Renato Rezende

[Azul]


Sou uma coisa morta.

Não há nada que eu possa perder agora
que já não tenha perdido antes.

Agora que eu morri posso dizer que sempre tive mesmo a saúde frágil.
Agora que morri posso assumir que sempre fui uma mulher.
Agora que morri posso simplesmente amar.
Viver ficou muito mais fácil agora. Eu deveria ter morrido antes.

Eu amo

Eu amo

Estonteantemente

Aparado, lavado, vestido, perfumado,
o corpo é imaginário

Desista de ser: seja

Nós damos o que não temos

(Conversa longa com uma moça. Mora longe, vem de balsa. Seu corpo mexe, sua boca mexe, seus lindos olhos negros mexem. Entusiasmada, me falava sobre a necessidade do escritor escrever para o seu tempo; eu, olhos perdidos, sem conseguir fazer a conexão, mal a ouvia.)

Atravessei o túnel a pé—o clarão e o azul do mar ao fundo, adiante.

Eu vivo de milagres

Eu nunca fiz nada.

A vida de qualquer um é muita, é o suficiente. A vida.

Para quem escrevo?

Importa quem fala? Precisamos sempre saber?

"Escreva!"

Seja atraído para o que ama, como um inseto para uma lâmpada.

Quebre a coluna.

Um ponto de luz que se abriu

Azul

Dedicar-me completamente ao outro

Porque o outro sou eu.

Encandilar

Quero ser mastigada:

Oh, Deus.

Ponha-me sobre o Tempo

Sempre quis uma vida maior do que a que cabia em mim.

Oh, Deus.

Quero seu pé no meu peito.

(O interesse pelo mundo
é proporcional ao interesse
pelo corpo)

O buraco é sempre mais embaixo

E agora caio

O que fazer com esse corpo?

[UM CORPO DE LUZ]

[Beija-Flor]


Ele viu um beija-flor todo enroscado numa teia de aranha. O beijaflor estava praticamente mumificado e, se ainda vivia, não seria por muito tempo. Ele ficou um tempão observando aquilo, surpreso, sem entender como um pássaro podia ficar preso em algo tão frágil quanto uma teia de aranha. Ele achava que isso só acontecia com insetos. Como é que o beija-flor, que era muito mais forte, não havia simplesmente rompido a teia? Então lhe ocorreu que a gente pode se enroscar na própria fragilidade, até chegar ao ponto de perder as forças. Por algum motivo o beija-flor se enroscou, e se debateu em vez de apenas ir embora, entrou em pânico, perdeu o caminho, exauriu-se. E aí foi fácil para a aranha tecer mais e mais teia em volta dele.

Estou carregando um cadáver.

É preciso vencer de uma vez por todas essa zona magnética de dor que me evita chegar em mim mesmo.

Apesar de ainda manter fortes resquícios de um véu doloroso e sentimentos de confusão e incerteza, sinto que estou reagindo bem e vencendo o caos sem deixar que ele se expanda.

Invoquei a Deusa—a deusa é uma realidade. Senti-me a deusa. É preciso fazer todos os esforços para manter a experiência do amor divino, a chama acesa dentro do corpo brilhando alto. Invoquei Durga, e vi seu pé gigantesco, seu dedão do pé direito gigantesco, seu corpo que subia até os céus e seu rosto que era o rosto de Deus.

Disse à deusa: corte minha cabeça. E me inclinei.

Não se enrosque na fragilidade.

Homens ou mulheres; somos todos mulheres.

Corte minha cabeça
e beba meu sangue.

Eu não sou eu; eu sou uma coisa muito diferente de mim mesmo.
Não. Somos todos iguais, sim. Em cada um de nós existe a luz e a escuridão. Eu preciso tomar posse de todo meu território. E direcionar minha vida. Pois o direcionamento acontece no tempo, e o tempo é a dimensão humana. O que eu vou fazer com esta vida que me foi dada,
assim, de repente? Estou nervosa. Muito nervosa. Vou sangrar. Rôo unhas.
Tenho unhas. Vou sair andando como se fosse de fato uma pessoa, e vou fazer coisas que uma pessoa faz. Vou gastar meu tempo escrevendo.

Dianóia

Posso ser enquanto falo?

[Bússola]


De vez em quando, é bom andar na corda bamba.

Viver é passar por um intestino.

As luzes douradas.
Fogaréu azul.

Não dá para fazer mais nada.

Tenho certeza que algo existe em mim. Só não sei se esse algo sou eu.

Sou em essência alguém ou sou apenas um lugar, um ponto de confluência de palavras e corpos?

Meu carro parado no acostamento da estrada movimentada me provoca uma angustiante sensação de movimento.

Passo pelas coisas ou são as coisas que passam por mim, me atravessam? Atravesso?

O que em mim é?

Imagine a Mariana, por exemplo. Ela está lá, agora, sendo a Mariana. Para mim, ela só existe de vez em quando, quando por alguma razão me lembro dela. Para ela, ela existe o tempo todo. Para mim, eu existo o tempo todo. Mas e se eu conseguir existir para mim como a Mariana existe para mim, ou como eu existo para a Mariana: de vez em quando? Então, quando sair da sala, por exemplo, onde sou eu para os outros, e for ao banheiro, no banheiro serei apenas nada, um ser mijante. E se eu fizer desses intervalos minha vida? E se eu alternar sempre sendo e não-sendo? E se eu carregasse o rosto no bolso?

