Mário Chamie

Agiotagem


um
dois
três
o juro:o prazo
o pôr / o cento / o mês / o ágio

p o r c e n t a g i o.

dez
cem
mil
o lucro:o dízimo
o ágio / a mora / a monta em péssimo

e m p r é s t i m o.

muito
nada
tudo
a quebra:a sobra
a monta / o pé / o cento / a quota

h a j a   n o t a
agiota.

O TOLO E O SÁBIO


O sábio que há em você
não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.

Sabe que não se vê
o tolo que não sabe
o que há de sábio em você.

Mas do tolo que há em você
não sabe o sábio que você vê.

Espaço inaugural


O espaço que se mede
e que se perde
não é o tempo perdido
da memória.

Esquece.
O tempo que se perde
é o mesmo que fenece
a cada hora.

Na hora do homem
em casa.
Na hora do homem
na rua.
Na hora do espanto
desse homem
sem tempo
no espaço de cada canto.

Mas o cansaço do tempo
que se perde
não impede o espaço
que se inaugura.

O espaço do homem
na praça.
O espaço do homem
em luta
com a fúria de outro tempo
sua surda fúria muda.

A língua


Os lábios se gastam.
O escuro os prende
enquanto a língua
revira a esponja
do verbo prenhe
que diz a longa
missão de légua
por entre a vária
paixão sem leme.
 
A língua espanta.
Contém saliva
hidrato e fera.
Contém a festa
do bicho em viva
espécie de meta
que se diz salva
na hora avessa.
Vão susto rude
que nos desperta
da baba espessa
de sermos queda.

A língua queima.
A língua enxuga.
Mário a externa
na risca e ruga
do rosto, emblema
lançado à área
da só angústia,
já quente areia
que a chuva mansa
caída amena
amaina e suja.

Sempre a temos.
Cio depois véu
excita os remos
das vozes naves.

Em vão, Orfeu,
na voz dos ventos
(a nau das bodas)
soprou na lira
as águas leves
do mar Egeu,
falando a língua
das noves penas
do seu inferno,
das nove cordas
do seu mistério
que excita as aves.

O escuro a chama.
A língua despe.
A língua lambe
pelos morenos,
monte de vênus.
A língua fere
no som, na carne
que me reflete
homem sem norte.
Pois uso o termo
que já expresso,
rasgada a veste
que fecha o corpo
que fecha a fonte,
fechado esquema
da podre frase
que nos condena.

Língua, vírus, légua
esponja e régua.
Eu Mário, a fala.
Ela, a nossa carta
com o jogo inverso
de me ser forte
se me dispersa,
se me concentra
se me constata
a força exata
de não ser trôpego
nesta palavra
de fogo e fôlego
sem breu nem treva.

Acesa flecha,
liberta fera.

Os meninos


Verde, verde grama.
Negra, negra madrugada.

– Nas entranhas
dos meninos,
recém-vindos,
um rio corria
para serem ágeis
como pedras lavadas.

Negra, negra madrugada.
 
– Todavia,
o que corria
pela estrada
era o duro
vento frio,
negro sopro
d’água parada;
poça d’água
morto rio
que secava
nas entranhas
dos meninos
sem mais nada.
Verde, verde,
verde grama.

Negra, negra madrugada.

– Um rosto
em cada poça,
sem cavalo,
sem colheita,
terra batida
e solta,
espantalhos
pela cerca,
morta roça,
os meninos
recém-findos
eram a própria
cavalgada
de cavaleiros
fantasmas
no seu galope
de fome,
feito lobo
feito homem
feito mula sem cabeça
fugindo da noite espessa.

Verde, verde,
verde grama.
Negra, negra cavalgada.