Nilza_Azzi

Fuga



Já não ponho meus pés nesta rua
Numa aguda tristeza resvalo
O meu leito de painas é ralo
Na cortina uma estrela flutua
 
No meu pé, atormenta este calo
E no mar minha lágrima estua
O cavalo que arrasta a charrua
Abre o sulco e só resta fechá-lo
 
Não bifurca uma encruzilhada
Mas amplia essa estrada tão vasta
Deixa em cruz uma escolha difícil
 
Subo ao céu na rabeira de um míssil
A fumaça é um sinal que se arrasta
Vejo ao longe outra lágrima alada.


Nilza Azzi

Sede



Que tentação esse teu corpo varonil,
delineado por firmezas musculares.
O torso nu e a atração do teu quadril,
o cheiro certo que me deixas pelos ares;
 
cheiro de  vida, que a mãe Terra conferiu
e que me atiça, sem cessar, sem que repares...
A natureza feminina, mais sutil,
nota detalhes, mesmo os mais irregulares,
 
não deixa claro o interesse pelo macho.
Mas o princípio não difere muito (eu acho!)
assaz idêntico, o caminho do desejo.
 
Limita, a pele, superfície e precipício
e tudo arde, quando o fogo é mais propício,
na secreção que se prepara para o beijo.
 
Nilza Azzi

Pedaço de intenção



A rua azul do sonho era perfeita
e pura na paisagem, estirada,
ao sul do meu olhar, pela direita,
findava por perder-se em outra estrada.
 
No azul do teu olhar, minh’alma deita
desejos de findar a caminhada
– livrar-se de seu medo e da suspeita –
morrer-se por um susto, um quase nada.
 
No alto desse céu, onde voava
apenas um pedaço de intenção,
abriu-se um precipício – cores fingem...
 
Faíscas, pigmentos, luz escrava,
em rápidos lampejos passam, dão,
um jeito de esvair-se na vertigem.


Nilza Azzi

Autorretrato


A juventude passou, foi embora;
maturidade chegou. Mas que bom!
Toda experiência nos cobra penhora,
saber viver, — agradeço esse dom.

Nunca serei uma velha senhora,
o tal chapéu preto, o xale marrom...
Imposições não me valem agora:
— São minhas vestes! — Escolho seu tom.

Mas não serei uma falsa sereia,
a esconder de mim mesma a verdade.
De veleidade esta vida está cheia!

Uma certeza, apenas, me invade:
A poesia me corre nas veias,
— hoje melhor do que em tenra idade.

Nilza Azzi

Amarelos



Um tiquinho da cor, um retalho singelo,

a ilusão vem do Sol, dos segredos velados.
Aspirado da luz, nos diversos estados,
com filetes de mel, desenhar um castelo.
 
É nas copas do ipê, essa joia dos prados,
e nos lírios que estão, no mais puro amarelo,
as belezas em flor, explodindo... Tão belos,
os detalhes sutis, esses tons aureolados.
 
Num pedaço de céu, faz-se um elo perfeito,
amarelo e azul —  um suave, outro forte—
junto aos mares do sul, os narcisos do norte.
 
Mas nos campos de anis, se fizeres teu leito,
e souberes de amar, quais os elos se fazem,
deixarás, no lugar, ambas, seda e aniagem.

Nilza Azzi

Astúcia



A força de um felino na mulher
escapa pelo olhar que chora arguto.
Controle e persuasão, a voz requer,
pois nela a intensidade do minuto
reboa no silêncio que é mister...
 
O negro da pupila é apenas luto;
espanto pelas grades, sem qualquer
sentido menos claro  –,  resoluto! ­
É mágico, o futuro que ela quer...
 
A fera, confinada numa cela
jamais, de seu saber, algo revela
e a luz só faz brilhar negra pelagem.
 
De fato, o coração palpita rubro
e se consegue a paz, não sei. Descubro
 
que os olhos de pantera não reagem.

Nilza Azzi

N

 

Às margens do Paraíba do Sul



Nas tardes sem tempero, descansava,
enquanto um livro lhe tomava as mãos.
Na sombra, a negra debulhava as favas,
dormia ao lado, um gato comilão.
 
