Renata Pallottini

Ternura

Compreende: não é a minha Ternura que te nego.
É antes, a casa que não é minha,
A liberdade que não me deram,
As horas que me arrancam.
Minha Ternura, essa está intacta,
Ninguém a pode roubar.
É como a Casa que eu sempre sonhei,
Onde viveriam todos os Amigos,
Como a liberdade de andar pelas ruas sem tempo,
Como as horas da noite que eu guardo para os sonhos
Antes de dormir.


Publicado no livro Acalanto (1952).

In: PALLOTTINI, Renata. Chão de palavras. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. p.1
2 Renata Pallottini

Poema da Rua Maria Antonia

Por sobre o muro
voam bombas e garrafas incendiadas
pedras agudas e palavras
duras.
Por sobre o muro
voa a lembrança de um amor que houve
uma visão passada e deslocada
que tenta ultrapassar o muro e do alto
proclamar-se intocada.
Mas as garrafas incendeiam tudo
e a palavras
tornam menos urgente o amor antigo
e mais urgente o aviso:
esta é a guerra das guerras
guerra civil dos que foram amigos.
Por sobre o muro
espio com espanto o pátio incendiado
os jovens que se atingem entre lágrimas
os feridos e os gestos e os detalhes.
Minha cabeça ponho sobre o muro.
É uma cabeça desligada do seu corpo
como a cabeça de um guilhotinado
de olhos abertos.
Com meus olhos abertos sobre o muro
vejo o sangue e a fumaça da contenda.
Não posso distinguir qual dos lados do muro
é o mais claro, o mais limpo, o mais certo, o mais justo.
Meus olhos na cabeça decepada,
Buscam ansiosamente sobre o muro
o caminho mais curto, a razão mais sensata,
ou pelo menos a mais desinteressada.
Meus olhos, na cabeça desnorteada
procuram com inútil desespero
a arma de lutar, a faca de se defender
o punho de atacar.
Na cabeça infeliz meus olhos são culpados
de verem o que aos mortos foi negado.


In: PALLOTTINI, Renata. Coração americano. Pref. Luiz Carlos Cardoso. Il. Aldemir Martins. 2.ed. São Paulo: Feira de Poesia, 1979

NOTA: "Poema da Rua Maria Antonia" é a quarta parte do poema "Simposium", composto de 10 partes
3 Renata Pallottini

Primeiro Foi a Noite

"No princípio criou Deus o céu e a terra.
Gênesis, 1:1
Primeiro foi a noite. E a noite feita,
desta engendrou-se a luz, julgada boa.
Depois, fez-se o agudo desespero do céu.
E a terra. E as águas separadas.

E um mar se fez, da lúcida colheita
das águas inferiores. A coroa
tornou-se firmamento. "Haja luzeiros" —
ordenou-se às estrelas debulhadas.

Houve flores estáticas e flores
que procuravam flores; e houve a fome
de carne e amor e dessa fome as dores

e das dores o Homem. Deste, esquiva,
toda fome, sua fêmea, e no seu sexo,
mais uma vez a noite primitiva.

4 Renata Pallottini

Através da Vida

Através da vida o homem
vai sendo ludibriado.
Deitando-se em qualquer porta
o homem percebe que ficou de lado.
E depois constatando
que a mulher não lhe foi dada
para amá-lo, como está dito.
Foi-lhe dada para nada.
A mulher ao longo da vida
percebe que foi sendo usada
e que agora está no fim.
E que nunca recebeu um sim.
Os filhos que ali estão
estão ali porque estão.
Não tinham sido queridos.
Tinham só acontecido.
E os filhos que ali estão,
não sabem de coisa alguma.
Vão à escola se vão à escola.
Se não vão, inventam uma.

Depois que morre a gente descansa
e a terra é quente, mesmo na morte.
Depois da morte eu descansarei
e não terei medo da morte.
E não olharei para o alto, temendo
o alto peso da terra.
Mas estarei dormindo e dormindo.
De forma eterna e só então eterna.


Publicado no livro Os Arcos da Memória (1971).

In: PALLOTTINI, Renata. Chão de palavras. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. p.17
5 Renata Pallottini

Noite Afora

A quem devo dizer que em tua carne
se sobreleva o tempo e o duradouro,
mancha de óleo no azul, alaga e intensifica
o contratempo a que chamei amor?

A quem devo dizer dos meus perigos
quando, o corcel furioso, olhei ao longe
e não vi mais limites que o oceano
nem mais convites que o das ondas frias?

