Martins Fontes

Minha Mãe


Beijo-te a mão, que sobre mim se espalma
Para me abençoar e proteger,
Teu puro amor o coração me acalma;
Provo a doçura do teu bem-querer.

Porque a mão te beijei, a minha palma
Olho, analiso, linha a linha, a ver
Se em mim descubro um traço de tua alma,
Se existe em mim a graça do teu ser.

E o M, gravado sobre a mão aberta,
Pela sua clareza, me desperta
Um grato enlevo, que jamais senti:

Quer dizer — Mãe! este M tão perfeito,
E, com certeza, em minha mão foi feito
Para, quando eu for bom, pensar em ti.

Inocência


Criança ingênua, o dia inteiro,
com os meus caniços de taquara,
ficava eu, ao sol de então,
junto dos tanques, no terreiro,
soprando a espuma, leve e clara,
fazendo bolhas de sabão.

Corando a roupa, entre cantigas,
as lavadeiras, que passavam,
interrompiam a canção...
Riam-se as pobres raparigas,
vendo as imagens que brilhavam,
nas minhas bolhas de sabão.

Cresci. Sofri. Sonhando vivo.
E, homem e artista, ainda agora,
me apraz aquela distração...
E fico, às vezes, pensativo,
fazendo versos, como outrora
fazia bolhas de sabão.

E velho, um dia, de repente,
sem ter, de fato, sido nada,
pois tudo é apenas ilusão,
há de extinguir-se a alma inocente
que em mim fulgura, evaporada
como uma bolha de sabão.


Publicado no livro Verão (1917).

In: FONTES, Martins. Poesia. Org. Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro: Agir, 1959. p.73. (Nossos clássicos, 40

A Água Toda Secou até nos Olhos


— Meu culto ao Ceará, Coração do Brasil.

O rio vai morrer, sem que nada o socorra,
sem que ninguém, jamais, bendiga o moribundo.
Morre na solidão, no silêncio profundo,
e o malárico mal o mantém em modorra.

A enfermidade faz que da boca lhe escorra
o limo, feito fel, viscoso e nauseabundo.
E o terror se lhe vê das órbitas ao fundo.
Paralítico jaz na estreitez da masmorra.

Tu só, tu, meu Irmão, que a miséria não vence.
Que suportando a sede, a fome, a febre, o frio,
sem que prêmio nenhum teu martírio compense.

Poeta, herói, semideus, sabes o desvario,
a sobre-humana dor, a bravura, cearense,
de quem se suicidou, vendo morrer o rio.


Publicado no livro Guanabara (1936).

In: FONTES, Martins. Poesia. Org. Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro: Agir, 1959. p.47-48. (Nossos clássicos, 40

Monotonia Rítmica


BORODIN

Era uma noite negra, horrendamente negra,
Horrendamente negra,
como o corvo do Poe, horrendamente negra.

Eu tremia, a gelar, na solidão goiesca,
na solidão goiesca,
inteiramente só, na solidão goiesca.

Nisto, vejo surgir um lívido fantasma.
um lívido fantasma,
um hamlético e longo e lívido fantasma.

Retransido, sem voz, perguntei com os olhos,
perguntei com os olhos,
quem és tu, quem és tu! — perguntei com os olhos —

E o avejão respondeu: — Eu simbolizo o Nada!
— Eu simbolizo o Nada!
E desapareceu... — Eu simbolizo o Nada!


Publicado no livro A Flauta Encantada (1931).

In: FONTES, Martins. Poesia. Org. Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro: Agir, 1959. p.59. (Nossos clássicos, 40

Balada Madrigalesca


À moda clássica, ao sabor
da antiga métrica francesa,
venha brindar um rimador
a uma princesa portuguesa.
Fulgure a pedraria acesa
das rimas rútilas do ideal,
para eu cantar em Sua Alteza
a flor-de-lis de Portugal.

Há nos seus olhos o negror
das noites cheias de tristeza,
e o vivo e cálido esplendor
do sol de Nice ou de Veneza.
E a sua mão tem, com certeza,
o alvor da neve boreal:
É o lírio branco da nobreza,
a flor-de-lis de Portugal.

Pajem galante e trovador,
cumpro, encantado, a doce empresa
de demonstrar que numa flor
se espelha a sua gentileza.
E, com sutil delicadeza,
digo, ao findar o madrigal:
Dona Leonor é, na pureza,
a flor-de-lis de Portugal.

OFERTA

Cheia de graça e de beleza,
Dona Leonor é lirial.
Era uma vez uma princesa,
a flor-de-lis de Portugal...


Publicado no livro Verão (1917).

In: FONTES, Martins. Poesia. Org. Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro: Agir, 1959. p.44-45. (Nossos clássicos, 40