A samambaia, os ramos despencava.
Era de metro, a alcançar o chão.
A um canto do terraço, havia a clava,
jogada lá, inútil era, então.
 
Há muito a plantação já se esgotara
e os tempos do café, pelas encostas,
não eram mais do que lembranças vagas.
 
Sem meios de fugir à sua saga,
seguia presa à terra descomposta,
Senhora do sertão e piraquara.


Nilza Azzi

Veleidade



Nada me importa na aparência de um mancebo,
quer seja belo, seja calvo ou tenha encantos;
que seus trabalhos sejam doze ou outros tantos...
Não me cativa o vate pelo que recebo,
se enxerga luz numa palavra meio torta;
faz ressoar seus ecos sem nenhum arrego
e deixa flores sem bilhete à minha porta;
destila essências de uma fonte que não bebo!
Porém não sei se tal razão é meu direito...
Se falta verve à maioria — o tempo é cedo —
se não se arrisca, segue as linhas meio a medo,
pois meu soneto não difere, contrafeito:
 
— Tem versos fortes;  guarda um ar de bom menino,
mas não fascina, pois não é um alexandrino...
 
 Nilza Azzi

Adeus tristeza



É nas horas tristíssimas da tarde,
quando o dia demora em se acabar
e a luz do sol desperta outro lugar,
que essa dor faz o seu maior alarde...

Era assim, fosse dentro do meu lar
ou na rua, onde a luz, embora tarde,
reverbera, incendeia, abrasa e arde,
em fantasmagoria singular...

Mas um dia aprendi de alguém querido,
que esse fim pode ter outro sentido,
em que a dor sói doer mais passageira:

— Que lição é viver de outra maneira! —
Atrás do fim, caminha um novo início
interminavelmente vitalício.

Nilza Azzi

Campos e florestas




É tanto verde, e tão junto,

num espaço até pequeno,
que ficamos sem assunto,
na verdura do terreno.

Nilza Azzi

Fúria



Relâmpagos no céu e as explosões
ruidosas, ecoando além na serra,
sugerem que os eventos temporões
concentram mais poder. A luz descerra

a vasta paisagem... Borbotões,
o céu despeja a água numa guerra.
As gotas, sem cessar vêm aos milhões;
encharcam extensões por toda a Terra...

Na alma, há tempestades arredias:
provêm das emoções que, represadas,
concentram sua força, pouco a pouco.

Um dia, desrespeitam quaisquer guias;
explodem como a chuva extravasada,
na fúria de um tufão insano, louco.

Nilza Azzi

Elegia



Canto I
Essa que chora ante o caixão aberto,
Por quem dizias ter amor, eu sei,
Sofre por ti, um pouco, mas decerto
Seu coração lavrou a própria lei,
Na solidão sem tempo do deserto,
Sem abrir mão da liberdade ao rei.
– Sob esse véu que cobre a tal tristeza,
Resiste a alma límpida e coesa.

Canto II
Bem vês agora que escapou inteira
Da servidão que lhe quiseste impor
E na conversa muda e derradeira,
Em teu respeito, um mínimo de dor
Expressa agora, à sua maneira,
Ainda presa ao súbito estupor.
– E nessa lágrima tímida que verte,
Reverencia o teu corpo inerte.

Canto III
Caminha sempre adiante com firmeza,
Embora saiba dar um passo atrás,
Para ajustar-se às leis da natureza
E avançar de forma mais vivaz...
Mantém, consigo, a esperança acesa,
E não espera pelos outros, mais...
– A vida é roda e pelo tempo gira;
O que é verdade, nunca foi mentira.

Nilza Azzi 

 

Finjo que não ouço



Se finjo não ouvir aquela voz,
algoz que faz de mim o teu refém,
já vem a culpa, pois eu sei que após
a dor, talvez ouvir-te não convém.

Tentado a procurar-te, estar a sós,
há nós por desfazer, tu sabes bem.
Quisera só pensar que existem prós,
querida, e, para nós, que houvesse amém.

Mas finjo que não ouço o coração,
dizendo para que eu não seja louco
e esqueça do teu nome e do teu cheiro.

