Francis Kurkievicz

I - De frente para o leste, percebo...


I

De frente para o leste, percebo
apenas o silêncio da brisa oceânica
e esta luz que dá sombras ao olhar.
            [Ruídos roídos
            rumor de humores
            gritos de ritos
            me despertam, chamam, invocam!].
Mas tenho medo de dar as costas para este mar e este sol.
Tenho medo de volver o corpo
e encarar este horizonte em desalinho.
Nada sei de picos e aclives
de súbitas subidas
trilhas entrincheiradas
entre escarpas e fissuras rochosas.
            [A verticalidade da existência me espanta!]
O sol ao meio-dia nos iguala
            : humanos, animais, vegetais, minerais
            Substância somos da mesma natureza
            do mesmo íntimo e único espaço.
            [Ruídos e rumores!].
Mas não há mais como ignorar
: os semelhantes se convocam
a confraria se aglutina
buscam o mesmo ar rarefeito.
Giro o olhar ao norte
numa distração dissimulada.
As narinas distinguem os odores da floresta
que se insinuam
na maresia da brisa marinha.
O sol declina.
Põe coroa nos cumes.
E direção no olhar.
            [Humores e ritos!].
Giro o corpo num ásana preguiçoso
e me detenho no contrário.
E temendo não ceder mais aos meus temores
miro, de corpo inteiro, a trilha dourada
que o crepúsculo baixa.
E numa intuição serpentina e luciférica
me pergunto espantado
            : será este o meu caminho?

XLIX - Durmo com o desejo...


XLIX

Durmo com o desejo
incontido pelo esquecimento.
Mas sonho este mundo
por decisões adiadas
            : drenado pelo sono
            : aturdido pelo sonho
Desperto em um mundo
que vigia nossa vigília
injetando no cotidiano
exigências que a necessidade não prevê.
Sigo o fluxo da ansiedade
reprimindo em mim o suicídio
que ora ou outra
espia a consciência
que tarda em partilhar o pão
            : hesito em dormir de novo
            : evito olhar o espelho
            : êxito! é o que procuro no pensamento;
mas sei que o que me toca
é o silêncio que roça
os entremeios
– o limiar entre os seios –
deste fenômeno que anseio
não mais tocar.

XLI - Mais uma noite insone...


XLI

Mais uma noite insone...
entre um espasmo
e outro espanto
sofro o assédio
convulsivo da ansiedade.
A lucidez da sensação
transitando incontido
na eletricidade dos nervos
pilha ainda mais os medos
do devir indevido.
O escuro do quarto
põe ruídos turvos
na imaginação expectante
mas os ouvidos olvidam
da claridade que a cortina fresta.
Vencido pela inércia
amanheço roído por quimeras:
Quisera Quitéria quitasse
esses anátemas amalgamados
em minhas células!
Mas os pássaros do parque
alvorecem o dia na janela,
e, assombrado,
vejo-me só.

XIX - Me visto com os trajes de Mefisto...


XIX

Me visto com os trajes de Mefisto
trajes fáusticos
tragédias farsescas
misturadas ao verde do absinto –
me sinto em trajetória de colisão
coalisão, coliseu
um Eliseu coagindo
coadjuvando Elias e Profetas
conjurando leões e gladiadores
e tantas outras dores e comédias
licores, rancores –
libando em nome desta ciência
este saber cheio de reentrâncias
umbrais, tundras, tumbas
que sabe da verdade
apenas as suas quimeras
esta miséria que assola
assalta, esfola
esta fé tão esquecida
ainda úmida do Lete
ainda única no Leste
ainda unida ao ente –
esta criatura nua
desprovida de vestes
de vestais e ventos
esta criatura vestida
em carnes de Adão e Eva
vertida, invertida, indevida
individualizada
institucionalizada
esta criatura que se crê dura
concreta, material
uma alavanca sem ponto nem apoio
sem força para o movimento
deslocamentos, oscilações
alucinação divina, desmedida
quase finda –
me visto com as vestes de Mefisto
não suporto o pudor da nudez
esta nietzschidez que nos põe à prova
e a revoltas e a retornos!

XXV - Não compreendo as ferramentas do marketing...


XXV

Não compreendo as ferramentas do marketing;
não entendo os processos corporativos;
desconheço os princípios da economia de mercado.
Não sei construir uma carreira profissional;
não me enquadro nos propósitos do consumo;
não sei lidar com dinheiro ou propriedades;
me aborreço com as requisições do imposto de renda.
O único saber que tenho
é que a vida não cabe numa planilha do Excel,
não há estratégias de comunicação para a poesia;
não há um branding para o poema.
O único que sei é que
a Arte não é rentável,
não é um produto de mercado
e nem um bem de consumo.
A poesia não é uma propriedade privada,
não é um ativo ou uma Letra de Bacen.
A ela devemos tributar apenas nossa atenção
a singela presença do espírito,
pois se há propósito na Arte e na poesia
é o seu Plus Ultra transformador
que desperta o insone de sua letargia.

XXXIV - Sonhei que trabalhava pro De Niro...


XXXIV

Sonhei que trabalhava pro De Niro
e tinha no pulso esquerdo
um grande e maciço
relógio de ouro.
Também cuspi em seu banheiro
o refluxo de bílis de alguma indigestão
enquanto homens negros desconhecidos
no alto de uma escadaria
debochavam da alvura
da minha pele polonesa.
 Ri-me com eles até acordar.

