Filipe Marinheiro

«Noutros Rostos» III


abrigaram-me na palavra paciente e sincera


envolver-me nas lágrimas de girassóis a gemer é como prolongo

a vida


até à palavra se amar doce e inocente

como quando corro inesperado seduzindo as letras uma por uma

e sufoco a fecunda escrita na melancolia que é tão minha...

«Noutros Rostos» XI


ou a vida é curta e antónimo de amor líquido

ou por agora recolhemo-nos na própria ideia de morte

«Noutros Rostos» XVI


sei de teres um saco que fala sobre o sono ainda misturado

num copo em brasas

curioso por bater

com a minha sombra diante à criatividade desse saco

nele intercepto mensagens alheias das noites cheias de fins

ou acasos

todos nos dizem para cantar sob o carreiro gélido

onde verdes árvores lá fora se revelam na voz de silicone

por trás das portas a despenhar-se sobre cadeiras retiradas

contra os buracos negros

enquanto mesas se entrançam no ar às voltas

como respiro e interrompo

trepando o fumo trôpego dos garfos e talheres confusos

a romperem os sóbrios guardanapos de tecido diamante

derretendo-se na luz que flutua leve

talheres no princípio

garfos no cume empoleirados no pano rústico preso à jarra

que toca a melodia desaparecida

que esmaga as mesas

que torce a voz contra as portas

que toca a própria mão alastrando o saco

e se bebe na loucura nocturna

o soalho de madeira rubi ressente-se entre os rolos de árvores

e baloiços de folhas afrodisíacas

a amolecerem espantadíssimas nas sobrancelhas queimadas


com imagens panorâmicas do saco

como a rodar nos rodapés que explodem dentro dos vernizes

a espalharem-se p’la poeira das vidraças terríveis

os relógios fumam os céus indignados aceitando-se corajosos

e reles vistos à lupa

o sol de aço corta a vista como os seus raios de fogo cortam

as mãos

o fogo cresce

aumenta o sangue largo

enquanto labareda a roçar no coração

e o coração insufla e inflama o corpo que se ergue

e estanca o lume

manuscritos voam em cima dos pratos

os pratos compostos por tintas em escada finalizam-se à vista

sombrios e tristes

desde a força profunda das mesas

até se coserem às secretas portas

que fervem o trilhado coração do saco aos pedaços

de fibras entranhadas

escorrendo à volta dos corpos

desenhos de luvas

peúgas originais retratos folhas plantas

gaiolas por baixo de alcatifas submersas

cigarros dentro uns nos outros onde a água trabalha

e escalda esse pressagioso ofício

um castanho cavalo gira perto do iminente sofá

e o cavalo cavalga dentro das paredes

a estoirar a ventania obscura

e engole

uma almofada de acre vinho

e no próprio relinchar como desabrocha!


tapeçarias de névoas esvoaçam entre fragilidade e angústias

via o saco a inundar-se no arame farpado

com que o ergo

até sufocar o amanhecer fusiforme

a saltitar nos nós de sangue

uma breve leveza de ofício

e rasgam-se fissuras na carne como outra carne funda

e ensanguentada

em estado de choque

assim irei aprender também trigonometria astrofísica

dos cometas às galáxias inundadas de gravidade

enquanto saco é elevado

nós somos elevados

e arrastamos as imagens de uma ponta à outra

devoramo-nos

na engrenagem atómica

em frente aos vertiginosos olhos anda o saco a pensar nas coisas

o saco desmancha a doçura do pescoço

sangra-o nas mãos vagarosamente

à raiva tão veloz

canta nas fracturas da terra na cabeça movida por circunferências

saco chato dorme a alumiar a escuridão

uma chatice mortal!...

mexe-se aquele saco com pensamentos inquietantes

sei-o inquietante

é mestre e eu o aprendiz

com a cabeça no fundo dos meus joelhos a estilhaçar

devassa os astros

explodindo-os de encontro às estrelas

e todas as altas estrelas bailam na ponta dos dedos pretos prata

a deslizar na coxa dissolvida


contra espirais cadentes os astros são a sonoridade

cantam flores e jarras

e as estrelas o ritmo maldito feito de cera luminosa

em que as trevas vagabundam

nos espelhos rápidos

dentro da penumbra pendidas nos aromas megalíticos

que vão de sabor para sabor

pela aragem abaixo

a levitar na sua matéria enlouquecida

e morde a luz

porque os perfumes celestes

se despedem e diluem o espaço e o tempo

como num avanço e recuo doce

estremecendo as distâncias em tempo irreal

deixo-me cair anterior a esse saco entrançado nas veias adentro

e racho as mãos à velocidade de um galho precioso

na dúvida

alastram-se as abas que dançam

enquanto o saco sufoca numa janela contorcida

deambulo

na opacidade dos espelhos e vidros

que nunca mas nunca falam dele ou de mim

– o saco, por exemplo...

