Ronald de Carvalho

Brasil


A Fernando Haroldo

Nesta hora de sol puro
Palmas paradas
Pedras polidas
Claridades
Faíscas
Cintilações

Eu ouço o canto enorme do Brasil!

Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu correndo na ponta
    das rochas nuas, empinando-se no ar molhado, batendo
    com as patas de água na manhã de bolhas e pingos verdes;

Eu ouço a tua grave melodia, a tua bábara e grave melodia,
    Amazonas, melodia da tua onda lenta de óleo espesso que
    se avoluma e se avoluma, lambe o barro das barrancas, morde
    raízes, puxa ilhas e empurra o oceano mole como um touro
    picado de farpas, varas, galhos e folhagens;

Eu ouço a terra que estala no ventre quente do Nordeste,
    a terra que ferve na planta do pé de bronze do cangaceiro,
    a terra que se esboroa e rola em surdas bolas pelas
    estradas de Juazeiro, e quebra-se em crostas secas,
    esturricadas no Crato chato;

Eu ouço o chiar das caatingas — trilos, pios, pipios, trinos,
    assobios, zumbidos, bicos que picam, bordões que ressoam
    retesos, tímpanos que vibram, límpidos papos que estufam,
    asas que zinem, rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas
    longas, langues — caatingas debaixo do céu!

Eu ouço os arroios que riem, pulando na garupa dos dourados
    gulosos, mexendo com os bagres no limo da luras e das locas;

Eu ouço as moendas espremendo canas, o gluglu do mel
    escorrendo nas tachas, o tinir da tigelinhas nas serigueiras;
E machados que disparam caminhos,
E serras que toram troncos,
E matilhas de “Corta Vento”, “Rompe-Ferro”, “Faíscas”
    e “Tubarões” acuando suçuaranas e maçarocas,
E mangues borbulhando na luz,
E caititus tatalando as queixadas para os jacarés que
    dormem no tejuco morno dos igapós...
Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo, gritando, vociferando!
Redes que balançam,
Sereias que apitam,
Usinas que rangem, martelam, arfam, estridulam, ululam e roncam,
Tubos que explodem,
Guindastes que giram,
Rodas que batem,
Trilhos que trepidam.
Rumor de coxilhas e planaltos, campainhas, relinchos
    aboiados e mugidos,
Repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro Preto,
    Bahia, Congonhas, Sabará,
Vaias de Bolsas empinando números como papagaios,
Tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,
Vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão!

Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil.

Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar...
A conversa dos fazendeiros nos cafezais,
A conversa dos mineiros nas galerias de ouro,
A conversa dos operários nos fornos de aço,
A conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias,
A conversa dos coronéis nas varandas das roças...
Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro
Palmas paradas
Pedras polidas
Claridades
Brilhos
Faíscas
Cintilações
É o canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços,
    onde dorme, com a boca escorrendo leite,
    moreno, confiante, o hemem de amanhã!


Publicado no livro Toda a América (1926).

In: CARVALHO, Ronald de. O espelho de Ariel e poemas escolhidos. Pref. Antônio Carlos Villaça. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; Brasília: INL, 1976. p.188-190. (Manancial, 44

Advertência


Europeu!
Nos tabuleiros de xadrez da tua aldeia,
na tua casa de madeira, pequenina, coberta de hera,
na tua casa de pinhões e beirais, vigiada por filas de cercas
[paralelas, com trepadeiras moles balançando
[e florindo;
na tua sala de jantar, junto do fogão de azulejos, cheirando a
[resina de pinheiro e faia,
na tua sala de jantar, em que os teus avós leram a Bíblia e
[discutiram casamentos, colheitas e enterros,
entre as tuas arcas bojudas e pretas, com lãs felpudas e linhos
[encardidos, colares, gravuras, papéis
[graves e moedas roubadas ao inútil
[maravilhoso;
diante do teu riacho, mais antigo que as Cruzadas, desse teu
[riacho serviçal, que engorda trutas e
[carpas;

Europeu!
Em frente da tua paisagem, dessa tua paisagem com estradas,
[quintalejos, campanários e burgos, que
[cabe toda na bola de vidro do teu
[jardim;
diante dessas tuas árvores que conheces pelo nome- o carvalho
[do açude, o choupo do ferreiro, a tília
[da ponte — que conheces pelo nome
[como os teus cães, os teus jumentos e as
[tuas vacas;

Europeu! filho da obediência, da economia e do bom senso,
tu não sabes o que é ser Americano!
Ah! os tumultos do nosso sangue temperado em saltos e disparadas
[sobre pampas, savanas, planaltos,
[caatingas onde estouram boiadas tontas,
[onde estouram batuques de cascos, tropel
[de patas, torvelinho de chifres!
Alegria virgem das voltas que o laço dá na coxilha verde,
Alegria virgem de rios-mares, enxurradas, planícies cósmicas,
[picos e grimpas, terras livres, ares livres,
[florestas sem lei!
Alegria de inventar, de descobrir, de correr!
Alegria de criar o caminho com a planta do pé!

