Marcelo Reis

Deus e o eu



Sem motivo aparente,

Decidiu permanecer só.

E o fez.

Por alguns duradouros instantes.

Nu, num quarto vazio.

Foi então que na solidão se encontrou.

E pôde demorar-se em si mesmo.

Aventura como aquela nunca vivera.

E viver lhe pareceu tão abonador.

Tão revelador.

Despiu-se de roupas e coisas

Por óbvio,

Mas também das máscaras.

Das ansiedades.

Dos demais pensamentos que pesam.

Das intolerâncias que secam.

E das tantas futilidades de seu cotidiano.

Era o encontro com o Deus.

Desconhecido eu.

Diadema estrelado



Musas a quem os deuses confiaram os dons inestimáveis

De inspirar e reger as tantas ciências e artes memoráveis

Figuras aparentadas que, etéreas, desfilam por entre dromos

Num concerto harmônico de beleza desconcertante e assomos



O Olimpo as reconhece por seu coro melodioso eivado de amores

Admirados, os helenos se deixam curvar e guiar por seus humores

Poetas vocalizam as ordens das moças e refletem delas os desejos

O deus Apolo as recolhe e conserva no Parnaso em sagrados cortejos



Da loquacidade de Calíope diante dos Céus de Urânia, sobrevém o mito

Eis a palavra que, nascida do entusiasmo, anseia reter o infinito

Enquanto a escrita exprime o que da verdade se pode alcançar

A amplidão do espaço desnuda o que só é possível ignorar



O gênio humano, ao contemplar a matéria, os mistérios e o firmamento,

Divisa o elevado e se dobra ante o supremo sol do conhecimento

O pouco que compreende do cosmos ele o encerra em pergaminhos

E, no exame contínuo de seus registros, permite-se percorrer os caminhos



Musas, de cujas paixões somos alvo, presidem e elevam o ato criador

Entes mitológicos que no tempo perduram, esmerando-se em seu labor

Calíope a Camões consentiu narrar em versos épicos a fundação da Lusitânia

Flammarion alçou voos oníricos e reveladores na companhia de Urânia



Nada mais a pretender senão os destinos riscados a fundo pelo estilete

Nada mais a enxergar a não ser o cerúleo que nos provoca contínuo deleite

Assim como rimas emparelhadas, Calíope e Urânia são uma na essência

Posto que as musas com o diadema estrelado cingem o livro da existência

Tempos





A palmeira marca o tempo natural.
O relógio, o tempo secular.
O santuário, o intemporal.

Último solo




Avançou sobre o descampado como aquele que cobiça a catarse.

Acelerou a marcha, despiu-se, rodopiou, embebedou os sentidos.

Num golpe, alteou a cabeça e pôde divisar os tons azuis enegrecidos.

Restava-lhe claro que os céus, sem tréguas, inundariam seu êxtase.

Descarregou-se nele uma centelha raivosa daqueles raios em profusão,

Que, de tão luminosa, relampejou na retina daquela alma vulnerável.

Seu corpo, agora mais energizado, tombou despossuído e imóvel.

Era o derradeiro encontro com o solo, tocado pelo catártico trovão.