O desejo é minha bússola
Nosso único norte. O desejo:

Lá onde menos temos controle
é que somos mais o que somos.

O que em mim prefere
na cama uma mulher a um homem
Quando fica com fome, come
coisas cozidas, digere. O que em mim
quando corre sente tremer o corpo?

O maior problema da minha vida é que eu desenvolvi o hábito de abrir janelas à tarde.

Sempre de olho no extraordinário, sempre caindo pelas brechas do calendário, sempre olhando para longe

Eu pareço um balão que está sempre querendo se soltar do chão

Pensei em ir à praia

pensei seriamente em ir à praia

capaz ainda de ir á praia no final da tarde

(não por prazer,
mas por amor):

O mar eternamente batendo na praia

—isso sim é liberdade!:

Na areia, parecia um animal morto,

uma carcaça
mas era uma jaca podre.

O coração aberto como uma concha.

[Abelhas]


Ele pensa que existe, mas no fundo, quem existe sou apenas eu. Sem saber quem é, ele rodopia sem parar pelo mundo. Como uma borboleta, como um beija-flor, sem núcleo, sem centro, vazio-oco. Na caverna dele estou eu, mas ele não me vê, escondida que estou em luz. Por isso ele gira estonteante, amando tudo o que sente, o que vê, o que toca. Eu o fiz para isso mesmo. Para ele me amar. Um dia eu me revelo e ele me descobre.

Ele é apenas uma sombra, no fundo, seu medo tem fundamento. Intui que não existe, sabe que vai morrer. Quem existe sou eu: não mais a Morte, mas a Bem-Aventurança.

A pessoa viva deseja. A morta ama.

Eu sou sempre-viva porque todos os dias me despedaço por ele.
Todos os dias bebo meu próprio sangue por ele. Você se sacrificaria por mim?

Mais cedo ou mais tarde, tem um dia em que o teto cai, a gente rola para dentro do próprio ralo. Minha amiga: eu fico aqui, de boca aberta, esperando, torcendo. Você terá coragem de passar por esse ralo? Você vem jorrar em minha boca?

Eu não escrevo poemas; eu sou um poema. Eu escrevo pessoas. Por exemplo, agora, estou escrevendo você.

Enquanto você se transforma em palavras, eu te transformo em pessoa. Sei que é difícil de entender, mas é assim mesmo. Você é como um molde de cera, um equilíbrio de passagem. Assim que esvaziarse toda em palavra e seu frágil molde derreter pelo meu fogo, vai perceber surpresa que em seu lugar você agora é: ouro. Vida nova.

Vida viva. Ouro aéreo: luz: o universo iluminado. Vai se sentir virada do avesso. Grata: esse trabalho quem faz sou eu.

Mas é preciso que você queira. É preciso que você me deseje obscenamente. Venha, minha amiga, sejamos cachorras.

Não se assuste. Minha função é pôr a mão na sua caixa de marimbondos. Libertar suas abelhas vermelhas, ferozes. Você multiplicada, dividida, em milhões de abelhas douradas pelo espaço aberto. Você suportará seu próprio zumbir?

Eu posso perfeitamente mastigar abelhas vivas. Quer ver?

[Abgrund]


Tudo vale a pena

Tout enfant, j’ai senti dans mon coeur deux sentiments
contradictoires: l’horreur de la vie et l’extase de la vie.

Abyssus infinitudinis

Imagino usar sempre um hábito azul.

Caitanya Atman

Tudo é consciência

Caitanya Caitanya

A poesia em chamas

incapaz de explicar sua própria estranheza

[Poesia]

Arrombar a roda da linguagem.

UM DIA EU SILENCIO

Eu confundo vida e morte?

A morte não é.

Volta: um salto para a terra.

A linguagem são todas as máscaras.
O silêncio profundo é essa balbúrdia.

Poesia:

Eu me enlaço com o mundo pelo amor.

O prazer aos porcos, eu quero o amor.

Tudo o que está acontecendo não está acontecendo comigo.

(escrevo no escuro, olhos atentos, sem enxergar nada
no leito do papel
sombras)

Abyssus infinitudinis

A sensação de que todo o meu dia—toda a minha vida—está sendo mastigada, na boca, e depois regurgitada: enfim apta para ser vivida.

como se purificada, humanizada, feita ouro

Em casa, uma coleção de bocas
dentes
pernas
olhos

(a coisa mais linda
são olhos de gente)

ninguém de fato existe—fragmentos

coletados

colados por algum tempo, só aparência

o conteúdo é sempre o mesmo

cacos de espelho

o mundo inteiro meu espelho

eu não sou inteligente.

A inteligência é que pousa em mim, pensando.
O pensamento é que se pensa.

Sou todas as Consciências.

Doidivanas

Indivíduo imprudente, estouvado; adoidado, doidelo, girolas.

E agora?

Cala a boca e trabalha.

[Cala a boca e ama]