Como antepor o corte nas montanhas
— Liberdade — ao dever que a si mesma impõe a terra
de estender-se conforme o espaço havido?

Malícia do destino, ardil composto outrora...
Arde a grama da noite em que te vais embora,
e essa chama caminha, essa chama, essas vinhas,

essas uvas, cortadas noite afora.


Poema integrante da série Noite Afora.

In: PALLOTTINI, Renata. Noite afora. São Paulo: Brasiliense, 197
6 Renata Pallottini

O Cântaro

"Então, Jacó beijou Raquel e,
levantando a voz,
chorou."
Gênesis, 20: l l

O cântaro poreja a água amena
que do poço brotou, e adoça a areia
e que corre nos ombros, e que enleia
pelas espáduas seu frescor moreno.

O lácteo manto que uma brisa ondeia
desenha formas, cujo talho apenas
a tamareira imita, a flor receia,
o vento afaga e a solidão serena.

Vê-la é um momento, desejá-la um sopro,
ouvir-lhe a voz uma doçura eleita,
roçar-lhe a fronte uma revelação.

O amante, incertas mãos, trêmulo corpo,
beija-lhe os olhos, cuja flor desfeita
catorze anos de vida pagarão.

7 Renata Pallottini

O Carro

O carro corre ao longe numa boa
feito a nuvem que passa,
feito o vento que voa.

A máquina do carro é o fino;
o ruído ardido
é o defeito que tem tudo que é feito.
Senão, tudo era chato
e perfeito.


In: PALLOTTINI, Renata. Café com leite. São Paulo: Quinteto, 1988. p.1
8 Renata Pallottini

O Pai

(Para o Edgar)

O Pai, por que só trabalha?
Era melhor pai em casa,
pai no jardim vendo rosa,
pai consertando o telhado,
mas o Pai trabalha fora.
Era melhor pai passeando,
no parque correndo junto,
pai ensinando lição,
pai vendo televisão.

Mas o Pai trabalha fora
pra sustentar os meninos.
— Pai, por que você não canta?
— E eu lá sou passarinho?


In: PALLOTTINI, Renata. Café com leite. São Paulo: Quinteto, 1988. p.1
9 Renata Pallottini

O Pão Amargo

"Ela foi sentar-se em frente dele a boa distância,
como a de um tiro de arco;
pois disse:
que não veja eu a morte do menino.
Sentada em frente dele,
levantou sua voz e chorou."
Gênesis, 21:16
O pão amargo e a água consumada
do odre seco em cáustico deserto;
sob o mirrado arbusto a esquiva sombra
se nega pela areia e é como um rastro.

Sem planta fresca, a fruta apetecida
traz a longínqua fixação do incerto;
quando a brasa arenosa for alfombra
tornar-se-á carícia o fogo do astro.

Para a criança adormecida ao braço
o olhar alonga, e faz como se fosse
para nos olhos tê-la, traço a traço.

Lembrando a noite aquela e a face gêmea
que lhe roçara a face em mágoa doce,
a escrava chora a condição de fêmea.

10 Renata Pallottini

Olha, que no Verão

Olha, que no verão a lua nasce
vermelha dentro d'água
nesta praia.
Acendamos o fogo para vê-la
e para ver-nos. Já é quase noite
o mar só faz de conta com sua água múltipla
breve virá o rastro de ouro e sangue.

A lua sempre comoveu mulheres
seus ciclos, suas datas,
seus períodos
a lua sempre motivou os gatos
maré de bons resquícios
sexo e fluido;

gemendo nos amamos
e gemendo explodimos nos sismos do parto.
As mulheres são fossos onde a lua dorme
e desperta furiosa
a cada quatro casas.

Nada mais do que sou
me basta
neste instante;
o que fui já passou há muito tempo;
não devemos voltar nem pra recolher os destroços
fossem de ouro os restos
não voltemos;

deixa na praia os pedaços de troncos
ou joga-os na fogueira
de areia e ossos.

Pode tardar a lua; a hora não importa
à senhora dos sulcos e das lavras do mar.
Ela tem o seu tempo, o tempo das crateras
o lívido da pele do seu centro
o ouro do seu carmim
no nascimento.

Pode tardar a lua
Vem
O fogo
é dentro


In: PALLOTTINI, Renata. Ao inventor das aves. São Paulo: Edicon: J. Scortecci, 1985. (Aldebaran
11 Renata Pallottini

Cântico dos Cânticos - 2:16

(O meu amor é meu e eu sou dele; ele apascenta
o seu rebanho entre os lírios.)