Europeu!
Nessa maré de massas informes, onde as raças e as línguas se
[dissolvem,
o nosso espírito áspero e ingênuo flutua sobre as cousas, sobre
[todas as cousas divinamente rudes, onde
[bóia a luz selvagem do dia americano!


Publicado no livro Toda a América (1926).

In: CARVALHO, Ronald de. O espelho de Ariel e poemas escolhidos. Pref. Antônio Carlos Villaça. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; Brasília: INL, 1976. p.187-188. (Manancial, 44

Écloga Tropical


Entre a chuva de ouro das carambolas
e o veludo polido das jabuticabas,
sobre o gramado morno,
onde voam borboletas e besouros,
sobre o gramado lustroso
onde pulam gafanhotos de asas verdes e vermelhas,

Salta uma ronda de crianças!
O ar é todo perfume,
perfume tépido de ervas, raízes e folhagens.

O ar cheira a mel de abelhas...

E há nos olhos castanhos das crianças
a doçura e o travor das resinas selvagens,
e há nas suas vozes agudas e dissonantes
um áureo rumor de flautas, de trilos, de zumbidos
e de águas buliçosas...


Publicado no livro Epigramas Irônicos e Sentimentais (1922).

In: CARVALHO, Ronald de. O espelho de Ariel e poemas escolhidos. Pref. Antônio Carlos Villaça. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; Brasília: INL, 1976. p.167. (Manancial, 44

Anoitece


Anoitece...
Venho sofrer contigo a hora dolente que erra,
Sob a lâmpada amiga, entre um vaso com rosas,
Um festão de jasmins, e a penumbra que desce...
Hora em que há mais distância e mágoa pela terra;
Quando, sobre os chorões e as águas silenciosas,
Redonda, a lua calma e sutil, aparece...

O rumor de uma voz sobe no espaço, ecoando,
Mais um dia se foi, menos uma ilusão!
E assim corre, igualmente, a ampulheta da vida.
Senhor! depois de mim, como folhas em bando,
Num crepúsculo triste, outros homens virão
Para recomeçar a rota interrompida,
E a amargura sem fim de um mesmo sonho vão...

Nos dormentes jardins bolem asas incautas,
Sobre os campos a bruma ondeia, devagar.
Estremecem no céu estrelas sonolentas
E os rebanhos, que vão na neblina lunar,
Agitam molemente, ao longe, as curvas lentas
Das estradas de esmalte, ao rudo som das frautas.

Anoitece...
Tremula ainda, no poente, a luz de alguns clarões,
E, enquanto sobre o meu teu olhar adormece,
Entre o perfil sombrio e vago dos chorões,
Redonda, a lua calma e distante, aparece...


Publicado no livro Poemas e Sonetos (1919).

In: MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 2.ed. Brasília: INL, 1973. v.2, p.1056. (Literatura brasileira, 12

Entre Buenos Aires e Mendoza


(...)

Onde estão os teus poetas, América?

Onde estão eles que não vêem o alarido
construtor dos teus portos,
onde estão eles que não vêem essas bocas
marítimas que te alimentam de
homens,
que atulham de combustível as fornalhas
dos teus caldeamentos,
onde estão eles que não vêem todas essas
proas entusiasmadas,
e esses guindastes e essas gruas que se
cruzam,
e essas bandeiras que trazem a maresia
dos fiordes e dos golfos,
e essas quilhas e esses cascos veteranos
que romperam ciclones e pampeiros,
e esses mastros que se desarticulam,
e essas cabeças nórdicas e mediterrânicas,
que os teus mormaços vão fundir em
bronze,
e esses olhos boreais encharcados de luz
e de verdura,
e esses cabelos muito finos que procriarão
cabelos muito crespos,
e todos esses pés que fecundarão os teus
desertos!

Teus poetas não são dessa raça de servos
que dançam no compasso de gregos
e latinos,
teus poetas devem ter as mãos sujas de
terra, de seiva e limo,
as mãos da criação!
E inocência para adivinhar os teus
prodígios.
e agilidade para correr por todo o teu
corpo de ferro, de carvão, de cobre, de
ouro, de trigais, milharais e cafezais!

Teu poeta será ágil e inocente, América!
a alegria será a sua sabedoria,
a liberdade será a sua sabedoria,
e sua poesia será o vagido da tua própria
substância, América, da tua própria
substância lírica e numerosa.

Do teu tumulto ele arrancará uma energia
submissa,
e no seu molde múltiplo todas as formas
caberão,
e tudo será poesia na força da sua
inocência.

América, teus poetas não são dessa raça
de servos que dançam no compasso de
gregos e latinos!

(...)

Imagem - 01650002


Publicado no livro Toda a América (1926).

In: CARVALHO, Ronald. Poesia e prosa. Org. Peregrino Júnior. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1977. p.52-60. (Nossos clássicos, 45