Zulmira Ribeiro Tavares

Jiboia


Depois do almoço
Palmira jiboia.
Tem cisma com termo mais light:
sesta - de socialite.
Palmira não gosta.

Olha para o alto.
Enxerga árvores
onde há telhados.
E telhas partidas caem.

Sopra a brisa do morro
esfriando-lhe a nuca.
Mas é o vento encanado
de portas batendo.
Palmira não escuta.

Palmira por trás da modorra
espiona a vida sebosa.
Acorda. Espirra.

E o lençol que a enrola
fabrica uma cobra de giz.
Palmira não gosta.

Por que não ter como sua
uma nova figura
que lhe sirva de espelho?

Uma cobra top model -
a coral, por exemplo.

Palmira boceja. Recusa.
E o seu corpanzil sem remorsos
navega nas horas da grande preguiça.
É barco, bote, bandeja, bacia

Jiboia gozando a sesta
de gente que pode

triturar pela boca o mundo arrastando nas cheias
benesses, roedores, reses.

A mancha de cor


Se com o passar dos anos vamos perdendo os pelos que nos faziam orgulhosos por sua fricção animal e sua vizinhança dos capinzais na boa estação, 
         E, ainda, se vamos perdendo a água que nos deixava luminosos como sinaleiras, como elas atentos e úteis — isso ainda não é sério. 
             Podemos avançar nas perdas. 
           Mas, quando os dias se excedem, espichamo-nos como as sombras do poente, somos ginastas rastejadores, as sombras são nossos pijamas de elástico e fumo, elas nos levam estirados na direção do sol desaparecido dentro de sua mancha de cor. 
             Nossas sombras são sombras estradeiras. 
             Somos estradeiros com as sombras e corremos para nada  dentro da mancha de cor.

De velhos cadernos escolares


Partimos de barco em direção à ilha, pequena,
redonda e verde como a dos cadernos escolares.
No centro, alguns coqueiros.

Ao pisarmos o seu chão, desfez-se, desprendendo
cheiros de vegetação e terra úmida que se
juntaram ao de maresia. Como se no ar à nossa
volta perdurasse em novo arranjo, ilha e mar.

O equilíbrio na água era precário. Certo tremor
agia em cada um como instrumentos de corda
quando a propagação de sons tem seu início.
De volta ao barco não olhamos para trás, nem
que figura ali deixáramos às nossas costas, sem
real força remissiva.

Juízos


O amor é essa intrépida
imaginação da carne
essa carne destemida
que se julga autora.

Essa vigilância que aguarda
no recuo,
pronta para o salto.

O amor é o salto
o vértice de um pensamento
que por demais repleto
de mundo percebido pela fresta
perde os seus limites de conceito nítido:
escorre.

O amor é a perda do mundo,
o sal e a água chorados
pelo outro lado dos olhos:
o lado do impulso e do arremate
o lado que celebra as normas.

O amor é o bravo
destemido riso
de toda a epiderme rindo
perdidamente
da imaginação traída.

Abaixo da linha de pobreza


Ora vejo a linha de pobreza no contorno irregular
dos prédios, altos, baixos, ou das pequenas casas de
autoconstrução na encosta dos morros.

A linha que mais me atinge é a reta, que vai de
um ponto a outro sem desvio. Sei que nela há
números. Quais, não sei. Ainda que não tenha cor,
peso, e tangencie o invisível, é forte. Li a propósito.

Considero a linha do horizonte a que mais se
aproxima do que imagino ser a linha de pobreza.
Da cidade, ver o horizonte é difícil, ou se apresenta
com defeito. Rememoro-o distante, no fim do mar.
Deve ser de lá que a retiram, a linha de pobreza,
com régua e compasso: para raciocínio e ação.
Pois impossível que não exista primeiro na paisagem,
material, resistente. Tem de existir, como certas
fibras arrancadas à natureza para com elas se fazer
feixes, relhos, assim como servem de enfeite as
penas de belas aves.

Verdade que ao longo da vida passaram-me diante
dos olhos gráficos estampados em folhas de
jornal. Alguns diziam respeito à linha de pobreza.
Neles, seu traçado não remetia ao limite que se
tem do mar, longe, e por vezes mesmo delineou
o contorno de ondas crespas e próximas ou, além,
de escarpas, promontórios. Puras formas da
física terrestre, impetuosas, dramáticas, tocando
o interior dos homens de modo diverso ao da
linha do horizonte - que os acalenta com o sono,
a tranquilidade ou a morte.

Abaixo da linha de pobreza não me chegam ideias.