O meu amor é meu e eu sou dele.
O linho horizontal é nossa casa
e eu me aninho a dormir sob sua asa;
amo-o com minha boca e minha pele.

Ele é quem vela, e não me diz que vele
porque sua é a chama e minha a brasa.
O seu fervor ao meu fervor se casa,
clara coma de luz que nos impele.

Desci ao campo raso: ele é meu campo
onde me deito e a erva se derrama;
é meu olhar que voa, pirilampo.

Sem terra irei por terra: ele me chama.
Vou sem saber por onde, ao mar ou monte.
Sem sua boca eu já não sei ser fonte.

28-09-59


Publicado no livro Livro de Sonetos (1961).

In: PALLOTTINI, Renata. Chão de palavras. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. p.9
12 Renata Pallottini

Cerejas, meu amor,
mas no teu corpo.
Que elas te percorram
por redondas.

E rolem para onde
possa eu buscá-las
lá onde a vida começa
e onde acaba

e onde todas as fomes
se concentram
no vermelho da carne
das cerejas...

13 Renata Pallottini

Corintiano

Não posso sair de casa
há polícias na rua
não posso ir para o trabalho
meu trabalho está cercado
não posso falar em liberdade
é proibido.

Posso apenas dormir
comer um pouco beber
e gritar "gol".
Mesmo assim só quando o meu time ganha.


Poema integrante da série Canas.

In: PALLOTTINI, Renata. Noite afora. São Paulo: Brasiliense, 197
14 Renata Pallottini

Esta Canção

"aquilo que é, já foi;
e aquilo que há de ser já foi;
Deus fará vir outra vez o que já se passou."
Eclesiastes, 3:15

Esta canção rateia a tarde clara
buscando a minha voz que é sua fonte.
Assim voltam os pássaros ao campo,
assim volta o horizonte ao horizonte.

Sou o doido que canta para si,
cônscio de não saber nem do que inventa;
recriando o criado, ele sorri,
ciente de que não faz nem acrescenta.

Tudo já foi, apenas se repete;
este lugar de amor será pregresso
quando for dor a dor que se promete.

Chegou-me agora o que já foi futuro;
assim Deus me prepara o teu regresso
como se planta um poema nascituro.

15 Renata Pallottini

Macunaíma

(...)

Meu filho, cresce ligeiro,
para ir pra São Paulo
e ganhar dinheiro.

Adeus mato cheiroso orvalho da manhã
adeus água de prata cascata
adeus ramo de arruda hortelã
a mata está a pique de acabar
jandaia buriti jussara aracuã
cresce depressa pra dandar
meu filho
pra ganhar
vintém
cresce depressa e entrega a mata
ao invasor
meu filho pra ganhar
vintém
Quanta floresta! É ouro verde na divisa
brasileiro vai ganhar
vintém

cresce depressa e sem caráter brasileiro
e vende a mata
pra ganhar
vintém

Na cidade das máquinas doente
Macunaíma sobrevive e pensa:
nas ruas, cipoal de muita gente,
só o ato de brincar
é que compensa.

Para a tristeza, o amor;
para a preguiça
o amor, e para a febre
mordidas de saúva da paixão.

Muita saudade
e muita pouca ação
os males do Brasil
são.

Macunaíma, audaz tumucumaque,
menino inventador, herói de araque,
lá vai ele, criador de boi-bumbá;
voltando para a terra antes que acabe,

para o seu galho em antes que desabe,
para as florestas
cada vez mais menos,
para as montanhas, já
montes de Vênus,
para os campos,
agora mais pequenos...

Macunaíma encolhe igual sanfona
na charanga brasílico-amazona.

(...)


In: PALLOTTINI, Renata. Cantar meu povo. São Paulo: Massao Ohno, 198
16 Renata Pallottini

Quando os Céus se Cerrarem

"ouve tu então nos céus e perdoa
o pecado do teu povo Israel
e torna a levá-lo à terra
que tens dado a seus pais.
I Reis, 8:34

Quando os céus se cerrarem, não por seca,
mas por extrema dor, sobre o teu povo,
que pecou contra ti e ainda peca
e pecará, o mísero, de novo,

e houver fome na terra, não de trigo
ou de carne, mas fome de ternura,
para estancar a fúria do inimigo
e a sua enorme e súbita loucura,

ouve do céu, Senhor, ouve e perdoa:
a gente que ontem fez a tua casa
e a fez grandiosa, e a fez dourada e boa

hoje, expulsa do Anjo e de sua asa,
entrepara e pergunta, se esqueceste:
para que herança, ó Deus, nos elegeste?

