Ruy Belo

Contigo aprendi coisas tão simples


Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente

Nomeei-te no meio dos meus sonhos


Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

É triste ir pela vida


É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

e um olhar perdido é tão difícil de encontrar


e um olhar perdido é tão difícil de encontrar
como o é congregar ventos dispersos pelo mar

Mesmo que não conheças


Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo verão

Tem o amor a arte de tornar eterno


Tem o amor a arte de tornar eterno
aquele que por amor tem de morrer
e até de morrer jovem amiúde pois os deuses amam
aquele que perece em plena juventude
e assim se fixa petrifica e permanece

Amei a mulher amei a terra amei o mar


Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei

A flor da solidão


Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos

À chegada dos dias grandes


Da luva lentamente aliviada
a minha mão procura a primavera
Nas pétalas não poisa já geada
e o dia é já maior que ontem era

Não temo mesmo aquilo que temera
se antes viesse: chuva ou trovoada
é este o Deus que o meu peito venera
Sinto-me ser eu que não era nada

A primavera é o meu país
Saio à rua sento-me no chão
e abro os braços e deito raiz

E dá flores até a minha mão
Sei que foi isto que sem querer quis
e reconheço a minha condição.



Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, pág. 172 | Editorial Presença Lda., 1984

A beringela


É ela
um fruto esférico na forma e agradável de sabor
e para alimentá-la a água acorre em abundância a todos os jardins
Envolta no xairel do pé que ao ramo a prende faz lembrar
nas garras do abutre o rubro coração de um cordeirinho


Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, pág. 100 | Editorial Presença Lda., 1984

A charneca e a praia


Num dia vagamente de Natal fechado pelo frio
um positivo pássaro assegura a vida
na pedra a ocidente mais perdida
e sobranceira à água que passa no rio

Mas onde, anima naturaliter christiana,
encontrará qualquer contentamento
aquele que semana após semana
sobrecarrega o próprio pensamento?

Dizes que um verão completamente abandonado jaz
junto da placa enferrujada onde já mão nenhuma faz
parar a camioneta para a praia
Que a tarde aí é tão horizontal como uma estrada

tão ampla e tão possível como antigamente
Trémula passa mente muita gente: olhai-a
todo o seu ser é ser assim olhada
E o mar vindo da primeira solidão
entre futuras árvores de súbito evidente
está mais perto de ti que a minha mão

Alheia a estes dias perguntas-me que faço
Deito-me levanto-me estendo as mãos e esqueço
que entre tantas pequeninas coisas uma árvore de pé
transmite as estações reúne para mim teu verde rosto esparso
aonde com desgosto às vezes sem esperar tropeço
E então sou quem fui na areia mais deserta
onde houve passos risos e regressos
antes de tudo quanto o tempo depois disso trouxe
Escrevo corro e era outro o autocarro
cerrou-se apenas sobre si o mais original abraço
Perguntas-me que faço: sei apenas que esqueço
estendo braços e conheço casos tristes
tenho voltas a dar e vou à minha vida
e tudo onde passo lembra outra coisa

Ou volto a esses campos onde Deus é necessário,
à vida regulada pelo vento pelo sol e pelo sino,
aos nomes crus na cal das cruzes dos caminhos
onde às vezes na noite crescem passos enxertados primitivos
que põem frente os olhos de dois homens
Volto como quem volta ao local do seu crime
e nem a morte me afastará disto

Eu faço e aconteço eu esqueço
Tenho um nome e sorrio e sou vist…

  

Ruy Belo, “Todos os poemas”, págs. 139 e 140 | Círculo de Leitores, Dez 2000

A exegese de um sentimento


Estão os pássaros laboriosamente construindo
em meio deste dia as paredes de uma tarde antiga
Começa-lhes no bico aquela alegria
onde eu corria de canto para canto
e andava dentro dela de janela em janela

Que me trouxe de novo até à minha casa?

Podem calar-se os pássaros inúteis



Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, pág. 36 | Editorial Presença Lda., 1984