«Noutros Rostos» V


a sabedoria levanta-se e a raiz cheia de ignorância vem à tona

«Noutros Rostos» VIII


vou contando todas as vidas tristes que se amadurecem

no fundo dos meus olhos a passarem atrás das coisas gastas

em cada rua vazia espero pelo seu sabor mudo


e desapareço naquele estremecimento que sai virgem do chão

por onde caminho novamente sombrio

«Noutros Rostos» X


amo a substância da dor

sombras em pranto correm de um lado para outro sem olhar

para trás ou para os lados ou nem sequer a pressenti-la


de frente só me apaixono pela ferida daquela transparência

que incide na oculta beleza

«Noutros Rostos» XIV


porque durante o silêncio da noite tudo respira tranquilo

na mais breve insolvência musical

e na cama ouço a inocência das eternas servidões...

«Noutros Rostos» XII


em todo o andar doido dos pais

escorrega sempre um sorriso leve entre os braços puros

e as cabeças dos filhos deslocam-se

os corações ao alto

como tremem e tremem por dentro

como são tão silenciosos corações e deliciosos sorrisos

e os pais envolvem comovendo-se

os braços apaixonados

os rostos dos pais

inundam-se nos lados das suas bocas

pelas veias e sangue arterial desentupidos

e os filhos rodopiam nos dedos formosos

no chão escorregadio

os filhos abertos ao novo amor sentam-se nos colos calmos

dos pais sentindo todo aquele momento visceral

e eterno

movem-se em silhuetas vivas

atentas a tudo o que se passa e mexe à sua volta

procuram o manso amor a florescer

na cadência absurda das coisas inseparáveis e escorregam

nos pequenos corpos celestes

enquanto a paixão surge numa sombra uma paixão quente fria

os pais têm urgência

nesse amor são do dia para a noite

progressivamente maiores e mais fortes


todos os filhos a certa altura perdem-se

nas brincadeiras para que os pais os encontrem e dancem

a levitar junto ao tecto

junto às janelas que batem noutras janelas

que batem por cima nas cortinas loucas por voarem

com a brisa daquele minúsculo vento levíssimo

a transbordar de imagens suores

e flores deambulantes

mas amplamente perfumadas

e o vento a respirar

dos movimentos doidos dos filhos encavalitados nos ombros pérola

dos pais

são vestígios desse doce amor

a erguer-se dentro de todos os órgãos

até chorarem os corações e os sorrisos fora

os seus lábios estão na fímbria do andar pontual dos pais

mas os pais atravessam a morte desértica

pelos seus filhos

os pais são realmente heróis anjos de guarda que mergulham

no magma da terra adentro

e esmagam-se no seu interior por eles

os pais devem ser as coisas mais frágeis e dóceis do mundo

porque os filhos deformam a expressão

do próprio mundo

e alagam os pulmões e cabelos dos pais nos brinquedos de fogo

e nos jogos adúlteros um pouco mais tarde

os filhos sabem aos pais

andam à velocidade das ruas intermináveis

dos becos frios

contudo confidentes


e os pais os mais elevados Deuses

chegam a rachar os seus próprios ossos através da saliva

e lágrimas dos altos filhos

amor mortal

amor a desaparecer no lusco-fusco

todo esse triste amor atira-se precipício abaixo sem pressentir

o desassossego espiritual dos filhos e pais recalcados

pelas submersas infâncias

todas as palavras que os filhos escoam pelo ar negro

arrancam a doçura do mar do sol

mas também das casas

dos quartos intensamente alagados pela força anterior

das belas memórias

como a interromperem-se num vazio corajoso e recente passado

os pais desenterram essas lembranças

como escapam nelas também

filhos e pais a queimarem-se melancólicos

depois certo dia os filhos

numa rara homenagem

escavam de novo o chão da sua casa e penetram solitários

dentro dos quartos

engolem toda aquela água d’alfinetes pretos

para se entrelaçarem nos velhos sorrisos dos pais

vêm à superfície

com os pais às cavalitas

e como brilham o recente caminhar!

