Samarone Lima de Oliveira

O Coração Sobre a Mesa


O coração sobre a mesa
não diz uma palavra.
Não pede, não cansa, não revela.
Observo, como um legista
o objeto alheio
a pulsação antiga que mantém
órgãos, intentos, entranhas, reflexos.

E súbito, em suas paredes
em carnosidades avermelhadas
surge desenhos, talhos, remendos.

Toco o peito vazio.
O coração respira, na mesa
movido por um moto-perpétuo.

Não há sístole ou diástole.

Sou eu, com medo de dormir sozinho
em alguma noite antiga.

É o telegrama com a morte
do tio Ademar.

São as lágrimas de minha mãe
na noite de Pentecostes.

É o dia em que cheguei ao Recife
com uma caixa de livros.

Na rodoviária, sentia frio
não sabia o que sentir
não sabia meu nome.

Meu coração ainda não era meu.

Formas do dia


Às vezes, ao escolher os sapatos
Erramos o dia.

E a cor, a forma,
Nos levam ao ponto primordial:
Como saímos de casa.

Às vezes, a falta de uma bênção
Nos leva ao segundo erro:
Saímos de casa desassistidos
E nos perdemos do próprio dia.

Às vezes, a falta de um aviso
De um recado
De um aceno
Nos faz seguir sem os pequenos gestos
Que nos salvam o dia.

Quase sempre
Voltamos para casa
Tão vivos
E nem sabemos
Que sapatos, bênçãos, avisos
Nos salvam a vida.

Heranças


Herdei de mais:
Agora me compete a febre do excesso.

Febres sazonais
palavras que não eram minhas
quebra ossos, janelas
arranham paredes
ruínas.

O relento
passeia em minha alegria.

Me torno o filho adotivo
que cria um sangue novo
próximo ao veneno.

Me torno
o que recebe mais
do que lhe foi dado.

O esplendor, cabisbaixo, me espreita.

A cada manhã estendo as mãos
como quem pede desculpas
à própria palmatória.

Intenção


Esta dificuldade terna e antiga
De dizer adeus
De batizar as coisas simples
Com nome e sobrenome.

A intenção de morrer calado
De desfazer os pactos antigos
Dos que vieram antes.

A saudade morna e calma
Arrebenta os dias.

Desvãos sazonais entre os ossos
Em qualquer primavera
O mais triste nas privações do inverno.

A intenção de catalogar uma por uma
As folhas que caem
Como partes da família.

A certeza de que o chão descobre
Sua chance de amanhã.

Na esquina distante
Que sempre chega.

Resiliente


Resiliente.
Assim me chamou nas dobras
A antiga amiga.

No corpo que torceu e retorceu
Ao seu centro noturno
E desigual.

M espantalho sem biografia
Aguando as quimeras de si.

A ruminação como defesa
Ou como certeza.

As brasas que ardem
No tempo da espera.

O quase dono de si.

O vaqueiro cego
Buscando um cão
Brincando com os espinhos.

Capaz de um destino lógico
De amarrar narcisos
Aos vasos inconclusos
Do jardim devastado.

De cerzir o passado
Sem álbuns, sem a matéria dos homens.

Como quem escreve segredos
Com aspas imaginárias.