Procuro, mas não sei se quero, ou não...
Talvez, por isso faça ouvido mouco,
distante do que sei ser verdadeiro.

Nilza Azzi

Ia a Lua



Ia a lua, num passeio com seus raios,
ria solta e leve além da noite azul;
altaneira pelo céu, nos seus ensaios,
enviava doce luz... No extremo sul,

já dormia o velho sol, além de outeiros...
Se na veste branca usava uma estrelinha,
ao reinar, a soberana dos celeiros,
era o sonho do poeta, que detinha.

Se as estrelas lhe serviam de transporte,
do cetim azul das vestes, belas fadas
escolhiam, entre as luzes, quais dispor.

E, no céu, a coalizão tornava forte,
na unidade das matérias coaguladas,
a existência deste mundo multicor...

Nilza Azzi

No salgado desses verdes



Entre abismos de pureza, o mar esconde

um tesouro,  no resguardo das crateras,
desde o tempo das palavras das quimeras,
que,  ai de mim,  se aproximaram não sei donde...

Gentis heróis, bravos homens de outras eras:
estendei além de mim as flores, ponde
as coroas estreladas sobre a fronde
e tomai parcas e moiras por sinceras!

No salgado desses verdes celebrai
o que a vida ainda permite – um sonho efêmero!
D’além-mar, onde esse engenho gera o sal,

entre as ondas de um liame, não banal,
ó senhores, que comandam grau e gênero,
recolhei, desse legado, os cabedais!

Nilza Azzi

Estava Antônio



Estava Antônio a olhar a Lua, ausente,

perdido em sonhos vagos sobre a amada,
a auréola do crescente nacarada,
enquanto divagava, a sua mente.

Queria tê-la junto a si, mais nada,
a doce Filomena, simplesmente,
porque com todo amor que Antônio sente,
não pode nem sonhar vê-la apartada.

Enfim, quer ver a jovem, toda sua,
perder-se no calor do seu regaço
e exclama: ― Já nem sei mais o que faço!

Então toma uma corda e a prende à Lua,
segura numa ponta e dá um salto
e alcança Filomena, Antônio, incauto.


Nilza Azzi

Busca



A palavra que procuro

e vive a fugir de mim
é feita do som mais puro;
tem perfumes de jardim.

Cintila, às vezes, no escuro
das noites longas, sem fim,
mas se apaga quando juro
que não és nada pra mim.

Nilza Azzi

Avesso



A poesia, quando nasce, as rimas finas
esparrama pelo vão das entrelinhas.
A saudade já não cresce mais sozinha;
pelo tempo, uma esperança descortina,

num futuro que procura, que adivinha.
Ao dormir e ao despertar qualquer menina
tem um sonho e um coração que não combina
com o cinza do borralho da cozinha.

Quando a rama já vai longe e bem viçosa,
batatinhas são colhidas com cuidado
e se enxutas vão render um bom purê...

Adormece o coração e ninguém vê
que o poema tem avesso, um outro lado:
— certo humor que a desventura enfrenta e glosa.

Nilza Azzi

O impossível nós



Quando contempla a sucessão dos dias,

esse rosário de infinitas contas,
que lhe escorregam pelas mãos vazias,
por dedos pasmos, ante as horas tontas,

guarda a tristeza das ave-marias,
das ilusões e das certezas prontas...
Se redescobre o amor e as fantasias,
como afastar as dúvidas e afrontas?

Livra ao silêncio um grito sufocado,
de extrema rebelião, pelo pecado
de amar assim a quem amar não deve.

Mas o inimigo é sempre mais feroz,
tempo suspenso  que lhe cala a voz,
pelo impossível desse sonho breve.

Nilza Azzi

 

Borboletas



E se não mais houvesse as borboletas
azuis, riscando o ar no céu de agosto?
Seguidas de monarcas, por suposto,
em pretas e amarelas piruetas...

Vacila o pensamento, predisposto
a crer nesses ardis, fazer gazeta,
deixar que a forma inerte se derreta,
cair na realidade, a contragosto.

Se mesmo aquelas simples e amarelas
fugissem dos recantos do jardim,
teria o meu olhar, quais alegrias?

