Paulo Teixeira

Auto de fé


Quando o amor é como os papéis velhos
e anseia por mais arte que a do poema
o coração é o forno onde ardem palavras.

Nesse dia  elas foram, amarradas com barbante,
viúvas precipitando-se dentro da pira.
Fiquei a vê-las abrirem-se como pétalas
para  logo definharem a meus olhos
numa florescência não cumprida.
O seu frémito era ainda uma ânsia minha.

Remexi as cinzas, agitei o ar com as mãos.
Vi como um poema se mostra servil ante o fogo.
E pensei: ardessem também os meus dedos!
Para que o poema não deixe crias ao morrer
e não mais confira o direito à vida
do que nele vai escrito.

Porque o amor é a arte que fica além do poema,
no dia em que não escrever mais poemas
sei que o amor resgatará o meu corpo da chama.

Árvore dos corvos


I
São uma coroa fúnebre
nos ramos da árvore posta.

II
O bater das suas asas é agora
o rumor das folhas que lhe faltam.

III
Nublada pelo círculo das suas vozes
e cativa como moldura para o sono.

IV
O vento estuda-lhe os gestos,
não se sabe se numa dança ébria

V
ou em acenos que ficaram gravados
como serpente enleada até às raízes em pleno ar.

VI
Sabe como demora deixar de ser,
sumir-se a partir de dentro,

VII
cadáver decompondo-se ainda em vida
num outeiro com vista sobre o mar.

A segunda Pessoa


To count the loves one has grown out of
                                                         W. H. Auden


Tu reincides sem nome na lembrança,
presença não conhecida mas desejada
além do véu das estações e dos anos,

distante como dia de sol na bruma,
guardam-te em vão silêncios e demoras;
ao papel vens como lição não decorada,

perdido em missas vazias e solenes,
tu, forma de despedaçamento no meu corpo,
tu, dilaceração sem marca sobre a pele.

A espera queimou já meio caminho
desta vida e para o ar que respiro
não há mão incensaria, estrelas

em vigília na funda noite das galáxias,
sóis negros e prestas nebulosas
que correm para o avesso de Deus.

Lâmpadas e a lua foram guardas destas noites,
sem enlevo e sem futuro, exaladas por uma alma
presa na armação dos últimos laços.

Um desejo pode ser agora o pavor de um anseio
teu tumultuando o sangue em trânsito
pelas moradas do corpo quando esse adejo,

sei, as deixa suspensas na varanda dos sentidos.
Inquiro essa vontade que fez de ti um ser
inacessível a todos os vaticínios, invalidado

em nome e corpo, esboroando-se entre os dedos
como estátua mensurável outrora num desejo
e cinzelada de um sopro contra a luz.

1063 TWENTY-SIXTH ST. SANTA MONICA


(Brecht na Califórnia)

Pede-se-nos complacência     
para com os bons selvagens,
se olham com expressão amável    
e vazia a nobreza romana banida
de uma vez para o Ponto.

Aqui prossegue uma existência insular
essa Weimar das sombras,                                    
com a sua moral rígida e os costumes austeros,
as disputas vãs e recorrentes
sobre os sentidos que toma a guerra
na Europa, como se aí um outro vivesse
o prolongamento das suas vidas amputadas
nesta margem leve e frívola da América.

Ei-la reduzida a assistir de longe,     
com um oceano e um continente de permeio,
às mortes na família.                                             

Trocam currículos e carreiras,      
affidavit e declarações de rendimentos válidas por cinco anos,
pelo direito de habitar este litoral de palmeiras     
e limoeiros de meridional Itália,
mas onde a musa se não demora
a soprar ventos da Cítia                 
entre barcos, redes de pesca
e ninfas de praia (californianas).

Vieram para morrer entre os Getas,    
adeptos do surf & da bricolage,
entre casinos, estúdios de cinema
e poços de petróleo.

Sabemos como a vida imita os filmes.

Os mitos no tempo da física
são como as estrelas poeira sem brilho
num mundo de luz artificial
e poesia impossível —
pois como compor uma ode            
ao deus menor que move,
acima do rumor de pneumáticos e motores,   
os mecanismos da sorte
em Sunset Boulevard?

Autobiografia cautelar


1
Como se escreve a vida com pronomes trocados,
se tudo nela se recusa a ser uma história
urdida em encontros e aventuras,
país como Helvécia onde nada acontece,
a peça sem mudança de cena onde,
antes de se dar por isso, cai o pano
que o espectador, entre o cínico e o cénico,
duvida alguma vez ter sido içado.    


2
Escrever a vida: tarefa odorífera
como a do homem que desenterra cadáveres
e os expõe para dissecação na mesa fria,
fétida cloaca onde não houve Brama
mais que o bramir das ondas,
nem aura que por ti subisse, helicoidal,
dias como serpentinas, céus como ovos de Páscoa,
transubstanciação em pleno dia,
fortuna em descendência colateral,
causas como Bilbau e Belfast,
violação e rapto para uma ilha deserta,
clímaces de ondas electromagnéticas
num qualquer hemisfério cerebral,
hipérbole (fora do poema),
nada que te olhe da altura de dois andares
na hierarquia dos teus dias;
só este sabor biliar que ascende à boca
de uma ferida ulcerada
no eixo transverso da alma.


3
Autobiografia do que se perdeu
como bagagem abandonada no passeio
e só a custo resgatas do oblívio;
bocados de canções que algum dia
te prenderam a uma coisa terrena;
o nome de duas ou três cidades
onde terias ficado um dia mais;
rostos que contigo se cruzaram
— puro assomo de beleza na noite —
sem deixarem sequer o leve tambor
dos seus dedos nas espáduas;
amigos em conversa com suas certezas
à mesa da solidão jornaleira;
amigos: perdidos em morte, indiferença,
cabalas de quem julgou que a poesia
podia ser a feira que lhes faz falta.


4
Autobiografia? Só a do efémero
ou do entardecer que dura
como único deslumbramento, fiel a ti
como gravata colorida, pura cenografia
sem palavras, carta do país das Hespérides
onde nunca ninguém foi nem espera de ti resposta.