Myriam Fraga

Inquisição


Costuraram sua boca
Com alfinetes

E ele dizia que NÃO
E perguntavam.

E cortaram seus dedos
E o lançaram
Bem no fundo do poço

E ele dizia que não, que não, que não

E seus cabelos cresciam como chamas.

A Cidade


Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar,
Sua coroa, sua trança
de salsugem,
Seu vestido de ametista,
Seu manto de sal
E musgo.

Armada em firme silêncio
Dependura-se dos montes
E tão precário equilíbrio
Se propõe
Que além da porta ou portada,
De janela ou de horizonte,
O que a sustenta é o mistério,
Triste chão, sombra vazia,
Tempo escorrendo das pedras,
Lacerado nas esquinas,
Tempo — sudário e guia.

Mas que fera (ou animal)
Esta cidade antiga
Com sua densa pupila
Espreitando entre torres,
Seu hálito de concha
A babujar segredos,
Deitada entre os meus pés,
Minha cadela e amiga.

Repete esta dureza
Este arfar entre dentes,
Seu pulmão de basalto
Onde a morte respira.
E nas sombras da tarde
Em sangue no poente,
Abre os olhos sem pálpebras
E dança. Em maresia
E estrelas afogada.

E nesta coreografia,
Sopro de antigas paisagens
Um calendário se arrasta,
Nas corroídas legendas
Apodrecidas fachadas
A mastigar as divisas
E outros símbolos manchados,
Nos brasões onde goteja
O limo do esquecimento.

Não fosse a imaginada
Profecia, face e apelo
Das inscrições lapidares
Palimpsesto ou astrolábio
Na pedra, na cal, nos muros,
Fendida casca de um mundo
Coagulado em memórias.

Restavam ossos e nomes,
Desassistida batalha
Contra o tempo. E esta cidade,
Com seu signo, seu quadrante
De cristal,
Sua mensagem de calcário,
Desfeita em vaga o soluço,
Mergulharia no espaço
Pássaro alado, albergália.

Calendário


Janeiro

Verão

E esta cidade como um sáurio,
Como um réptil,
Emergindo das águas

Verão...

E esta cidade
Como um pássaro
Renascendo das brasas

Verão...

E esta cidade como um signo,
Astrolábio ou mandala,

Esta cidade
Como um dado
Atirado ao acaso

De males nunca dantes
Confessados.

Banquete


O vinho
que eu bebo
É o preço
De um homem.

O prato que eu como,
Sem fome,
É o salário
Da fome
De um homem.

Mas,

O sonho que eu travo
Com fúria nos dentes

É somente a metade
Do sonho
De um homem.

Barragem


Estrutura de cal
Subitamente o rio
(argila e metal)
Se recompõe
E pára.

Somente a fúria
Calma do gesto
Que se disfarça.

Barragem ou poço
(argamassa)

Simetria de iludidos
Nas linhas duras
Do cais.

Talvez a sombra
íris-pupila
Que se adelgaça.

Recua e passa.