— Apenas as crisálidas vazias,
a imaginar que a vida é mesmo assim,
um campo de passagem, sem sequelas.

Nilza Azzi

Tristeza III



Ela passou por mim na rua estreita;
tinha um chapéu caído sobre o rosto.
O céu turbou-se em nuvens indisposto...
Acreditei fosse ela a minha eleita!

Distraída, afastou-se e um tal desgosto
tomou conta de mim, fez-me desfeita,
e sem dar trégua, sempre à minha espreita,
largou-me a alma assim, como um sol posto.

O tempo, que a mantém longe de mim,
é o mesmo a me fazer sentir meu fim,
porque sem ela sou qualquer ninguém...

A tristeza que eu tive, e não me tem,
escorreu-me das mãos qual fosse areia
e fez da rua estreita, a estrada alheia.

Nilza Azzi

 

Sonho


"It kills me that when you pull up FB
that it asks you what's on your mind."  (E. H.)
Ela habitava os sonhos de um poeta
envolta em seda, o branco do vestido
emoldurava o corpo bem brunido
e vinha a ele andando em linha reta.

Juntos buscaram, longe do alarido,
na rua calma, a forma predileta
de conseguir, do amor, cumprir a meta
e levitar, num mundo evanescido.

E fosse o sonho escolha de quem dorme,
e não o mundo onírico, disforme,
ele a teria nua eternamente,

nos braços seus, no amor que, embora ardente,
fosse assim branco, a nuvem solta e leve,
não a ilusão que a vida nos prescreve.

Nilza Azzi

Mein schatz



Eu contemplei um pôr de sol à beira-mar
e vi a chuva a escorrer pela vidraça;
olhei a Lua e entendi o que é o luar,
pisei na grama e senti tudo que ela passa.

Achei a fonte e compreendi o que é doar
e de um filhote admirei encanto e graça;
ler um bom livro me rendeu prazer sem par
e um vinho seco eu degustei em linda taça.

Ouvi Beethoven, no meu canto, bem quieta
e caminhei no fim da tarde pela areia;
senti o perfume de uma rosa... quase aberta!

Deixei de lado tudo aquilo que me enleia
e do que eu amo essa é a amostra mais seleta,
só pra dizer do amor por ti, que me rodeia.

Nilza Azzi

A meia-lua



A meia-lua no alto
parece um queijo de Minas.
Menina de olhar incauto,
o que do amor tu me ensinas?

Nilza Azzi

Prestidigitação


 

 

Na tola insensatez da juventude,  

acreditei no amor e muito amei...  

Amei até demais, o quanto pude;  

amei e fiz de amar a minha lei.  

 

E quem disser: – O Amor jamais ilude! –  

dirá contrário àquilo que mais sei,  

porque meu sofrimento foi tão rude,  

tão rude, que de amar desesperei.  

 

Aquela, a quem dei meu coração,  

levou embora a paz e o meu juízo!  

Embora entenda bem o que é preciso,  

 

jamais lhe sou capaz de dizer: – Não!  

Assim, eis-me vencido, não por mim,  

– a bela é que me arranca sempre um sim.  

 

Nilza Azzi

O céu choveu...



O céu choveu, à vontade,
toda chuva que podia...
Não há no mundo, verdade
que não veja a luz do dia.

Nilza Azzi

Saber



Em pleno espaço, enquanto o tempo passa,
as aves nada sabem sobre a hora
e cantam, voam, vivem sempre agora,
e comem sobre a terra, o que há de graça.

Nilza Azzi

O amor é escrito na areia...



Não há como controlar...
O amor não se prende, creia;
o amor é escrito na areia.

Como a mentira no ar,
como a água se evapora,
como a chuva vai embora,
como o rio encontra o mar,
é verdade secular
que todo amante receia:
o amor é escrito na areia.

Meu amor, eu sei agora
desse calor que me aquece.
Quando a luz já se amortece
e o dia, ao fim se descora,
enquanto a alma padece
e a lua a praia clareia,
o amor é escrito na areia.

Nilza Azzi

'té hoje



'té hoje, a conversadeira
depende de uma janela,
mas não pode haver floreiras
e nem perfumes, na tela...

