Darlan de Matos Cunha

Trevos




De uma forma ou de outra
vamos à cata de grãos que vinguem
e de água que nos lave os erros.

Anda-se nos calcanhares
com a linha do equador nos cotovelos
e o amor mastigando dúvidas

e se no verso infinito da solidão
um homem corre com outro, demente,
o dia fecha em baixa

porque outro homem foi morto
a toque de caixa, por juros pendentes.

Milagre dos peixes


 

Não recordo como eras no último outono, mas

embora passado pouco tempo, os peixes
chamando por ti, e com o assunto reclamando vistas,
fui aos peixes, não a milagres
que pudesse talvez o amor fazer; por isso não me lembro
como eras no último verão em que salgamos em demasia
a carne, e logo se fez tenebroso inverno, e sob a capa de gelo
nenhum peixe foi mais possível. Nada.

Restou a ponte da amizade.

***

Darlan M Cunha. O ar em seu estado natural  - Textos sobre letras do Clube da Esquina.
Editora CBJE, Rio de Janeiro, 2010, p. 40

João em Sevilha




Dias de cão quem não os teve, quem
não os viveu na conta da língua ?
quem não os absorveu dolorosa míngua ?
Dias de negativas, de más assertivas
quem não engoliu saparia, noite e dia ?
Somos o que à mesa pomos: a sopa
ou o amargo das sementes de mamão.
Pelo caminho há sempre alguma onda
de espanto, mas de vez em quando
os ombros sentem as mãos do encanto
e assim a apostasia e os cálculos renais
dissolvem-se sem menos e sem mais
nos dias e noites de um pão que a vida fatia.
Ó, quem não percebeu em si estes rituais,
chame-se Laura, Rafael, João ou Maria ?

*

NOTA: Poema escrito sob a lembrança, a admiração,
ou seja lá o que for, dos anos em que o diplomata
João Cabral de Melo Neto trabalhou na cidade de
Sevilha - cidade pela qual tomou grande afeição.

Teia



Visão do apocalipse é o que pensas
sobre aqueles morros fumando
mas te enganas de todo

ao pôr estranhezas no natural.
Eis o crime, normal, à tua porta
a boca da injúria vindo em ondas
 
como um jorro que as luzes
da aldeia disfarçam com ânsia
doentia, renovada, e as peças

do tabuleiro mudam de conceito
sem se darem por isso os da aldeia.

Cansados estão velhos e moços
sem prumo definido, em paz

não se dorme num batente de cruz.

Sancho Pança revisitado




Prepara-te, Sancho, para os encontros e as despedidas
de hoje, que os ângulos do amanhã não podem esperar
(serás governador, poos Dom Quixote, delirante, prometeu).

Areja estão as mãos com o sumo do espanto, e conta
aforismos e pilhérias que mantenham cegos de riso
os da feira - pura filosofia entre legumes e frutas e vinho.

Ao longe o mar, do outro lado da rua
luz trêmula, luz de melaço, sempre um teatro por fazer
num lugar por visitar; portanto, prepara-te, velho poltrão,
que o mundo te quer sempre rolando feito um seixo.

Filtro




O escritor busca incógnitas

esse demente com um teclado
e a sociedade no pensamento.
Vive assim de olho nas feridas,
no imponderável, alquebrado
à espera do imprevisível,
de vez em quando salta dele
uma lágrima ou um sorriso
cheio de palavras não percebidas.

Mural




Sentados no meio da neblina
nos muros de pedra de sua casa
os alienados captados por Lu Nan*
contentam-se com o olhar vidrado
numa tez sem expressão normal
e quanto mais lhes passa o dia
nada de mais nem de menos valia.
Talvez vejam o que não podemos.

Soma





O corpo sofre variações sob sol maior
e racha no gelo, a pressão variando
sob o salário do medo
no atacado e no varejo murmura-se
"vou me jogar debaixo de algum amém."

Na aldeia com seus climas psíquicos
deteriorados, procura-se tábua de salvação
nem sempre apta, mas tubarões há
na rampa do navio, porque corpo é danação
e tu somatizas o que não queres

sofrendo variações em ré sustenido menor.

Vapor




O amanhã demora a chegar
mas chega e inspira e respira
com desconhecido método
abrindo catarse exemplar

anodinia e metástase
abertas à flora e à fauna
ao humano, mas logo passa
e deixa para trás o assombro
pelos baldes de água fria
num punhado de mãos vazias.

Sete anéis




1.
Dar cobro aos assuntos
cobertos, nem mesmo apostasias a salvo

2.
o tempo será abolido, mãe pressa
espaço perderá memória, memória de dois tempos de verbo
coisa pouca, danação é viver
para trás

3.
nomes no muro
não há notícia de que o céu
da boca tenha caído em desuso
e o inferno
desistido de suas causas. Correr corremos
enquanto lutamos

4.
eis o homem e sua corte: fala
riso andadura
cuspo sêmen suor lágrima fatura

5.
se o peito se faz museu
onde cavalos antigos trotam sobre a inércia ou solução final
de tantos, ir ao circo - palhaços são emplastro talvez panaceia
não eufemismo

6.
os loucos estão em fila os prepostos do malsão
dispostos em fila indiana no pátio
desgarrados riem
e só baratas percevejos pulgas e ratos parecem sabê-los como são
de fato

7.
buscar pelo pormenor em falta
o que nos distingue anuros micruros ou macruros

Silensidão


A mãe morreu em pouco
tempo (mãe de quem
e de quanto tempo se fala ?
Aqui, nada se explicita),

silensidão é a praxe
neste entorno
vivalma não há

que se lhe meça os colhões
ou o diâmetro dos seios
(coisas poucas, sim
nada de latim - paucas sed bonas -
menos ainda ir ao tradutor
onde tantos se roem por if of off.

Pois bem, o pai foi de suicídio
mas sobreviveste (aqui, tudo
é breu, calotes ao previsível),
a irmã é da moda, vive o relho
mas o verdadeiro espelho aí está
de nome anamorose, sempre

deformador, reformador, realista ?

Têmpera




Reiterando sua rede de percepções
um homem vai a mais dúvidas - pedras
que a ele não lhe cabe o ameno e nem babar por metais.

Vida de voo está mais além-lá disso.

Quem sabe se os ossos de ontem, dívidas a cobrar
e se bem medida a reação dos vivos, abra-se o assombro
por trás do qual há pessoas rindo-se

à vaca solta, desatentos ao teor dos véus
em sua crista - que um homem sabe o que fazer de outro:
pasta espelho relho ralo tambor - cinzas.

Rota da sede


Nessa rota há muitas noites e dias
mas aqui não se abre voz para o que virá
menos ainda por um certo passado
com hierógligos, caracteres, ideogramas
dicionários, enciclopédias e relatórios
dando contas falsas de vertebrados
e invertebrados, mas pela conta da míngua
justiçados - para o bem ou para o mal, tanto
fez e tanto faz, que nada disso a essa rota apraz.

Nada ao furtivo, menos ainda ao lascivo,
os viajantes entram nas linhas do tempo
presente, demente ou não, praticam noções
estranhas às minhas, que assim é o embate
entre o forte e o fraco, e se venço
alguma ilusão numa troca de mercadorias
não abdico de beber luz do Diabo ou de Alá
nessa perigosa rota aberta ao benvirá.

Tudo




O trono da palavra se faz
de matéria vária, de cortes
sem sutura, língua solta
tanto do bem-posto quanto do pária

o tronco da palavra rejeita
prisão domiciliar, o pulso
em desalinho, a língua de lapsos
menos afeita ao sim do que ao não

mas não se sabe o que impede
a palavra de encher os pulmões
do silêncio, clivagem
abrindo a minha e a tua bagagem.

Teoria aérea




Sob temporal a aldeia grita

mundo gasto mundo, onde já se viu
o amor não reagir ao coma
o pavor não ter fundo?


Se alguém sonha deus na terra
e ele no céu, é viável essa troca
já agora com o fim à vista
de fauna e flora e da humana hora ?


FALSO



Em ponto morto o que estava acelerado,
sínfise
não sei o que é, sabemos só agora
das rachaduras, trincas e manchas
nas paredes e nos alicerces, tudo
parecia nos trilhos, fingindo-se felizes
todos, mas em ponto morto tudo está, a casa
é só casca de baratas e formigas
sob o jugo de outros seres, pavor nas vitrinas
na noite de luzes artificiais, sim, em ré
a velha estrutura de moer carnes
e mentes – ópera dos mortos*-
vai coroando os dias dos semivivos, todos
reagindo como um zero por trás da máscara.*


 

*: Òpera dos Mortos é alusão ao livro de Autran Dourado (1926-2012, MG)

Aningapara




[...] A caminho do esquecimento, deve-se operar como sempre e como nunca se fez. Ir aos mil meandros de uma fala, por exemplo, ou sair deles, é complicado, por exigir que mais humanos entrem na jogada, só humanos sabem o que fazem, só eles entendem de gravetos; mas só quando a queimada baixa e as penúltimas lascas de dúvidas ascendem, é que alguém se lembra daquilo que por tanto tempo estivera sob desleixo. Só então percebe-se como é que se vai a caminho do esquecimento. [...]