LENNONÓPTICON


Ezra para ser brincarreira
Um berimbaú obaobaobá umbaúba
InFesta gincigana caiana
Encontro imbicado de umbigosamigos
Abraxás sedosaudosos cardiorixás
Beiçobeijos trêspracasar trêspralá.
Ezra pra ser reencontrâncias
Atomicostumescidos ocuolhares
Romanticamantestemunhados em
Fotopoéticos selfiesticados.
Ezra pra ser-pentino
Flamígera ilha paixão
Cama-mesa-banho-de-espuma & plumas
Felaciosamente r-éthos
Delibelicosamente policunilíguis
Hímen-so penissauro
Flamingostranquídeos.
Ezra pra ser tão
Pimentagrestêmpero
Pêra, maçaneta pêss-ego-trip chantili tim-tim,
Mas deu ruim rui ruína
Deu-s-nos-acudamém!
Rolobombow! Um @rroubobo
De ciomeira, cuzcuspidez
Por 69 suttraconexões frustrafudidas
Nas zonas eróvaginas lunares
Lugares infrenquinstáveis
Quando amaré desce-sente
Rubibedo bedelho tragitrancado.
Ezra para ser ABC/DC
Mas quem xvídeontologicamente sabe
Acexo livre ao umbráulio necas
Nem pra Men-instruo esclaremanhecidos.
 

O DIREITO DE NÃO DESEJAR


Temos o direito a uma vida anônima
Direito de não ter descendentes
De não deixar patrimônio.
Direito de recusar o sucesso
A fama
A infâmia
A fome.
Temos o direito a não possuir
Coisa alguma
E nem pela coisa ser possuído.
Temos o direito ao esquecimento
Ao nome oculto
Ao silêncio
Ao túmulo aberto e sem lápide.
Temos o direito
A ser o que somos - o ser de nada carece -
E ser o que se é
Já basta
Mesmo bastardo
Ou bardo.
Direito temos de não ser rebanhos
Legiões
Colegiados
Claque
Falanges
Pandilhas.
Temos o direito a prescindir dos direitos
Das leis
Da outorga
Da norma.
Apenas pela vontade de não compactuar.
 

CERIMÔMIA DO CHÁ


No delicado gesto da gueixa,
Nome, cujo doce aroma, exala,
Vejo o ato de criação do mundo
Pela oculta deusa primeva;

A cerimônia do chá é uma metáfora
Onde esplende o sentido da existência.

DEFESA PARLAMENTÁRIA DO IMAGINÁRIO


Nesta situação de pânico criado pela pandemia,
Pela crise sanitária,
Pela insensatez política e enfermidade ética,
Geopolíticas movediças,
Realidades íntimas
Reféns da realidade digital;
Nesta conjuntura de conspirações urdidas
Nos concílios neopentecostais,
De narcotráfico, de necropolíticas, de negacionismos,
De incubação de sonhos diretivos
Pelos estrategos do marketing comercial,
Pelas ameaças dos CEO’s das multinacionais,
Egrégoras invadidas e conquistadas pelo ódio irracional,
Pelo estruturalismo patriarcal,
Preconceitos de classe, de raça, de credo;
Neste instante de monitoramento de perfis,
Cancelamentos de IPs, de CPFs, de antinomias,
Genocídios, ecocídios, democracídios,
De hegemonias alucinadas e supremacias emasculadas;
Neste culto ao caos, aos algoritmos,
Aos mitos elevados e anjos caídos,
As personalidades caiadas,
Aos gurus virtuais e avatares binários,
Às informações e repertórios falsificados,
A palavra plena de lascívia, insultos, calúnias;
Neste momento de efeitos relâmpagos,
Guerras hibridas,
Bombas semióticas,
De eventos sem causa,
De artistas sem obras,
De poemas sem poesia,
...!
Temos a sagacidade de nossa atenção
Sequestrada diariamente
Pelos fragmentos difusos e confusos
Dos fatos circundantes;
Temos sido nós poetas,
Perturbados em nossa estética
Pelas mensagens subliminares
Dos lunares de Helheim;
Constantemente convocados somos
A defender o criadouro essencial da humanidade,
A preservar a singularidade subjetiva e subversiva
Que residem além das fronteiras dos mundos,
Estimulados somos a confrontar nossas próprias crenças,
Certezas, teses, ideologias, cosmovisões, projetos & projéteis;
Temos sido conjurados a tomar partido,
A escolher armas, empunhar bandeiras, cantar hinos próprios,
A nos conduzir com diligência no discernimento radical,
A agir mais avante do verbo lírico & límbico;
Temos sido requeridos no parlamento da consciência humana,
Exigidos como testemunhas, escribas, visionários,
Na furiosa & febril pertinácia das ruas;
Temos sido instados a produzir uma poética insubmissa,
Poderosamente valente para romper a sinergia hipnótica
Das narrativas e discursos distópicos;
Não podemos permitir que o nosso imaginário cosmiquântico
Quede-se cativo do fatigante ensaio melancólico,
Não podemos consentir que o nosso verbo
Distraia-se com amenidades domésticas & umbilicais,
Não devemos conceder espaço no verso
À verborragia do inconsciente coletivo;
Devemos nós poetas estar um passo à frente do nosso tempo,
Um passo adiante dos legisladores da liberdade,
Um passo mais rápido que todos os fascistas
E de todos aqueles que pretendem avassalar nossos sonhos
E furtar o ânimo de nossas esperanças;
É por isso que somos poetas
E não jagunços de Tio Sam,
Sacerdotes de Baal, servilões dos Arcontes,
Ou bonifrates de qualquer estúpido mito
Surgido dos intestinos do neoliberalismo.