Nilza Azzi
 
 

Bela



brota uma orquídea amarela
iluminando o xaxim
contrapondo-se ao marrom
explode e confunde o verde
como um pedaço de Sol
solta faíscas de cor
e um odor adocicado.

nilza azzi

Chegam as luzes...



Chegam as luzes do outono,
frouxas, incertas e mornas;
entre as cobertas ressono,
enquanto o dia não torna.

Nilza Azzi

Coisas minhas



Quando você foi embora,
naquela tarde de abril,
bem notei pela demora,
o modo como sorriu,

que nem tudo o que foi dito,
era a verdade completa.
Ficou algo, eu acredito,
sem dizer e que me afeta

até hoje; coisas minhas.
Leituras dos gestos, seus,
são sinais nas entrelinhas,
nas pautas daquele adeus.

Nilza Azzi

Queda



era refratária
ao espanto e à dor
mas diante de si
a parede neutra
era algo maior
a vida sem vontade
a morte sem razão
e o intervalo triste

nilza azzi

Além da Porta




A cor do céu já é a cor do inverno
e muda o mapa aos poucos de aparência.
O vento esfria e o frio parece eterno;
a luz boceja, esvai-se em indolência.

A noite guarda em sonho a minha essência,
a solidão escura o mundo interno;
traz a quimera, a dor que ninguém vence
e a confusão das formas mal governo.

Além da porta, além dos velhos muros,
onde andará o meu amor de outrora,
olhos de mar em dias de ressaca?

Vive a lembrança cada vez mais fraca;
na ideia esquiva a busca se demora.
Oh, luz noturna, vastos céus escuros!

Nilza Azzi

Fim



Dobre por ruas tortas
Passos sobre o gramado
Exéquias ao meu cadáver

Nilza Azzi_ Poetrix

No outono...



No outono que se avizinha,
espero dias mais claros.
A vida que diz: − Caminha! −
não me fornece anteparos.

Nilza Azzi

O estranho



Não te conheço, nunca nos falamos,
mas hoje entramos pela mesma porta...
Atrás de nós florescem muitos ramos
e a floração em cores nos conforta.

Se a natureza esteve um tempo morta,
refloresceu, porque hoje nos amamos...
Já o que passou é vago e não importa;
cantam pra nós, gentis, os gaturamos.

Mas dize, estranho, como pude amar-te
e te entregar meu corpo nesse ardor,
fazer de ti, meu guia e baluarte?

Por ser o afeto um bem que se reparte,
fingiste bem sentir um grande amor
e desse amor soubeste engenho e arte.

Nilza Azzi

 

Ritmo cinzento



Não foi da solidão que me escapou a voz;
se canto a desventura, é porque sou incauta
e o verso fugitivo é aquele que não falta,
pois cumpre o seu papel e faz menos atroz

o eterno isolamento e o branco desta pauta.
A voz surgiu do além, bem antes, não após
a vida revelar que há multidão em nós
e a vida, quando quer, assusta e nos assalta.

E assim vem deste som a cor e a fantasia,
a força natural e o ritmo cinzento
da ave que se eleva e voa à revelia;

entrega o seu cantar ao vasto firmamento,
que pelo espaço irrompe e súbito irradia,
mas cala ao refletir a pausa em que me adentro.

Nilza Azzi

Inverno



Os dias me parecem sonhos longos,
durante o inverno, quando é cedo escuro,
enquanto o tempo escorre sem futuro
e nos mosteiros repercutem gongos...

E as noites de um tecido vasto e puro,
tecem contornos rútilos e oblongos
nos telhados escuros, nos prolongos,
e o mundo é uma tristeza sem seguro.

O frio, sempre esse frio estranho e mau
que me vara as entranhas, fundo, é tal,
é fruto da distância e da carência

da fonte, a principal luminescência...
E as noites se confundem com os dias,
sem qualquer tepidez, noites vazias...

Nilza Azzi

O exercício...



O exercício de amar é cansativo;
incansável, o mar conduz-se em ondas...
As verdades da vida são redondas,
morrer é meu destino, mas eu vivo!