***

Darlan M Cunha. Umma. Editora Virtual Books, Pará de Minas. 2011, p. 146

As mudas




Atar ao mamilo esquerdo
a dúvida, ao direito a tempestade ?

O que fazer, afinal, com o sinal
de unidade na testa

de ambos ?

***

Do meu livro de poemas: Esboços e Reveses: o silêncio. Editora CBJE, RJ, 2008, p. 40

FAKE



In neutral what was accelerated, symphysis
I don't know what it is, we only know now
from cracks, cracks and stains
on the walls and the foundations, everything
seemed on the rails, pretending to be happy
everyone, but in neutral everything is, the house
it's just cockroach bark and amputated ants
under the yoke of tiny being, dread in the shop windows
in the old night of artificial lights, yes, in reverse
the old structure of grinding meat and minds - opera of the dead*
crowning the days of the living, all reacting
as a zero behind the mask.*



*: Opera of the Dead is an allusion to Autran Dourado's book (1926-2012, MG, BRAZIL)
Translated with www.DeepL.com/Translator (free version)

Reverbera




A luz descendo escadarias
abrindo porões e abismos
muito se parece contigo
abrindo a porta a desconhecidos
ventos marés réplicas tréplicas
enfim, o amanhã agora -
que a luz viaja rápido.

Barco




Se o barco se perde em meio à névoa,
e se os homens se afligem pelo aviso
das ondas tocadas pelo furor do vento,
resta-lhes - se tempo houver - a lembrança
de mímeses e simbioses, dos jogos de azar
no bar do cais, as pernas e os braços
do domingo sabendo a peixe ensopado,
resta-lhes ainda - se tempo houver -
ouvir o rumor de um sorriso distante.

Curva




Prepara-te para o tempo do não posso mais
para isso é preciso ir ao fim
saciando toda ânsia e todo rumor
preparar a estante na qual guardar
a fortuna crítica plena talvez de aversões
como um urtigão urbano, roendo
e roído, matando e sendo morto

porque todo dia ressalva iguais e contrastes, assim
prepara-te para o tempo do não posso mais.

O entorno




Voltar a sorrir, não porque seja algo natural
mas por ter se tornado inatural, não isento
de culpa, de modo que quem o pratica
está sujeito à dissonância, pelo que se diga:
Voltar ou não voltar, eis o peso
a insustentável leveza.

Ato único




Por falar em amor, o que te mostrei

era tanto que se acabou

e por falar em ator e atriz

a postura zen não nos serve
nem nas escadarias do Ganges ou da Muralha

e se no teatro Kabuki
se entra no palco homem com voz de mulher
este painel não nos serve de todo

muito embora, segundo uma lenda

e uma canção, de tudo se faça canção e caução, mas
voltando à desejada das gentes, o que me deste
lá mesmo no palco se acabou

feito peça curta para entretenimento
puro teatro de sombras.

Mundo




O mesmo de ontem; mas, diferente


cumpre presença ao elogio geral
para quem vive para além-lá
da loucura - não a tua, diferente.

Uma vez tudo imantado, resta que força
diluir, que ausência redimir ?

Rumo




Partido, o avião aterrisa
no horror, nenhum vácuo
pôde envolver a história
de sua última razia,
talvez alguma esperança

não, nenhum açúcar ardeu
na boca dos imolados.

Salmos e Suratas




Os mentirosos falam, tu os escuta
romancear e cantar maravilhas
que nem o céu concede,
e assim os enganadores
sufocam a teimosia de alguma
liberdade que possa ter sobrado
em cada um e em cada uma.

Pois é, se esquecer é danoso,
o melhor é mover pares e ímpares
e atar nos eleitos as catapultas
e os rastilhos, sem ouvir-lhes
as nênias as lérias e outras balelas
acompanhadas por atabaques
feitos de couro humano ©.
Os mentirosos abrem-se no vento
mas já não irás de balonista com eles.

Cartilha




Pisar na lei para advogar

a posse a um mandato
de incógnita mais cabal,
entrar nos conluios alheios
cuidando para que
não te surpreendam

os espíritos de porco
em convescotes homologatórios,
causas já sem causa, cuida
que não se ombreiem contigo
os assalariados do medo
pagos para desossarem
o silêncio com seus mantos
de arbítrio, lembra que
ainda hoje
será outro o enredo.

Ganas




Esconde a feiura franksteiniana, ciclópica, por trás da barba, do bigode, dos cílios e das largas sombrancelhas, sobretudo, pelo que leva em silêncio na bolsa.

Escondes tua fartura de que modo, com quais artifícios, manhas e artimanhas: com um extrato forjado mostrando saldo devedor ? Blimunda, Portugal é onde ? Longe ?*

Respondes à leitura dos aparelhos com qual tipo de ação ou de reação: contrito como uma beata, irado como um burro diante do mata-burro, resignado feito apóstolo

pelo sonho-avidez ejetado por ter sido esquecido no testamento, tornando-te outro abintestado, ou simplesmente andando e urinando, assobiando e chupando cana ?

Iscariotes, quanto é que a tua marca deve aos cobradores gratuitos, sem nexo, sem base para que pulem no teu cangote os de ontem e os de hoje ? Israel é onde ?

Atento esteja-se aos miúdos do dia e aos esboços feitos à noite, mas a vigília cansa e até mesmo deturpa as pessoas, que já não copulam, não almejam, não riem e

não condensam água nenhuma, já sem referência que não a de vigia-curral, carcereiro sem bodas, ele também um preso, dizendo \"diante dessa dor curvam-se os montes [...] Há dezessete meses eu grito.\" [...]*

*****

*: Blimunda é uma personagem do romance Memorial do Convento, de José Saramago (Portugal, 1922-2010)
*: Ana Akhmátova (Rússia,1889-1966), no poema Dedicatória, e poema 5, do livro Réquiem

Mistério caseiro




No meio das costas, reluzente
que nem esqueleto ao relento,
um pé para o norte voltado, e o outro
longe de onde fôra deixado
pelo vento nas dunas, tentado
por cães e ratos do deserto.
Em todo lugar do mundo gasto mundo
sempre há quem imagine vozes
cotações, premissas e promessas
sem agiotas, mas aqui outra realidade
mostra a marca do sutiã e, ativada
entre as omoplatas, uma faca só lâmina.*

***

*: Poema de João Cabral de Melo Neto


O prenome do veneno




A primeira das perguntas voltou
com a sutileza deixada ao largo
talvez devido à ida a portões bíblicos
quem sabe após canecas de vinho
com Jesus, pedreiro de profissão ?

A primeira em meus tormentos vingou
pois aqui está com o caule renovado
e um veneno desconhecido por mim.

Causa e efeitos




é assim mesmo o amor pode cansar-se
de se dar ou de tentar ser o que não pode
ao ficar no alto, para que o inveje os fracos
e se mordam de ódio com a sua tenacidade
em busca de luz, sim, é assim mesmo o amor
essa cantiga sem abrigo confiável
mas pelo qual se mata e se morde o próprio rabo
feito um cão desesperado.

Assim é




Uma conta pode ser sinônimo do que ela é, ou não, e muitas demandas e desentendimentos podem surgir, e os nervos incham, e as vozes clamam na arena, ninguém parece querer terras no deserto, mas querem, vendem até a mãe e matam o pai, e exilam herdeiros, quando não lhes dão outro tipo de sumiço, isso porque assim é o cotidiano no qual uma conta pode ser ou significar extermínio. Lembre-se que há muitos tipos de conta, não só as financeiras, há contas mais pesadas, explícitas ou veladas, pelas quais gerações se mataram - preto no branco, branco no preto -, mas não são nunca um jogo de damas, ou entre damas, embora as damas, donzelas e velhas também tenham e usem seus recursos, porque não há como viver sem tramar.

