Raquel Naveira

Bicho Esquisito


Poeta é cão perdigueiro
Farejando tudo:
Até no lixo
Encontra cacos de estrela.

Poeta é inseto de antena,
Captando sons,
Imagens,
Mensagens telepáticas.

Poeta vive procurando rastros,
Códigos cifrados,
Hieróglifos em rosetas.

Poeta vive deixando trilhas,
Caindo em armadilhas,
Desvencilhando-se de teias.

Poeta vive catando sinais,
Atento a gestos, a gosmas,
A gemidos no vento.

Poeta é bicho esquisito,
Meio cachorro,
Meio mosquito,
E com mania de perseguição.

Elegância Suprema


Caminho por um tapete violeta
Estendido sobre nuvens.
Como é suntuosa tua morada!
Gotículas de chuva
Cristalizam-se em diamantes
E raios de sol
Pendem das colunas
Como correntes de ouro!

Meu rei, meu Senhor!
Quanto fausto!
Quanto brilho
Na tua túnica,
Na tua coroa,
No escabelo
A teus pés!
Por que ocultaste até o último instante que eras rei?
Por que não trouxeste teu séquito de anjos?
Tuas hordas,
Teus leões,
Tuas trombetas?

Por que te abandonaste a ti mesmo?
Indefeso,
Preso ao madeiro
Como fruto apodrecido?

Meu rei, meu Senhor!
Que suprema elegância!
O manto,
O cetro,
O olhar que me lanças
E que gera e mim a ânsia de combate,
A fé segura,
O equilíbrio.

Como eu poderia adivinhar
Que um homem era Deus?

Cabelo


Estou triste,
Cortei o cabelo.
Näo sou mais adolescente
De tranças
E olhos lânguidos.
Näo sou mais moça,
Balançando a crina,
Como égua musculosa
Na colina.
Näo sou mais princesa,
Usando tiaras,
Arrastando a coma
Como se tivesse na cabeça
A cauda de um cometa.
Adeus, cabelame !
Derrame de seiva sobre meus ombros,
Véu natural
Com que penetrava câmaras ardentes.
Por que cortei o cabelo ?
Por que näo o mantive longo,
Mesmo branco e seco,
Preso na nuca
Por marfim e pentes ?

(1995)

Camalotes


Na cheia
Os camalotes bóiam,
Estufados corpos aquáticos
Que a correnteza leva;
Conjunto de leques duros,
Verdes,
Que se dissolvem no silêncio;
Aqui e ali um buquê de flores
Arrebenta lilás;
A malha fina de raízes
Apanha peixes,
Escamas,
Pés delicados de pássaros que pousam;
A canoa de folhas
Navega sem leme
Rumo à foz,
À pedra,
Ao mar que espreme
E espuma.

Cheia de Graça


Maria era cheia de graça...
A graça estaria na sua forma?
No seu corpo longilíneo de garça,
No seu cabelo
Esgarçando feito véu?
No seu aspecto singeloe níveo
De esposa imaculada?
Na composição
De cada uma de suas partes
Formando um todo harmonioso?
Na expressão dos olhos,
Nos gestos,
Nos movimentos de quem sabe
Recolher água em cântaros
Para beber
E banhar-se?

A graça estaria no espírito?
Seria beleza invisível,
Estilo de ser,
Dons e virtudes
Escorrendo como caudas de cometas?

Gazela,
Bailarina,
Camélia,
Que graça seria a dela?
Que milagre inspirado
Era Maria
Cheia de graça!