Inquisição
Costuraram sua boca
Com alfinetes
E ele dizia que NÃO
E perguntavam.
E cortaram seus dedos
E o lançaram
Bem no fundo do poço
E ele dizia que não, que não, que não
E seus cabelos cresciam como chamas.
A Cidade
Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar,
Sua coroa, sua trança
de salsugem,
Seu vestido de ametista,
Seu manto de sal
E musgo.
Armada em firme silêncio
Dependura-se dos montes
E tão precário equilíbrio
Se propõe
Que além da porta ou portada,
De janela ou de horizonte,
O que a sustenta é o mistério,
Triste chão, sombra vazia,
Tempo escorrendo das pedras,
Lacerado nas esquinas,
Tempo — sudário e guia.
Mas que fera (ou animal)
Esta cidade antiga
Com sua densa pupila
Espreitando entre torres,
Seu hálito de concha
A babujar segredos,
Deitada entre os meus pés,
Minha cadela e amiga.
Repete esta dureza
Este arfar entre dentes,
Seu pulmão de basalto
Onde a morte respira.
E nas sombras da tarde
Em sangue no poente,
Abre os olhos sem pálpebras
E dança. Em maresia
E estrelas afogada.
E nesta coreografia,
Sopro de antigas paisagens
Um calendário se arrasta,
Nas corroídas legendas
Apodrecidas fachadas
A mastigar as divisas
E outros símbolos manchados,
Nos brasões onde goteja
O limo do esquecimento.
Não fosse a imaginada
Profecia, face e apelo
Das inscrições lapidares
Palimpsesto ou astrolábio
Na pedra, na cal, nos muros,
Fendida casca de um mundo
Coagulado em memórias.
Restavam ossos e nomes,
Desassistida batalha
Contra o tempo. E esta cidade,
Com seu signo, seu quadrante
De cristal,
Sua mensagem de calcário,
Desfeita em vaga o soluço,
Mergulharia no espaço
Pássaro alado, albergália.
Calendário
Janeiro
Verão
E esta cidade como um sáurio,
Como um réptil,
Emergindo das águas
Verão...
E esta cidade
Como um pássaro
Renascendo das brasas
Verão...
E esta cidade como um signo,
Astrolábio ou mandala,
Esta cidade
Como um dado
Atirado ao acaso
De males nunca dantes
Confessados.
Banquete
O vinho
que eu bebo
É o preço
De um homem.
O prato que eu como,
Sem fome,
É o salário
Da fome
De um homem.
Mas,
O sonho que eu travo
Com fúria nos dentes
É somente a metade
Do sonho
De um homem.
Barragem
Estrutura de cal
Subitamente o rio
(argila e metal)
Se recompõe
E pára.
Somente a fúria
Calma do gesto
Que se disfarça.
Barragem ou poço
(argamassa)
Simetria de iludidos
Nas linhas duras
Do cais.
Talvez a sombra
íris-pupila
Que se adelgaça.
Recua e passa.