*****

Azáfama e lassidão


No norte as coisas são vistas
como devem ser, não como são,
o implícito e o explícito no mesmo
vaso medrando seu verde, céleres
mas não entrançando suas raízes,
e assim a mesma cantilena
é a correria entre cegos e pernetas

no sul, a mesma idiossincrasia
no leste há uma investidura igual
à do oeste - todos os lados cientes
de que uma escravidão plagia outra
e assim a eternidade o infinito
existe. Renovação das águas sujas.
Noite chegou outra vez...*

*****
(Milton Nascimento, Márcio Borges, Lô Borges) *

Antes da sátira




Um homem deve ser capaz de adotar
o improvável, de buscar nele a garganta
as perdas em diagonal, furar o bloqueio
do entorno que lhe vede os caminhos ao erro.

Um homem tem de se suprir
daquilo que depura: a dor é mãe da cosmogonia
pedra-ímã, pedra-senão, enfim
não desfiar tempo contando minutos -
que todos eles enganam de um modo ou de outro.

Osmose




O pescador remenda a rede com a qual cerca o mar.
Sal e algas em seus cabelos o denunciam artesão
da água; ao largo, alguém faz um cinto, odor de boi
no ambiente, por osmose
e por intuição se faz o que deve ser feito, eleição instintiva.

Entre o bar e a igreja, as vacas; no adro, as velhas
tomam a si as cores do mundo, rezando, sutis, quase levitam.
Mundo, vasto mundo
gasto mundo do qual, por osmose, sei algo.

Gênese




Desde sempre a rampa se repete
no inconsciente mais sutil.

Lugar de subir e descer, que nos enforma
o estro, um cão qualquer abana ali o rabo

e se infiltra entre as estrelas, alheio à trama
e seu concreto (cápsulas de cianeto).

Rampa por atacado e varejo, as pirâmides
contam histórias assim: de se ir ao céu

de se ir acompanhado à câmara final,
o que desde sempre se repete, inconsciente, afinal.

Sinais não antevistos




A vida lhes foi assim de árduo em árduo
nos atos e ausências, de fatos a fetos ela foi
de fêmeas displicentes e machos dementes
a vida lhes ocorreu assim, pelo que não veem na cruz
arremedo de luz, sentindo que a vida
não se cansa de esperar, espantam-se por isso
por não estarem sozinhos/as na trilha
vivendo apenas de esperar o fútil e o inútil -
esperar passou de verbo para realidade.

O retorno




À reiniciação do fogo na aldeia fique-se atento
sob pena de ter lascas de mármore
sopros com vidro e corte, ciência de morte
de pé à porta, como um aviso
de que a heráldica com a sua velha prática
saiu das salas e corredores e já mostra ser a mesma.

X e Y




Mal saído do aquecimento
e já em dois cantos ou cantares de azar
dividido o amor, mostrando que o areal
quente, às vezes, mente, enquanto distorcem
normas os amantes ?

Aeiouar*




Comigo-ninguém-pode é o nome
de uma planta tóxica, um nome,
e se há muitos nomes e sobrenomes
há também quem não tenha um
ou o tenha sujo de tudo, lembranças
de trastes - fezes cuspo urina mênstruo e desprezo
mas a vida é minuto, e o suicídio é generoso.
Aningapara me chamam.

Mensagem




Dia após dia, viveu o desamor
sentindo os pensamentos de satanás
queimando sua boca, o destoo chutando-lhe a bunda
num canto qualquer da casa, nas brenhas do quarto
porque assim é o pudor: de evitar-se
a mensageiros.

Café com gengibre




Dia sim, dia não, os tipos alternáveis revidam com os pés
ou com as mãos, e se em nenhum dos pares encontram pulso
aprendem que correr atrás do vento, também isto, é vaidade*
e assim me pergunto para onde levar ou o que fazer com o cadáver
que recolho dia após dia, que me encomendam day by day
em um regime de estrita confiança, um contrato de mútua esperança
de que essa fonte se faça de mais e mais-valia
e que depois de tudo, de tanto me alternar em vão, de janeiro
a janeiro, tornem a voltar as nuvens, depois do aguaceiro.*

***

*: Eclesiastes

Enfermaria




Rumor de sombras antigas afetam o inquilino
do torpor, seu equilíbrio preso a tambores
de couro de desconhecidos animais,
o rumor persiste sobre a vítima
que quanto mais se afasta
mais lhe exigem distorção entre o real e o imaginário.

Fuse (Classes with my Mom)



The hands say: Be strong and satirical
at the same time, do not be a mere user.

The feet say: Keep calm, do not rush, remember
that erection is important.

Keep calm, don't run, because nothing can be done
against your weakness.

Octávio Paz não disse




Antes e depois, a mesma coisa entre os dois
as mesmas costas entre os dois; depois
um graveto de entendimento fez crível
o fogo na conta dos dias, la piedra caliente
da fala - suas raízes embebidas não em narcose
mas em mímese e simbiose, com alguma jura
quase de todo esquecida entre silêncios sabendo a cal.
Assim, depois de tanto, crescendo sutil, novo afã
entre os dois - pedras calientes, flores de sal.

Passeio a esmo



Muitas vezes o poço seca
vai ao fundo todo sentimento
a percepção caindo no vazio
o tato perdendo-se sem idioma
dicionário incompleto - o mesmo
que se calava diante do inevitável
não dormia com o imprevisto
não doava sangue aos dias.

Cravo e canela




Lembra-te daquilo que o político falou,
o que jesus calou, o que a puta gritou em plena
reunião do comitê, lembra, corpo
o cansaço exige pernas e braços, exige
que se requente o assunto abortado, o tema da salvação
quando não o da solução final. Lembra.

Estufas




@1.

Sem delonga, aviso ou pedido, entrou aqui um tipo estranho: retilíneo, pálido e magro, notei sua mão esquerda paralisada devido talvez a tendões seccionados, algo assim, suas feições diziam que passara por situações adversas. Entrou, de pé ficou, abriu os papéis sebentos que carregava consigo e, algo tenso, começou a ler, pareceu-me que de modo aleatório: "y pues no ha criado el cielo ni visto el infierno ninguno que me espante ni acobarde..."*

@2.

É mesmo assim a juventude em seu fervor em Buenos Aires, em seus protestos nos EUA, na Índia, na Palestina, nas profundas dos infernos, ela é mesmo assim, ciente de sua apostasia, ciente também de sua impotência, devassando os ouvidos dos senhorios, abre portas e janelas de ruas, becos, avenidas e alamedas, enfim, a decepção traz o furor, e não há nada mais paralisante, triste, do que uma infância já mostrando o que será/terá/fará na juventude.

@3.

Uma canção cubana diz "vivo en un país libre / cual solamente puede ser libre*


*****

*: Miguel de Cervantes. Don Quijote, cap. XLVI, p. 414 (ano 1605)
*: Alusão a Jorge Luis Borges. Fervor de Buenos Aires (ano 1923)
* Sílvio Rodríguez. Pequeña Serenata Diurna

Dissolving boundaries*




Antes de mais nada, descalçar luvas.
Limpos de excelências, pedras nos rins
fome e sede e nenhum sono, romper a cerca
antes de mais nada, gritar a que propósito vieram
(não viemos por teu pranto)*
limpos de exceções que o redemoinho dá, entrar
no terreno minado, calçando luvas
encher o terreno. Nada de ovelhas, pastores
morreram. Viver é acomodar fronteiras ?

O endosso




O que já não existe convém a quem ? que modos furtivos
alcançam o que já não conta nas estatísticas

da Pressa ? de recheio em recheio, como se safa da realidade
o furtivo, este novo escaravelho do diabo ?

No lugar do inverno às vezes se quer estar no lugar do inverno,
mas a que nos vêm tal desassossego, este endosso ao avesso do que é vivo ?

Cume e cúmulo




No cume das coisas está

o por trás do fato: acalanto
ou suicídio, leis ou perda
de memória, cúmulos no céu
avisam sobre o clima, porém
o cúmulo do espanto instrui
que em toda ação falta algo,
de tudo o que nos infesta
nada se completa (então
é preciso estar atento e forte
alheio à sorte), avisa
que nunca se atinge de fato o extremo
e que no amanhã, no ontem
e no agora é preciso saber

que um barco com avarias
é o que se é vida afora.

Escuro-escuro




Arredio é o dia, arredia a noite,
tanto que ambos não se dão,
não se encontram para nada
embora respingos de um
no outro, e essa distorção
apena o homem e a mulher
ambos vivendo em ambos os lados,
levados pelas duas partituras
que os fazem sentir que são escritas
em ré sustenido maior.

Clareia



Escuta: não te iludas
em buscar tempo perdido,
flores de plástico na mesa
triste, vazia, não
não sairás vitoriosa
deste e de nenhum outro
encontro, seja ele um
boi bravo – e tu sem cancela –
seja ela uma ventania
de largo espectro. Entenda.


