José Brandão

O baralho



Embaralho o baralho

da vida e da morte

as cartas estão marcadas

para que eu sempre perca

o nariz da esfinge

é o meu próprio nariz

o espantalho abre os braços

para as gralhas

enquanto eu quebro as taças

sou aquele que contempla as estrelas

no chão

Prometeu


Sou Prometeu acorrentado

a pedra no meio do caminho

não é um acontecimento

mas o real

explode e cai

como um pulso cai

existo como o meu fígado existe

os abutres me espreitam

me devoram

o fígado

que exibo nas mãos sangrentas

Os anões


O moleque na árvore




Olha o moleque na árvore

joga pedras no moleque

derruba o moleque da árvore



O que o moleque foi fazer em cima da árvore?

Joga pedras no moleque

derruba o moleque da árvore



O moleque não é macaco para subir na árvore

Joga pedras no moleque

derruba o moleque da árvore



O moleque não é um pássaro para ficar em cima da árvore

Joga pedras no moleque

derruba o moleque da árvore



É mentira, é mentira

O moleque não subiu na árvore

você está tendo alucinações com o moleque na árvore, cara

Antiode


Para ser grande, come muito.
Mete o pau na boneca,
não jogue nada fora da panela.
O girassol gira aqui embaixo
porque o sol gira lá em cima.

Heráclito


Tudo é sol

a rua reverbera

estou lúcido

e morto

e vivo

as janelas caem no espaço

eu caio no espaço

as águas me levam

como no rio de Heráclito

fui

não voltei

O deserto


O deserto fala comigo, grita, esperneia.

Sou areia ao vento, dunas, miragem.

Preencho o meu vazio com palavras

como um poema, aceito o arco da forma.


Aprendo o silêncio com a música,

carrego pássaros de sangue nos ombros,

contemplo a rosa até queimar os olhos.

A minha vida é o violino do abismo.


Estou só como uma pedra sem árvore.

O poeta lavra a palavra com terra na boca,

com espirais de areia e sol nos olhos.


O poeta é um cão, ladra na noite,

disputa o osso do caos e perde.

Cavalgo para sempre o cavalo da loucura.

Chapeuzinho Vermelho


Chapeuzinho tinha uma vontade louca de dar para o lobo

morria de inveja da vovó que o lobo comeu uma pá de vezes

o lobo fingiu que era a vovó doente na cama

comeu Chapeuzinho e viveram felizes para sempre

Viagem à nascente do rio S. Francisco



Dois filetes d'água
e as pedras.

A água desliza na canastra de Minas,
canastra de pedra.

Um tamanduá abre os braços no caminho,
um gavião carcará vigia o horizonte,
um galito move o leme minúsculo,
um lobo guará sobe num monte
de pedras.

Tudo são pedras.

As pedras
e a água subliminar.

A casca da anta entre as pedras,
a água entre as pedras
e um pulmão explode
no ar.

A água de pedra
líquida
voa no ar
e corre entre as serras
de pedra.

E vai o Chiquinho
e doa
e abençoa.

(Mas hoje
o Chiquinho
morreu de sede.)

A vagem na água


O púcaro pícaro




é então que eu me acabo.

Eu te quero toda inteira: da ponta

do cabelo à ponta do rabo.



A vida é breve para o meu desejo.

Ah, aproveita o ensejo: me dá a flor

essencial da floresta negra.



és uma flor. Por que não floresces

para mim?

Um dia o abismo



vai chegar e nesse dia serás (seremos)

sombra absurda. O que me darás

já não quererei mais.

Oferta



Eu vos oferto os meus olhos, ó príncipes, ó mendigos.

Que quereis mais?