sentam-se hoje nas mãos uns dos outros partilhando o choro nu

os pais embrulhados nas roupas dos filhos de alto a baixo

tocam-se em ambas as peles

nos ligeiros poros esvoaçantes beijam-se

nas faces viradas ao avesso com o relevo da luz

a asfixiar os seus reflexos


e as luzes solares inclinam as estrelas cadentes equilibrando

filhos e pais

num sorriso possível sorriso amante

nos pensamentos magnificentes

nada há na morte

pensam filhos e pais pois a vida incha toda a matéria que se mexe

com toda uma violência e alegria certas

germinando por si

o incondicional amor que nas profundezas loucas dos filhos

desentranham o coração manso dos pais

que desliza no sorriso

saboroso dos filhos

que desliza na sua doçura

deslizando na força do amor

que desliza na violência sonâmbula do medo

e crê-se

que o amor entre pais e filhos por fora e por dentro

deve acontecer

e ao acontecer devemos acreditar

que por fora e por dentro está todo o nosso leal amor

e todo o leal amor acontece

«Noutros Rostos» I


pus-me a espremer a atmosfera coberta por um sabor a frutos

selvagens caminhei de tronco nu em cima desses enormes

campos silvestres


era manhã ainda e os pássaros de uma espessura incrível rodavam

o vento cinza ao contrário


decidi erguer as pernas como a brincar com a névoa que toca

suavíssima na linha do céu azul liquefeito e beijei essas aves

junto às rajadas de chuva que estremecem no meu coração


depois deitei-me por baixo das suas asas em giesta e escorro

como uma nascente abandonada pelas estrelas no quebra-mar

as aves atravessam agora um aglomerado de bosques sombrios

muito húmidos frescos com cheiro a nuvens carbonizadas


flores a voar com hálito a sombras sugam abismos maciços

entre astros e cometas a roçarem-se numa mágica doçura comovente


durante a minha eternidade campos aves céu mar frutos nuvens

estrelas e bosques adivinham nas minhas mãos um olhar melancólico


onde danço em cima de pedras preciosas de tédio em tédio

e num só golpe trémulo nos lábios diamante a minha majestosa

harmonia desencadeia novos silêncios...

«Noutros Rostos» XV


cá vais tu de vértebras nos braços a correr pelo estrangulamento

do ar que te leva que te faz voar com o sangue como asas opacas

mas brilhantes


de boca na cabeça e pulmão na barriga tentas seguir uma travessia

exemplar sem erros sobrenaturais


os rios são pretos as árvores rasgam as nuvens as plantas sangram

por entre as casas que vais vendo


a vida é foneticamente fodida puta da vida mesmo virada de patas

para o ar em labaredas


e a vida floresce-te sabiamente...

«Noutros Rostos» VI


perdesses o medo gritarias toda a noite sem um arranhão sequer


erguerias numa taça de flanela o tamanho do medo miudinho

e saberias que a tua memória se desfarela menor ao medo

que te consome e controla a força com que te deitas

ou se morres vertiginosamente

«Noutros Rostos» IX


trago da beleza obscura o alimento que me faz viver secreto

e tão distante...

«Noutros Rostos» XIII


ó meu novo amor

choro ao recuar a morte prematura contra os robustos estilhaços

do inferno bem visível e a vida compacta correcta morre

às mãos frívolas desta triste humanidade...

«Noutros Rostos» VII


vai caindo a manhã mortal

a bainha da sua luz está longe

mas enche-me a boca nua de folhas e poeiras que correm loucas

entre o sol a perder-se no oriente

e tubos de girassóis elementares únicos

a esquartejar o rosto

trancando os buracos dos ossos que se estrangulam a meus dedos

e de ponta a ponta da carne pulsa a beleza do ar se amo

eu fugia com o reflexo geológico a travar-me o sangue solar

escorrendo nos meus macios braços

por entre ribanceiras e encostas abaixo e acima

feito palavra delicada

corria como um violino d’água a pulsar inteiro

ao som do esquecimento das coisas dignas

estendo-me depois num mole poço de flores com os pulsos

mergulhados nesse sangue matinal estancando-o

enquanto o seu intenso perfume me batia

dentro da barriga

a barriga cheia de cócegas

saía fora dessa barriga doida

movia-se para o lado desta casta tarde

a morrer cansada

nestes lábios que sobem até tocar na noite

e dizer-lhe baixinho:

bom dia meu amor mais lindo!

«Noutros Rostos» II


cá vais tu de vértebras nos braços a correr pelo estrangulamento

do ar que te leva que te faz voar com o sangue como asas opacas

mas brilhantes


de boca na cabeça e pulmão na barriga tentas seguir uma travessia

exemplar sem erros sobrenaturais


os rios são pretos as árvores rasgam as nuvens as plantas sangram

por entre as casas que vais vendo


a vida é foneticamente fodida puta da vida mesmo virada de patas

para o ar em labaredas


e a vida floresce-te sabiamente...

«Noutros Rostos» IV


dever-me-iam ter dito que não existo e que nunca existi

neste mundo


ou antes um fragmento suspenso da escuridão estalasse a voz

ardente espalhando a criação na boca adentro


a boca purificaria as veias silenciosas das mãos a boca esmagaria

a ardência da carne a cantar bem perto no fundo do sangue


as células do sangue mover-se-iam entre o universo e a fala

rasgariam as palavras eternas desta boca tão feliz


jamais me deveriam ter dito coisa alguma


talvez me pudessem ter dito para eu correr absorto

todo nu sem voz submersa no meio da carne pura

a esconder-me dos gemidos da noite calva


os gemidos a esconderem-se de mim distraídos

e os movimentos amplamente puros cheios de luz e pó

passariam a água sobrenatural

como sombras transformadas a arranhar esta doida cabeça


dever-me-iam ter dito que os mortos caçam as manhãs

as tardes as noites – as horas em inércia