- Darlan M Cunha

COMITÊ POPULAR ( a praça é nossa)



Sempre se disse que o próximo passo
só será igual a ele mesmo, mas que talvez

já não haja tanto espaço
para o que dele se pretende. Então, quais noções
serão cortadas pela raiz ?

quantas dúvidas a mais terá o futuro, se
ainda só se fala ou só se joga alto no escuro ?

***

RETIRO



Nessa terra que agora vês, fechada em si,
mas não a salvo de todo, em que pese o tom
de seus cálculos, a essa terra volto, contigo

por aprendiz, sem vezo de obrigação, saiba
que aqui se esfola padres e se come porcos,
nessa terra sem palavras, ninguém se empedra

sob nenhuma dormência, lado a lado com
a dúvida, os nativos matam, sem peso na alma,
o que não existe: o amanhã. Estranha aldeia.

***

Novo




Entender-se com algo maior
do que um rastilho de pólvora
nos calcanhares e cotovelos,
cogumelos e injúrias no café
da manhã, enfim
algo mais do que febre terçã
é colar o braço ao do instrumento
melhorando o prumo da casa
para que o oco não cresça
mais do que o lance de sol
na parede do fundo (é a cabeça, irmão)
e que o ano vá como possa.

Adubos



Não retendo longos pensamentos que consiga desenvolvê-los e publicá-los, mesmo assim escreveu alguns romances, sendo que de fato é de criar textos pequenos, com batidas continuadas na canga social. Embora não seja um levantado do chão,* acredita que isso faz toda a diferença,* e assim repete o poema alusivo ao fato de se vender mentiras no mercado: "cheio de esperança, ponho-me na fila dos vendedores."*

***

*: Alusão a José Saramago e Robert Frost
*: Bertolt Brecht. Antologia Poética, poema Hollywood, p. 44

Decúbito




O morto me olha com um misto de pena
e desdém, olha-me no fundo da lama
dos meus gostos intransferíveis, minhas aulas
de dicção libidinosa, e o morto parece saber
de coisas que o próprio diabo desconhece;
mas que defunto é este, com tal ousadia
sobre a minha noite e o meu dia, que mal consigo
estar de pé diante de tal vidência, vidro e corte
quero rasgar o morto e reabrir caminhos
rumo a mim, ao que sobrou de tal encontro
e tal despedida.

Grãos




Pousa ao largo dessa estrada o teu cansaço
e o dos outros, todos em fila indiana
rumo ao que também será tua
medida. Cansaço é isso: imolar-se
até chegar a ele, sem remissão de recado algum,
torcer para que os grãos que lançaste te vinguem.

Circense




Um animal detrás de uma teia de metal

olha o mundo com a apatia dos zumbis,
que é muito transtorno para um bicho
estar impedido de tudo, então, chorar
é o melhor tédio, e o animal se amua
e recua, avança a pata que alcança

o nariz e se coça diante da moça - mossas
ambos as têm - que é assim a vida de bichos
na esquina na praça no mall no adro
no circo no qual nos damos na linha de frente,
ouvindo com nitidez o riso solerte
da sombra, os braços do amor caindo
do trapézio. Aonde quer que se vá, um animal nos mede.

Trasgo




Babuja esse prato essa bandeja essa cama
suja esta manhã e amarra com a tua sátira
a distância entre os seres cada vez mais
rabujentos, tu podes porque és um trasgo
e a tua gênese te concede oprimir pela sátira
a pátina dos baixos mentores, a dança dos falsos
e o sono dos sujos, tu podes e deves minar
a calçada a ponte o salão de festas da aldeia a fé.

Noctívago




Lembra que nem tudo é questão de se manter

de quatro, feito rã ou pato, senão um ganso
manso de todo, lembra que quase tudo tem ais
é questão de visão dupla ou tríplice, ou de nenhuma;
enfim, questão de um ser mais e o outro ser menos pesado
que o ar, menos ou mais acessível ao social (isso traz
gastrite, insônia, pruridos morais).

Casa dos (g)ritos


O amor vive alheio a ele mesmo
vive assim atado ao incerto
tanto que várias vezes ao dia
a casa dos gritos que ele é
perde o rumo mas retoma o passo
fazendo-se passar por caminho
que tudo recebe e tudo dá, de entender
cada lance da escala proposta,
de saber diferença entre água e vinho.


Na praça, o herege e sua visão do todo:

"Cheguei antes de mim ao mundo,
e quanto mais sabia, menos cria
em pódios e sermões, nas aventuras
políticas e nas desventuras da fé,
no conjugal e nas sociedades anônimas,
nos anônimos e nos medalhões;
e quanto mais me vi entre a mímese
e a simbiose, entre a premissa e a catarse
o ser e o não ser, mais acedi ao murmúrio
dos desencantos e à grita
dos desacatos, à sanha das dragas
roendo o que o tutano guardasse.

Cheguei antes de mim ao mundo,

e nenhum espanto me conjuga ou conjura,
valas não me quebram a vontade consciente,
para agir, e nenhuma promessa deita-se comigo
ao ar livre, em nenhum abrigo."

Labirinto da filosofia




Entre a vida (rasa pólvora)
e a inenarrável algazarra da morte
é preciso estar atento
ao que há e ao que não há
para se viver e, quiçá, entender
o próprio entorno

assim como a criança entende
que está chovendo, que a mãe
também se reduz a ser chuva
e que suas lágrimas são cinzas
(breve arquitetura do choro).*

Entre a vida (rasa pólvora)
e o selo final (muda glote)
o que há de fato, e o que não há,
o que pode deixar de se cumprir ?

Rostos




Bendito seja eu que não tinha esse rosto de ontem
nem de trasanteontem e menos ainda o rosto do amanhã,
porque o amanhã não existe para os mortos, e tu e eu
já assim estamos: debaixo do limo, sim, há tempos
a terra nos salga, lembra: em certas aldeias ainda se é recebido
com salva de prata contendo sal e pão, mas já não somos
admitidos, nem um e nem outro, portanto, maldito seja eu
maldita sejas tu, aclimatada estejas tu também no que
te cabe neste novo infernal latifúndio.*

*****

Neste poema há alusão a Fernando Pessoa e Cecília Meireles (ambos na primeira estrofe)
e João Cabral de Melo Neto (última estrofe).

Certas dúvidas da Madame Min


Aonde terão ido os que não abriram a boca
em nenhum dos três tempos,
que negaram três vezes três
o costume da fala entre si e com o entorno ?

2.
O dia segue conosco, não termina
à meia-noite ? Se o amor exige
salvas, também impõe ressalvas
porque no amor não se assenta bem o formal
sua estirpe é de uma dimensão
para além-lá de matéria e imatéria,
e assim ainda falta algo a ser decifrado,
pulsando entre essas duas instâncias.

3.
Se a noite não desata laços, é que o dia
colheu tantas curvas em pedra
bruta, viu tantas frestras minadas pelos dois
lados da luta, que só lhe resta
dormir num pasto de lenha seca, tombada.

Trilha


A culpa às vezes se excede
e a vítima e algoz de si mesma*
não escapa impune:
enlouquece, suicida-se
sob tal argamassa por ela mesma
feita, misturada ao revés da razão,
e assim a culpa (arrependimento
vem tarde, muito se diz)
medra de modo sutil, de maio a abril.

*****

* verso de Dante Milano, poeta (RJ, 1899-1991)

Tua Vez


Morre-se de contínuo, ene vezes
ao dia, e isso é mais do que um espanto
grassando pela grande esfera
é mais
do que pode o fogo

no imaginário
de arcanos e decanos em dúvida, o redemoinho
puxando o barco água abaixo
nenhum sossego à vista

para quem se vê condenado à crista
da onda, ciente talvez de que morrer
é estar vivo, esperneando
na hora extrema de já nunca mais se ver.

Gataria




Os gatos no cemitério

pardos negros ou azuis
vagueiam e se amam
afeitos a si mesmos
dormem o sono dos justos -
esse coadjuvante da saúde
todo contrário ao estresse
que aos gatos lhes toca
deitados na sombra e no limo
terem um sono diferente
de outros inquilinos.

Hammurabi




No tempo dele, falsear grãos
ungia com punição exemplar
os faltosos, que a terra,
sob código severo, acre como
lâmina em riste, sempre exigiu
cuidados e enviou recados
sendo pouco todo esmero
no lanço de grãos sobre valas;
e se eu paro e tu te calas
diante do clima imprevisto
e do que podem os homens
em sua pressa por caules e brotos
ainda que às avessas da lei (sem raiz
parece a gênese de certos homens,
mas quem falseia perde nome),
mais afiada se torna a lâmina
na feira de rua, em silêncio, quase nua.

