Walmir Ayala

Arte Poética


A Jorge Octávio Mourão

Faço poema às vezes com a displicência
de um risco sem figura,
como a preguiça de um gesto
sem destino,
às vezes como o adormecimento
no mormaço,
como o tremor de uma lágrima
de espanto;
faço poema às vezes como a faina
de colher flores, de passar os dedos
nas águas, de voltar-me
por não ver nada mais do que sonhava;
faço poema às vezes como a máquina
registra, como o dedo segue
a linha da leitura, como a força
invisível de virar
a página de um livro casual;
mas às vezes faço poema como erguendo
um punhal contra a rosa, ou contra mim,
como quem morre e resiste e quer morrer
assim
faço poema, às vezes.
Faço poema sempre como vivo.


Publicado no livro Poemas da Paixão (1967). Poema integrante da série Sangue na Boca.

In: AYALA, Walmir. Poesia revisada. Rio de Janeiro: Olímpica; Brasília: INL, 1972. p.34

A Bailarina Gris


de Degas

PENDIDA
como de uma corola o tempo de
uma flor, ela treme:
seu rosto de vinho e maçã
flui no nostálgico acento
com que ao vento se curva, uma tênue
figura.
De chuva
é a leveza de seu olhar parado, de espuma
é seu sapato, e seu pé
informado e prudente arma um pássaro triste na
[sombra.

PENDIDA,
debruçada de si como uma lágrima
a bailarina rompe
o segredo: do outro lado é que se esvai
a rosa, seu sangue
é este espanto de que se forma o corpo
do silêncio.


In: AYALA, Walmir. Museu de câmara = Museo de camara. Madri: Artes Gráf. Luis Pérez, 1986 (Xanela).

NOTA: Título em espanhol: "La Bailarina Gris

32 [Onde ficou aquela hora


Onde ficou aquela hora
de sentar à mesa e ver
a água no vidro do copo?
Tirar da cesta o pão
passar no molho e gostar
de ver o abrir da sombra?

E em silêncio mastigar
a carne e o pomo, quente
o elo em torno da pobre
toalha e sua nódoa.

Nenhum lobo lá fora.
A comunhão completa
de olhos baixos e um canto
calando nas vasilhas.

Hoje o lobo está dentro.
Pelos cantos gememos,
sós pousamos no prato
uma fome imprecisa.

O pão nos sabe a ázimo
e o vinho avinagrado
sangra no lábio a pausa
de lembrar, sem recurso.

Já não temos ninguém
que nos dobre a toalha
e apague a luz.
Vagamos,
inofensivo lobo
de uma ira apagada.
E a lamparina, amor,
tremeluz do outro lado
como absorto fantasma.


In: AYALA, Walmir. Os reinos e as vestes. Pref. Lélia Coelho Frota. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. (Poesia brasileira)

Astromulhersubmarino


A sereia não se divorcia
do azul, nem seus seios
de búzio esgotam leites
diluídos em nácares.

A sereia lança louca-
mente o gesto como rede;
e se enovela em sargaços
pesados de bichos vivos
como línguas brancas: ostras.

Sua cauda crispa-se em desejo
de tanto à áspera pedra estar ligada,
como ao tronco robusto, ao férreo, ao musculoso
marítimo afogado.

A sereia não se deixa
desprender da triste onda, embora ilhada,
embalsamada,
suspensa,
como quadro de um impossível
tornado ao alcance da mão,
radiosa e salina.

Não se desveste da metade de peixe que a metade
sua informa;
nas tesouras extremas de cauda se estreleja,
astromulhersubmarino
azul de água,
azul de mar,
azul de nada.


Publicado no livro O Edifício e o Verbo (1961). Poema integrante da série Sirenusas.

In: AYALA, Walmir. Poesia revisada. Rio de Janeiro: Olímpica; Brasília: INL, 1972. p.69-7

33 [Um grito nos porões


Um grito nos porões
lembra que somos outro;
que estamos no outro, na dor,
como a vara
na raiz dividida.

Livres manipulamos
uma rede invisível
onde dedos e nervos
debatem-se ofegantes.

Um grito nos desperta quando sequer dormíamos,
ou quando estremecida a pele celebrava
o orvalho e a aragem.
Grito
que nos dói, corrompido
de injustiçado jugo.

Alguém que já não canta ao nosso lado grita,
e o canto se perverte.


In: AYALA, Walmir. Os reinos e as vestes. Pref. Lélia Coelho Frota. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. (Poesia brasileira)