17 Renata Pallottini

Salvo
a falácia da queda e o seu após
nada tenho a constatar
do que caiu sobre nós.
Digo-te qual suponho:
o que passou, passou.
Não ponho sobre ti o peso do meu sonho,
nem do que velo, nem do que findou.
Salvo a falácia do erro
tudo o mais fui eu:
quem nasceu e se pôs de pé,
quem cresceu e não cresceu,
quem humilhou e perdoou,
quem finalmente morreu

e hoje chora ao pé da cova
pelo dorido do que aconteceu.

18 Renata Pallottini

Saudade da Feira de

Saudade da feira de Casa Amarela:
entrava por uma rua, saía por outra rua,
e tinha peixe-agulha fritando e tinha pretá
e tinha refresco e menino de frete,

saudade do Mercado da Bahia, saía por uma porta
entrava por outra e tinha rede (de casal, moça!)
e tinha faca de ponta e vatapá com pimenta,
acarajé com pimenta, tinha cara de pimenta,

saudade do Mercado de Maceió, tinha sarapatel,
tinha fruta, uma fruta pequenina e amarela,
foi ver era tomate, mas não esse do sul,

saudade do Mercado de Caldas, entrava por uma porta
saía por um portão que era pra guardar cavalo,
tinha doce, tinha passarinho que nem por dois contos
[eu vendo,
tinha pinhão e sorvete de amendoim,

pra que ir tão longe? Saudade do Mercado de Moji
e pronto, entra por uma porta sai por outra
e é sempre a mesma coisa, tem fumo de Rio Comprido
[e de Rio Curto
e de Rio Preto e de Rio Branco, tem caipiras que só
mesmo em São Paulo, tem cachorrinho ensinado, tem
[pé no chão
e Deus me livre de ser bairrista, mas tem uma
[rapadura, oi.



Publicado no livro O Monólogo Vivo (1956).

In: PALLOTTINI, Renata. Chão de palavras. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. p.3
19 Renata Pallottini

Por Ti Deixei

"Portanto, deixa o homem
a seu pai e a sua mãe,
e se une a sua mulher;
e são uma só carne."
Gênesis, 2:24
Por ti deixei, do meu rebanho lento
a alva timidez; da minha casa
o fogo acolhedor tornado brasa
e a brasa morta transformada em pranto.

Das mãos de minha mãe ficou-me o manto,
da boca de meu pai restou-me a frase
e estes meus olhos são cisternas rasas
onde à tardinha vem beber o vento.

Ponho a teus pés o meu desejo triste
que se renova numa força eterna,
e te ofereço uma faqueza a mais;

pedaço do meu tronco que partiste,
carne, que foste um pouco de meu cerne!
À minha própria carne tornarás.

20 Renata Pallottini

Por Vós, Senhora

"o meu hálito se fez estranho a minha mulher..."
Jó, 19:17

Por vós, Senhora, dei o quanto hei dado:
minha parcela de aflição, incertas
as minhas tíbias mãos, no entanto abertas;
as flores e os afetos consumados.

Também por vós hei sido o quanto hei sido:
regato de cautela, pensamento
por vós pensado, inquieto tempo havido
por vós enlouquecido em sentimento.

Tudo isso é nada, agora que voltastes
a tudo o que vos dei e fiz, as frias
espigas do desprezo e as duras hastes

do tédio. Agora é nada o amor passado
em vós, jamais em mim, que vos daria
Senhora, uma vez mais, o quanto hei dado,

21 Renata Pallottini

Vestibular

De novo acomodo o corpo
(que de novo me incomoda)
na carteira de pau áspero;
de novo tomo a caneta.

De novo passo entre as filas
ponho a mão no ombro trêmulo
de alguma estudante tímida
(e agora sou professora).

De novo é aquela angústia,
não saber o que se sabe
ser de novo examinada
e de novo posta à prova.

De novo adivinho o amor,
olho-me e olho; já fui
o que hoje sou. Já sofri
o que sofro. E vem de novo

esse temor, como novo.
Ensino, ou sou ensinada?
Estou acima, ou me afogo?
De novo perco o respiro
ou já domino a questão?

De novo sofro e transpiro
porque hoje sou a mestra
tão escassa como sempre
e como sempre carente.

Olho-me quieta de novo
e vejo toda essa gente.
Passas de novo a meu lado
e me pões a mão no ombro

e me marcas com teu sopro
e me deixas tua sombra.


In: PALLOTTINI, Renata. Cantar meu povo. São Paulo: Massao Ohno, 198
22 Renata Pallottini
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