Das repetições




Os pés e as mãos são extensões de um ter
e haver naturais, partes de um maquinário
ferrenho em diluir dúvidas, quanto em fazê-las,
aprimorando intentos nunca de todo claros, tortos.
O nariz às vezes sobrevive aos olhos, estes, sim
linha de frente de um combate sem trégua
mesmo para os cegos, mesmo para os mortos.

Vulto




O exercício de esperar na alça de mira

dias a fio é o que convém ao caçador
aflito pelo vulto que não se dá
à lupa, ciente de que rochas e árvores
têm ouvidos, mas
caçar tem refrão - menos o sim do que o não -
e assim, às vezes, o obsessivo mirar
não serve a quem, por trás da árvore ou da neblina
das palavras (caçar exige silêncio), se perde
na selva de memórias nas quais os tiros
saíram pela culatra, puro exercício de inquietação.

Fantásmico


Arma branca é o nome genérico
da lâmina em seu mister de regular o tono
muscular, o oco psíquico, de abrir picadas na selva
ou de servir de enfeite na parede
senão sobre a mesa de centro.

Eis a katana, ali o punhal malaio e a serviçal peixeira
porque o mundo precisa ser escamado, tomado
de vícios que sempre foi, há quem o queira
numa trilha reta como a de um trem
(fantasma ?)
.

Nômade




Vastidão é o termo para um leito seco

de rio, por onde flui a fio de espada
a vida passada a limpo, ou não,
por vascas razias desertos sermões

algas mármores gavetas e outros zelos, ó
vastidão é onde repousa o talvez
a dúvida que certos nômades
nunca abrem em si e nos outros, firmes
cientes de como é único
sair das luvas e das galochas
das gavetas onde se guardam os açoites.

Noites em branco são longas, gritam.

Kalimba




Chegaram por ali, dos primeiros aos últimos a mesma sina
de apatia pelo jogo marcado nos porões de uma singradura
eterna enquanto durasse - muita onda rolou e se quebrou
até que as pernas e os braços da espera se juntassem
e a sina de apatia se levantasse das perdas e danos
nunca de todo sanados - o diabo sobre a colina
no convés e em todo lugar a ausência de deuses protestantes
ateus pagãos e cristãos, senão de africanas divindades, sim
vieram por aquele corredor de sal e estrelas apagadas
os homens e as mulheres com algo mais do que essa kalimba.

No ar




Que rapaz é esse, de onde
o peso que às suas costas se prende
feito um quisto, um nariz
arqueado ou adunco
já na hora mais clara do dia ?

Que ragazzo é este às portas
de cidades invisíveis com seus segredos
um por um imaginados (pode haver busca
mais excitante do que a que se faz
sobre o que é invisível ?)

Que boyfriend é aquele pelas ruas
zanzando, alheio a tudo mas não ao mundo
que o mantém sob febre e cegueira
quiçá para a vida inteira ?

Que cantor é este de estranho pranto*
que nem é rock e não é nênia
que não se dá à cama ( a rua tem força)
e vive assim como que viúvo de um drama

senão melhor dizer "de uma chama" ?

***

*: Alusão a Pois é, pra quê, música de Sidney Miller (1945-1980)

Estilo




Nascido na madrugada de uma quinta-feira
aos berros (natural que se reclame o que se perdeu),
panos de lado a lado, bocas e olhos e mãos cheias de usos
risos cercando-lhes o retângulo, nem pestanejou
rumo ao colostro, e muito dormiu, mas
uma vez desperto, ainda hoje cobra caro toda iminência
de perda, salga e envenena o preço de cada prumo
nas aldeias urbanas e nos ermos agrários
conjugando o verbo aeiouar
como quem desinventa a matéria, alijando de si
as madrugadas e outros uniformes cotidiáridos.

Glossário de horrores




Nesta prisão psicológica, visitas acontecem. De manhã ou no fim da madrugada Frankstein vem de visita, mormente quando se está de ressaca a madrugada tem cara de Frankstein; à tarde vem Maga Patalógica, e a noite traz a espavorida Madame Min, de quem, a verdade seja dita, há fãs confessos, e assim é que a seriedade, o jargão e a libido se destramelam quando se revê tal criatura, e te perguntas: - Das situações várias, adversas ou não, o que tiraste, o que guardaste ?

Um velório a cada turno



Velório diurno, na noite do enterro, cercado pelo ambiente de sempre ou de quase sempre, acordou, mas não se levantou, ficou pensando com algum esforço, ainda flutuando na noite do enterro, sem saber se réu ou vítima, amnésia total, sem saber se vítima e algoz de si,* percebeu um rosto, outro e mais outros, mas ninguém lhe preencheu os requisitos da empatia, não conhecia nenhum daqueles traços, daqueles poros nunca sentira, com certeza, nunca lhes sentira o suor e o odor, então, onde e com quem estava ? à mercê de qual embuste estava, mesmo já estando na única dimensão na qual não é possível digressão alguma, nada a cobrar, nada a postegar, nada de c'est fini, nada de pequena morte, e outras tolices grassando nos currais, hipódromos, bacanais, plantações de girassol, de beterraba, enfim, onde houver homem e mulher, e outras encruzilhadas, desvios, ingências mil.

*****

*: Alusão a um verso de Dante Milano (1889-1991)

Diamantina




Onde ouvires gemidos e súplicas sob tenazes em riste

não te vás de chofre: ouvir é preciso, navegar
é secundário, aqui onde os brilhos da terra - foscos
ou lascivos - atraíram venturas e desventuras amarelas

pedras verdes ou de um branco translúcido, amargo
pelas contas que só as carapinhas podiam contar
essa história eivada de sobe-e-desce.

Eis Diamantina, a dos garotos músicos, onde parei
nos acordes dissonantes de um mamute de nome História,
que assim é o que sob pedras se esconde: dura de muito durar.

Água riscada




O navio aporta, ninguém recepciona
nos domínios do casco não há som
nenhum repasto no navio

vazio, então, onde os marujos
e os gatunos de cruzeiro
vagando seu riso pelo convés ?
Não, não há nada no navio calado, incapaz de levantar

âncora. O que houve com quem a bordo
se casou, com os botes o que houve
que a capela foi saqueada por alguém
com pressa de viver
de não morrer no navio que sozinho aportou ?

Migrar




1.

Migrar por uma necessidade imperiosa

e não como este abajur
sendo levado da sala para o quarto

migrar é sina muito antiga, está na primeira
página, no primeiro mar, na primeira trilha
que o pavor abriu.



2.

Numa igreja em Roma uma moça toca
sete sinos ao mesmo tempo (títeres ela toca)
mas não consigo desvendar os desígnios
divinos de nenhum deles - graves e agudos

todos entram e saem de mim sem deixar vestígio
ao passo que a moça parece dar-se a eles
como a gazela e a girafa

ao rio:
pernas abertas, volúpia e medo crescentes
que o demônio delas está noutros dentes.

Nove círculos ou mais




O Diabo agarra-se na crina da mula
esporeia a aflição com o fogo de sempre
no seu jogo de mestre da sombra
tomando a si a depuração dos crentes,
que o Demo em sua elegância
em sua presteza e leveza de intentos
cava e escava, tece e retece em torno da soberba
o fio condutor ao melhor de sua Casa
onde o amor vai de penetra
mas nenhuma queimadura sara ou vaza,
e o castigo, segundo o povo, vem a galope, não se atrasa.

Reflexos




Às pequenas coisas, fortuito, quase casto, me dou
procurando na mímese saída, na simbiose entrada
e nada que me seja estranho deixo que parta
sem ouvir o imponderável, ver romper-se o aquário
de onde o sorriso dos peixes, pois nada que me seja estranho
deixo partir sem passar por baixo do beiral do lado sul da casa
onde andorinhas babam no ninho, e de onde se percebe
no outro lado da rua a altivez tão comum
a quem deixa para trás parte da vontade (se não o todo),
e então que vá aos pequenos marcos >>> óvulos insônia colmeias
música, talvez até mesmo ao trajeto dos lemingues.

Possam guiar-me os meus animais *




Rota natural de pedras e limo, talhos e medo
não há caminho igual a outro em lugar nenhum;
existe, sim, o credo de que a cascavel avisa
mas homem não se dá de avisar a vítima, de escutar
tanta semente boa na boca do silêncio
enquanto a procissão eleva o santo e o padre
encara a moça.

Ó eleição pelas vagas estrelas da ursa maior
novos caminhos à espera de extraviados
o homem é mesmo assim de só se achar de fato
se se perde de todo, sem vontade consciente para agir
o caráter delinque, mas algo de amor persiste
no homem que de si desiste, algo dele atravessa a ponte
e espalha contos romances alguma poesia - seu todo sem corte.