Nilza Azzi

A chuva e o poema


Chove na madrugada e o sono foi embora,
enquanto a voz do céu escorre pela calha
e a água derretida, um som mais claro espalha
e um galo canta ao longe e diz que está na hora...

Que o dia já começa e a chuva que atrapalha
as lidas da manhã, já está mais fraca agora;
o sol pode varar as nuvens campo afora
e o povo que desperta, esperto se agasalha.

Depois da chuva o ar ecoa ainda mais limpo!
Ruídos de motor mais outros sons garimpo,
enquanto recomeça a chuva mais pesada

e bate no telhado e escorre em enxurrada.
Se, sob o cobertor, meu corpo é um peso morto,
o verso que escrevi é apenas mais um porto.

Nilza Azzi

Perfumes e doçuras



A cena era real, idílica e perfeita...

Num banco de jardim, o encontro dos amantes,
e as frases que ele diz, jamais dissera antes,
pois fala ao coração da jovem, sua eleita.

O mundo esmaeceu, quedou-se por instantes,
silente e sem vigor, a pulsação desfeita.
Porém, logo em seguida, o dia se endireita;
e a brisa espalha ao léu, odores intrigantes.

Jamais vivera o deus bonança igual àquela;
podia adivinhar prazeres e venturas,
por ter a jovem flor surgido em sua vida.

Sedento, ele tocou seus lábios – em seguida,
sorveu do doce mel, bebeu da água mais pura,
e Leda então abriu a concha e deu-lhe a pérola.

Nilza Azzi

Marina



Senti como se o céu de azul intenso
conversasse comigo e, confidente,
soubesse dos detalhes do que penso,
do turbilhão que habita minha mente.

À mão, em tal lugar, sequer um lenço,
para salvar os olhos de uma enchente.
Na busca de aplacar o gesto tenso,
simulo o olhar vazio, num ponto ausente.

Nenhuma nuvem mancha o céu e a vida
emerge da paisagem colorida,
que some no horizonte, junto ao mar.

Contudo exista calma no ambiente,
a dor não me abandona e, sutilmente,
em ondas vai doendo devagar...

Nilza Azzi

Tempestade



O mar bramia em fúria; em todo lado,
o vento levantava a areia fina...
Um ar, perdido em bruma, esbranquiçado,
como se a hora fosse vespertina,
o céu pesado em cinza (que pecado!)
a chuva a fustigar uma ruína.
E veio a tempestade, força viva,
varreu a praia inteira e, foi embora.
Depois o sol ressurge e o dia aviva
as luzes do nascente e faz-se aurora!

Nilza Azzi

Era vidro...



Por ti, esperei à porta do cinema

– o encontro então marcado para as seis –
e sei que esperaria ainda outra vez,
porém isso me causa angústia extrema.

A tarde anoiteceu  e assim desfez
a tola confusão do meu dilema;
sobrou-me, da aflição, a dor suprema,
porque me foste assim tão descortês.

Jamais  tu me explicaste o teu motivo,
nem mesmo uma palavra me disseste,
alheio ao sofrimento que eu revivo.

Conservo essa lição, mas, inconteste,
o meu comportamento é instintivo:
– Não uso mais o anel que tu me deste!

Nilza Azzi

 

 

 

Alheia


Querido, cujo nome eu esqueci,
nas dobras da memória envelhecida,
sem ti, já não suporto a longa vida,
pois custa-me viver, sem tê-lo aqui,

a segurar-me as mãos com frenesi,
na ânsia que uma vida consolida
e deixa a alma lânguida e aquecida,
e dá-me a plenitude que aprendi.

Evoco a tua face,mas não lembro;
ainda é primavera e já setembro
colore os meus sentidos com perfumes...

Não sei, ó meu amor, por onde andas
e as asas das lembranças, hoje implumes,
circulam pelo campo, entre as lavandas.

Nilza Azzi

 

 

 

 

 

 

 

Transponder



Uma formiga andava pela rua
tão solitária carregando a folha
e procurava na calçada nua
uma passagem – mas não via escolha

Minha passagem não conduz à Lua
no céu tão dupla, resplendente bolha
se a belonave pelo mar recua
longe do fim – que a terra me recolha

Vê-se a respeito desse fabulário
que os animais sugerem prontidão
saber lidar com nosso adversário

De astronomia sei lições em vão
num universo ainda embrionário
vivo dos truques da imaginação.

