da sua tia Marta quanto de escritores que você admira? Você pode, quem sabe, recorrer a Freud no primeiro caso. No segundo, considerar, vá lá, um atestado de qualidade um texto conseguir chegar a dois planetas tão díspares – de algum modo, ele resvalou no nervo de algo, você pensa. Mas, posto em perspectiva, o que fica talvez seja apenas isso: sua vida, quando muito, não passa de um bairro maluco.