Anelo




No jardim ao lado
uma banda respinga canções
logo de manhã leitoa no rolete, ciência
para os fogos de artifício (para os de armistício
a história é outra),
canários e maritacas no jardim
da vizinha uma hera me adverte
que solo bom é o de clarineta em dueto
com
viola - pura demência.

Código de conduta




Venal que és, não vacilas

em ser uma sexta santa
ou black sabbath, um passo
entre celeste e infernal;
mas dívidas põem ovos
pelo que a mão ossuda virá
a cavalo, melhor, sutil
feito aranha, um peixe
uma biba, pitadas de veneno,
porque outros também podem
se fazer de bíblia do diabo.

Endividados com a clareza




Surgiram com um nome sem sobrenome
sem origem palpável o dono e a dona
fazendo frege na aldeia onde o rumor cresceu
(e porque não disseram nada...).

a aldeia pôs a boca no solstício
sob tema geral - signos, noites de palpites
convites e despistes sobre a real intenção
dos intrusos (segundo os aldeotas)

até que, premido, o espanto encontrou vento
contrário, e para outra aldeia se foi a outras
ilhotas, a outra semiótica.

Lâmina




A lâmina que abre o alimento fere a tábua
com riscos que lembram a peruana
Nazca, ó Belzebu, tal cozinha é o avesso
do que conheço de cortes e de fogo
em alto e baixo relevo, e se a ela me atrevo
mais me quero distante dessas paredes
com enredo de palatos em lascívia, nenhuma fobia
no ambiente onde a faca abre, corta e recorta
convidando a que se abra a boca e se feche a porta.

Conservatória




Ouvir de leve cada tendência, cada naipe
pondo assim o teu nome na pauta do dia
no que houver de sustenido e bemol
soltos pelo siso da flauta e pelo suor
do trombone escorrendo pela rua

com algum tema novo para velhos
enamorados, vá lá, para jovens
pendurados numa sextina, que um bandolim
já assevera ter reinventado a roda
de samba, então, por mais
que possas cantar a tua apologia à Musa
através de um staccato ou de um improviso

em sol sustenido maior, ou menor, melhor
que vás à praça e subas na locomotiva
indo em busca do que talvez ainda não existe.


2.

Duas peles, dois tambores vi rufarem um hino
e a mim não me pareceu estranho
que ambos tanto se dessem
nos abertos da aldeia
tanto se dessem zangão e abelha
um ao outro, inquiridos de distância prudente
por quem um dia tambor se fez couro de ovelha.


3.

Pareceu-lhes a todos terem sentido bem
o que o som lhes dava: o fim do cansaço
vindo de cada boca e de cada braço de instrumento.
E se ergueu lá mesmo um monumento ao silêncio.

Elementar




"Só amanhecem o grão e a solidão" - diz o poeta*
pelo que riscam os dentes
no ar os de sempre, lisos de vontade
a neblina desgrenhando o teto
da mata próxima, cobrindo os espetos da monstrópole, hoje
sangrar é tema compartilhado que a rede encesta:
só adormecem o sim e a espera.

Madrugada




Se houver um grito a mais na madrugada
seguinte, não será meu, porque estarei fora de questão, morta

de medo, morta de tudo na madrugada que se aproxima com o nome
do amanhã e sobrenome de órfã. Assim será, mesmo

se não te parecer viável tal assertiva desta nativa.
Repito que se houver outro grito na próxima noite

não serei eu, de cima de uma ponte, à maneira do norueguês, a soltá-la
fazendo círculos rumo ao improvável, ao imponderável

ou apenas ao desejável de cada um.

Quase esfinge




Um lugar para o estudo da astronomia - esse veio da grande anatomia -

precisas saber que corpo celeste te afugenta de ti
que emagreces a olhos vistos, feito um jequitibá
doente, um cristo em vias de deixar o teto do prédio, nédio
que és, urge que venças tal consumpção, lembra
o peixe morre por falta de toca.

Vazio atrás




Voltaste aos poucos, algum receio
dedos fechados e a tez com pouca cor
chegaste aos poucos, a cama está fria
deserta esteve a cadeira na mesa posta
mas enfim voltaste com um zíper na fala.

O que houve, que tanto te calas
como se um tatu revolvesse teu cadáver,
como se uma volta na fechadura
te mandasse prosseguir viagem ?

Voltaste há pouco, e as cores mudaram:
o azul é lilás, marrons as íris do pássaro
(ainda na gaiola), o que era verde esboroou-se
de vez, e o que foi mão de coçar já não alcança a tez.

Como se vê, houve mutações por cá.
O que se pensava fé no homem
já não tem casa, nome ou sobrenome.

Os sete buracos do corpo




Atenta, pois, ao que se há de se mesclar com o fracasso
não com o acaso, que este é de cepa diferente, embora
possa ceder a um e outro espectro, a uma e outra
anamorose, è vero, a lei foi feita para o desacato

continuado, sendo a sina maior que move o humano
demasiado humano,* tornou-se genética, psicologismo
mas eis as mudas do vinhedo visto do terraço de onde alguém
se jogou, ramos de arte que alguém na sacada desenhou

filhos e filhas dispersando-se como dunas, valores na bolsa
concentrando-se, ah, como servem os nove buracos do corpo
solícitos diante e debaixo de tantos pesos de agravos
e latências dos ofídios em seu ofício. Atenta, pois, aos nós

das bravatas rumo ao rés do chão, já sem escolha
entre o sim e o não, nada existindo entre a nascente e a foz.
Gesta, gasta-se em ti a inenarrável alegria das somas
bem como um livre exercício de inquietação.*

***

*: Friedrich Wilhelm Nietzsche. Humano demasiado humano
*: Osias Ribeiro Neves. Livre Exercício de Inquietação

Da família das alusões




"Se um boi, indo pela estrada, investe contra alguém

e o mata, não há motivo para indenização."*

Se um homem, indo em meio a uma plantação
que não é sua, come da mesma, e se farta
de sono e de libidinagem
solitária, este homem será elevado à nona
potência das cobranças: Como se fosse uma boa constrictor
quebrando os ossos
e a respiração de um novilho, fazer-lhe o mesmo.

Se um nome sem guarida, sem família e sem outro rastro
da condição humana, animal, estende a mão
a inquilinos do prazer, o que fazer?

"Decerto, não ouvirás mais..."*

Lugares




Conheço um lugar sem nome e sem datas

cobrindo o ir e vir cotidiano
onde inexiste o hábito de roer unhas
e assim, por exemplo, o lar se torna um
suborno difícil de ser aceito
um laboratório que se abre de colmeia
mas é pesadelo cobrindo o trajeto
garagem-escada-sala-banho-quarto

uma aldeia comum, que não desmoraliza o espanto.

Conheço um lugar com nome e datas
cobrindo o ir e o vir da fala das ruas
nas quais, após lutas, vige o hábito de se roer unhas
e assim o lar se torna um suborno
fácil de ser aceito (livros na varanda, bike na escada)*
neste laboratório que se abre de colmeia
às vezes pesadelo cobrindo o ir e o vir da sala ao quarto
enfim uma aldeia "que desmoraliza o absurdo".*

Conhecemos, sim, ecos imaginários.

Full screen




No início não foi a roupa nem o pudor ou o medo e a fé.

O medo chegou com a invenção da fé no além-lá do oriente
crente, de algo da jactância de muros metódicos
pergaminhos em locas, mar aberto mar de fuga
a bíblia do diabo, yes

o medo chegou e tornou-se "genética psíquica",
veio com a invenção da roda de castigos divinos tornados hinos
ao breu; por outro lado, convite satânico de gozos inexcedíveis
para os transgressores/as.

No início era o Nada, e o Nada valia urros nos campos
nas grutas cumes gelados e na correria geral por uma presa
até surgirem ideias como a de se criar armadilhas
para homens e bichos. Andando devagar, depois, célere
de perder estribos arreios sela freios
os anelos e o respeito

o homem e seus signos.

Mapa




Malas têm histórias - roubadas extraviadas trocadas esquecidas -
carregadas pelo sóbrio e pelo delirante
uns dias lhes foram de cão, outros de cristais entre algodão.

O bar assoa o nariz e ri da aldeia que não viaja, bagagens há
que viveram tempestades e ficaram num terminal
pelo que têm o que calar e o que contar de ti e de mim

do mundo, enquanto ajustam costuras e zíperes no couro gasto
(deixe no lugar cada adesivo, eles nos lembrarão das trilhas).
No fundo do bolso uma moeda extrangeira; noutro um vazio sem fim.

Arar em círculos




Um dia, sonhando acordado, entraram na cama

premissas e promessas, lírios e delírios
do campo e do asfalto, drama de polvos
sépias e camaleões vendendo eixos de conduta
ao paralisado, bem e mal amado pelas criaturas
com um ponto em comum: o rabo: anuros micruros macruros -
o que os denunciou a mim, de rabo preso sem fim.

Esboço




Não fale de ti
fale do Outro
em ti, comoção
afinidade eletiva
a mais e a menos valia
o que quer dizer

fratura ?

Hesíodo




Os dias custam caro

os olhos da cara
o dorso do leão e da leoa
a paleta da sépia
o ânimo dos hemisférios

tudo sob peso aumentado
os trabalhos e os dias
nunca livres do bolso
os dias custam os tubos
ao coração e ao cérebro
nada lhes resta senão azedarem-se
criando corvos e outros estorvos
nenhum riso nos cantos
da boca nem nos poros
cheios cada vez mais
de água salobra e seus ais.

Mental




A moça está sem pressa
alheia ao horizonte avesso
aos distúrbios em seu interior
talvez para ela o futuro
resuma-se em líquido amniótico
o tempo seja híbrido e a mesa
insossa, quase tormento, mas
jogar a toalha parece distante
à desconhecida mente da moça
numa cadeira comum
pensando não pensando.

- por Darlan M Cunha
https://www.poemhunter.com/poem/mental-9/


*****


She is unhurried
others inside out horizon
to disturbances inside
maybe for her future
summarize in amniotic fluid
time is hybrid and the table
bland, almost punishment, but
throw in the towel seems distant
the unknown girl's mind
an ordinary chair
thinking about not thinking.

- Translated by James MCLAIN
https://w0.poemhunter.com/members/club/profile.asp?member=5227566&show=forum&list=poem&page=1

O peso, a saída




A memória do sádico abraça
sempre o mesmo tronco
diz que é uma dama a quem
muito quis até não mais querer
e por via das dúvidas
em madeira para carvão - de lei -
a transformou
devido ao que à boca pequena
entre ovos gorados se dizia.

Labirinto


Mais sombra do que luz
mais asco do que atração
assim o rastro de algum senão
na memória de casas e ruas

pois não há como se livrar
de nenhuma história - fel ou glória
tudo vai conosco de encontro
ao mármore, e sem demora

nova querela dominará
a roda de sempre, onde serás
tão beócio quanto leal e desapegado
terás sido artista inconfesso

com mais luz do que sombra
serás na roda de depoentes
o que não se ajoelhou
e até verteu mijo nas pernas

da sociedade, vértigo ou lépido
caçoavas dos manequins da fé
dos descontos de 40% de pé
enfim, mais glosa e mais danação

debaixo do mármore há o Tártaro
onde os eleitos se espojam
pois a cada um e a cada uma
de acordo com o que tomam e forjam.

"Sabia que seria deixado para trás
em alguma aldeia",* que são assim os dias
para tantos: mão vazia e cabeça cheia.

*****

*: Jerzy Kosinski (Polônia, 1933-1991). O Pássaro Pintado

Um de janeiro




O fotógrafo aplica-se às vastidões
dentro do outro e de outra roda-viva
sabendo de si muito pouco
das convulsões nos lábios
das rochas e nas entranhas das águas
o repórter de inúteis paisagens
abrindo, enfim, acordos com trevos e tocas
passa ao largo do breu das florestas
e do silêncio das terras calvas
vastidões que todo homem carrega.

Arritmia




(e porque o diabo não se dá ao pouco


em nenhum momento pediu pelo nome de deus

pelo que não fez pelos seus nada pediu

ao sobejo à solércia e ao estigma

o desprezo sendo suas guias no espaço

que o equador divide e o homem adquire)

Peste, praga




Lu Sin grava no cerne da agonia
a fala da teocracia, enfim, uma teratologia
sem resquício de espanto em sua boca.

Somos uma louca e um alienado
numa assembleia de traficantes
com uma paleta de cores, naturezas mortas,
enquanto vais à feira de rua, vestida ou quase nua
e o mundo girando a 27 mil km hora.

Lu Sin destrincha um frango imaginário
com estes subviventes, razias na suicidade
onde ninguém tem segura a identidade
ninguém a salvo de si mesmo no mundo de rinhas
demolindo muros com o tom de Zaratustra:

"Por quê ainda chocalhar, ó cascavéis ?"*

Com que roupa ?*




Por que essa roupa a escolhida, entre outras
sedentas de verem o dia e a noite
vivendo toda a assimetria social
calcada em histórias e estórias
de tantos que se foram, de muitos que por aí estão
vestidos de baratas tontas, ou não ?

Por que se escolhe essa e não aquela fivela
para compor o fato, essa camisa e aquela calça
bem como o intento vitorioso
de certa cor ?

Não pergunte não responda - diz a canção.*
do jeito do teu dia. Vade retro, criatura.

O lado escuro da rua




Que a noite fomenta o amor é fato que ela encobre
suas idas e vindas, dá a mão aos furtivos
nos passeios públicos e privados
abrindo loas para além-lá da dicção do camaleão,
seu caráter precisa de sal e de fel (alguma premonição)
pura sátira, pelo que faz
ouvidos moucos ao futuro e ao passado
e até mesmo a essas duas horas e vinte minutos.

De Avalovara a Sagarana, perdeu as chaves


Quando vai pelo campo não se lembra de nada,
porque é do fugitivo olhar à frente, revivendo
a cada passo o destino ao qual estivera
condenado, e apressa o passo
e assim afrouxa o laço quando corre pelo campo
onde exércitos antigos dormem, e cobras e lagartixas
se vigiam, assim como os homens se vigiam
crendo que tudo é possível, que irão a outro nível
de onde domarem o imprevisto, e nunca mais dizerem
"que tragédia é essa que cai sobre todos nós ?"*

***

*: Milton Nascimento. Promessas do sol

Abintestado




Alguém abala o aqueduto

anônimo ator ou atriz
que já não propõe nada
a um cotidiano só luto.
A aldeia é afã, quer ver
a criatura anular empecilhos
e finalizar-se em silêncio,
sofrendo por adeus
as circunstâncias de cada um
virando as costas, ou não,
a quem as costas ao mundo virou.

À luz do amor de duas baratas *




Cheguei ao mundo no século 13 - visita aleatória,
por afinidade, por um jogo de escusos interesses,
por algo álacre e moralista como o jogo de sombras
tailandês ou por uma partida de xadrez
na qual se proibira a presença de reis rainhas e bispos ?
A que vim, de fato, a esta algazarra ?

Venenos não dormem




Não se cria impune um rei fraco - há-se que estar atento
aos degraus do trono, da fé, da cama, ou ele poderá
entrar em coma, cair, sim, que os venenos não dormem
todos sabem, e assim é que para se manter um rei fraco
é preciso mais que choro, voltas nos gonzos e nas fechaduras
por trás das tramelas é preciso mais que as vozes do coro
e o lombo de um animal.

Um rei fraco pode durar muito, porque são muitos
e muitas as sanguessugas sob frenesi ou algazarra, quase tudo
sendo possível em tal corte: lírios e arras, e assim fiz de ti o meu rei
do qual retiro sombras e alfombras, és minha carne cotidiária (não ossos,
teu osso sou eu que me tornei tirano de rei).
Um rei pífio pode durar mais do que possa entender a vâ pedagogia.
Venenos são insones.

A mão sinistra de Django *




Nos rumos do dia, crispada, o dorso da mão esquerda
parece uma rede de pesca, uma peça de roupa
mal cerzida, puxada por pinças descuidadas
mas muitos trastes do mundo agarrando-se a ela
pedindo notas
em sol ou mesmo em ré menor (todos nós um dia nos atrasamos
de nós mesmos, perdemos de vista o outro), até que a carência
entra de vez no palco, e as mãos enfim se armam
em torno da madeira logo transformada
em barco - porque música é onda.

Na China há um rio chamado Nu




À espreita, sou homem solteiro

em torno a mim se formam círculos
de gases, redemoinhos
ouço que me querem numa trempe
os de sempre: invejosos
de que suas mulheres comigo sejam
aves, sépias, lagartixas, camaleoas, sim
o futuro é pouco para mim que invento
ser homem sem viveiro
quando, de verdade, nem existo.

O rosto na pia




Posso me dar de inferno
mas não me conte celeste
que a dívida para comigo
é vasta quanto os inúmeros
pingos no i
de que são faltos certos selos
de mãos e sorrisos amarelos.

A louça em festa, la siesta
virá a cavalo, melhor, sutil
como uma aranha, um peixe
uma biba, uma notícia-breu.

Posso me dar como bíblia
do diabo, não menos.

Ano nenhum




Nada de nada entre o estupor do boi rumo à última
alienação (nada sabia do matadouro), e os portais
abertos à turba geral. Nada de nada consta
no dorso das pedras com as quais construímos barbáries
(apagado da memória, do sono REM, de tudo)
mas cá estamos, que por nós procuramos.

360º




À espera de março, abril
não cabe em si, rueiro
flutua e derrua, seu transe
parece vir de raízes profundas
com as quais mantém-se
à espera de março, ciente
do encontro com a solução.

Enquanto convém certo passo




Entra na casa o desertor não se acalma
enquanto ceia recados de palcos próximos
e distantes, pelo que mantêm as orelhas voando
mas não carece de muito este que vive furtivo
entre meias sujas e pratos populares (tais tipos se esforçam
no invisível) espicaçado pela pergunta
no labirinto de sempre.

O que me deste era tanto que se acabou




Em torno do espanto não há dúvida

porque o amor não se furta
em ser ciranda ou fuzarca,
seus veios não se negam

em abrigar seu contrário
como se abriga um segredo
de sangue, um favor no armário -
condições que muitos consigo levam
e assim o mundo nunca saberá
que riquezas ignora,
a quanto trigo impõe sua rudeza
o joio que só conhece o próprio umbigo.

Alas, celas, corredores, passagens secretas




Madeiras policromadas e mais peças

em alabastro – santas santos anjos
pastores e profetas do barroco
e o diabo sobre a colina*
pó de ouro, prata e pedraria
padres e noviços e alunos
dançarinos bem jungidos

pelo pescoço, ó tempo sacerdotal
de discentes e docentes em riste, gozos
num turbilhão de gonzos e tramelas - vidas
lacradas à bisbilhotice da aldeia, em vão.



*: Il Diavolo sulle colline. Livro do italiano Cesare Pavese [1908-1950]

Encontra-me na página 577 do Codex Gigas




Muito já se disse do silêncio e da peste negra
atual - extenso metrô com mil bocas e, parece, saídas escassas.

Um riso antigo, sem data, sem nome, prenome e sobrenome
sem gênese conhecida (partenogênese ?) aflui

deste Ser cabal na existência geral. Sentado, anda.
Se dorme, sabe onde escondes a doceira e a salina.

Homo erectus pekinensis




Meng Jiangnu, cujo marido morreu
na muralha do Império do Meio,
tirou do seio a dor feita de conhecidos
tijolos, porque intuía o que se fizera
da abundante argamassa: ossos
dos milhares que lá estiveram, ossos
triturados à moda da Casa, misturados
à receita para colagem, sim, todo muro

exige que se lhe faça jus aos intentos
e Meng Jiangnu cantou sua dor,
segundo a lenda,
não sabia das asperezas
da arquitetura de defesa, menos ainda
de vontades internas bem arquitetadas.
A canção de Meng cobre toda a China
e nenhum bambu a desconhece
mas nenhum rastilho de pólvora leva o nome dela.

Mar esteve aqui




O mar esteve onde estamos
até se fartar (essas marcas
dizem de sua estadia)

e se mais pouso aqui não fez
se após milênios se afastou
premido pela angústia
por mudança de relevo, algo assim
quase como mudança de sexo,
talvez, o mar não teve saída
mas continua no de sempre levar
amores e desamores, molhando
e acendendo pavios do sim e do não
nos hábitos de distantes aldeias
no tempo de seca e no de cheias
que o que mais nos move
é o que ainda é só imaginação.

O Diabo e Deus na terra do gol *




Os crentes fustigam as nuvens
negras, seu foco se apruma
e arremete contra as brumas
como aríetes, exigem os crentes
dissolver os nichos dos incréus
pois o amor não pode esperar
divino maravilhoso,* o amor gera
guerras, rói os tigres, abafa
o Outro, e os crentes se sentem
graduados pelo seu mestre,
mas não comungo tal trigo no meu
imaginário, e os crédulos ameaçam.

*****

*: O título alude ao filme Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha.
*: Título de música de Gilberto Gil.

Ainda


Muitos aventam a via do óbvio
colados às insígnias de bares
apegados a margens do Nada
escorreitos e ao mesmo tempo
pendentes totais com a clareza

muitos já disseram o óbvio:
os números governam o mundo
ah, elementos não faltam para isto
soar como catarse ou até mesmo
para coar prendas domésticas

muitas cicatrizes ainda roxas
o rubro teor da maioria dos dias
não nega ao Homem sua índole
seu natural de falar com uma boca
e ouvir com ouvidos que não os próprios.

Lugares


Salvo engano / os fatos acontecem mesmo é nas ruas / deterioram-se melhor se no claro-escuro das ruas
e praças / porque roupa suja se lava é ao ar livre / sejam assim os olhares de casa / sem sombras, fungos, atrasos. / Pensando melhor, os fatos acontecem é em todo lugar / a todo momento. Impossível estar.

A Casa


Há pouco tempo ocupamos o térreo

mas é preciso saber o melhor prumo

para as paredes, a ciência para o teto

os segredos do solo, o entorno é uma  

incógnita que grita, e outras vezes

é silente como o universo ou um crime

meticuloso, perpetrado com luvas.

Estamos no escuro, mas a caminho.

 

Descemos há pouco da casa antiga

e assim o nosso andar ainda é tosco 

e até funesto, todos os membros ainda

com amplitude menor, damos ao sono

importância maior do que às féculas

encontradas, às nascentes e ao hálito

que puxa para cima o que sob a terra está. 

Estamos a caminho há pouco tempo.

Casa nova


Estamos todos e todas com um sorriso em cada canto
da boca, e um laivo de apreensão pela dor 
do que para trás ficou com a mudança
[isso difere em muito de uma transposição temporária
de um rio para se construir uma barragem]
pela alegria da nova paisagem
a partir da qual talvez seja outra a nova mensagem
para os da casa.

Partimos bem cedo até o novo, a família cora e chora temas adiados
amores concretos sob concreto e ferro assoreados, eis
os ombros do dia e as pernas do descanso
ficar é viver, ir é viver.

Não me recordo de quando éramos pequenas gruas
agarrando e soltando pedaços de felicidade, não me recordo
dos primeiros mamilos
subsequentes aos de minha mãe, mas em branco se pode passar
mas se há lividez e rigidez em vida, há calor de ímãs

e aqui estamos lisos na nova, algo indefinido avisa que há saídas
várias, e os primeiros sanduíches já no improviso do chão.

Arandar


Arandar é verbo que gira
debaixo de fluxo ao ar livre
idioma de água, sim

todos sentem um eclipse
agir no imaginário
com a boca aberta
enquanto grilos fornicam

e corujas vão ao jantar
que assim é o mundo: verbos
que giram ou dançam

adjetivos acerca da morte
ponto final cheio de flores.

Tema


*
Salvo engano, às vezes, parece que a morte não dá satisfação nem a ela, é sonsa / vivendo trôpega, de déu em déu, de maneira que ela mal devora uma existência / outras têm de ser visitadas / Este é o ciclo de sua divina comédia, memórias falsas de um cotidiano real.
Salvo engano, a morte é solitária - cada qual com a sua.

Conceitos


Estafermo deve ser assunto de quem
não tem papas na língua, parece
assunto duro, aríete em alvenaria frágil
ou em portão miúdo; até então
não sabia o que significava o conceito
dentro da palavra estafermo – mas
vi o adjetivador no chão molhado de morte.

A casa nova


Estamos todos e todas com um sorriso em cada canto
da boca, e um laivo de apreensão pela dor 
do que para trás ficou com a mudança
[isso difere em muito de uma transposição temporária
de um rio para se construir uma barragem]
pela alegria da nova paisagem
a partir da qual talvez seja outra a mensagem geral da casa.

Partimos bem cedo até o novo, a família cora e chora, ódios adiados,
amores concretos sob concreto e ferro assoreados, eis
os ombros do dia e as pernas do descanso
ficar é viver, ir é viver

Não me recordo de quando éramos pequenas gruas
agarrando e soltando pedaços de felicidade, não me recordo 

dos primeiros mamilos

subsequentes aos de minha mãe, em branco se pode passar

em branco, há lividez e rigidez em vida




cá estamos presos à nova casa, algo indefinido avisa que há portas

e janelas. Os primeiros sanduíches no improviso do chão.

Estertor


Um ano para ser esquecido ou lembrado permanentemente, mas essa dívida não a colocarei na minha conta, longe daqui e de mim estando muitas outras durante o ano todo. Assim é, assim foi e será, a barbárie medra, o mundo todo entre a sanha e a apatia, a cegueira já não aceita barganha, não atende pelo nome original. E cada qual fingindo-se feliz.