Nilza Azzi

 

 

 

Correntes



A voz calada alheia ao meu encanto
pressente as correntezas subterrâneas
por onde viajam todos os pensamentos
... e o mar se agita
o sal por fim afoga a minha sede

Longe de alcance vagam à deriva
então confesso
estranha e companheira 
possuir esse tesouro será sempre
minha quimera 

Nilza Azzi

 

 

 

 

 

Escolhas


Entre as dobras do lençol, a olhar pra mim,
Contemplei-te, plenamente satisfeito...
– Qual um anjo, repousando no meu leito,
Como é bom, ó meu amado, ver-te assim!

Num amor predestinado a não ter fim,
Eram,Tétis e Peleu, o par perfeito,
Conciliados pelos deuses por direito,
Pois o mortal a quisera, até que enfim, 

Quíron contou-lhe o segredo da conquista:
– Tétis, faça o que fizer, jamais desista,
Pois a nereida é esquiva aos pretendentes.

O que Peleu não sabia era que, apenas,
Cederam-lhe a vez, os deuses, complacentes,
Porque almejavam ter vidas mais amenas.

Nilza Azzi

 

 

 

 

 

 

Imprevisível



Imprevisível seu rolar na cama,

o sono, o sobressalto, o hálito quente,
o semblante maroto de quem ama
e guarda em si o segredo da semente.

Quase um murmúrio o nome que ela chama,
enquanto sonha alguma cena ardente,
e a expressão sensual revela a flama
e o cheiro de seu corpo, o que ela sente.

Dorme o tempo, esquecido nas cobertas,
uma réstia de luz vai pelo quarto,
faz dançar a poeira que desperta.

 A vida é sucessão da dor dos partos
– começa pelas bocas entreabertas –
eclode no calor de amantes fartos.

Nilza Azzi

 

A penas



Era uma pluma leve como a pena;
era uma pena dura de roer.
Era uma agressão forte que depena,
feita a bico de pena, por prazer.

Era uma linha a dirigir a pena,
era uma pena inútil, sem saber.
Era uma pauta rica, ainda em cena,
a leve pluma, além do mesmo ser.

Era uma pena de ave, morta ao lado,
era o pio do filhote abandonado,
no apelo por alguma intervenção.

Era bem como as coisas todas são:
efêmeras, penosas, passageiras.
– As penas voam leves, sem fronteiras.

Nilza Azzi

A espera


“Esperando parada, pregada, na pedra do porto...”
(Chico Buarque)

Não era pedra, nem porto, e sim um portão,
onde eu a via, ao fim da tarde, às quatro e meia!
Se o coração de quem espera muito anseia,
dizem que ao dela coube amar a solidão.

Mas se o desejo traz no bojo um sonho vão,
ali parada tinha um ar que já permeia
quem alegria só conhece em face alheia
e tem no mundo a mais tristonha condição.

A luz dançante ao longe esquálida esmaece:
– Se em desespero eterno envia aos céus a prece,
é seu segredo e, assim, jamais eu saberia.

Guardo, porém, comigo a imagem vespertina:
–  Será que a noite encobre as dores desse dia,
enquanto as moiras vão votar-lhe a mesma sina?


Nilza Azzi  

A flor e a terra



Então pediu a flor, à terra por mais viço.
Riscou com a raiz, caminhos rumo à seiva,
depois curvou-se ao sol – perfeita rosa – ei-la
brilhante em seu jardim, porém sem saber disso.

(Fechada em seu botão, à beira de uma leiva
esconde no interior perfumes e feitiços;
contempla o céu azul e o seu corpo roliço,
a chuva, quando cai, de leve, apenas beija.)

Até que desdobrou – tão rosa e delicada
a roupa que ela veste ao tempo da florada! –
aos poucos seu matiz, em pétalas iguais.

Nutriu nesse jardim, até não poder mais,
em busca de seu mel, abelhas, borboletas,
até que desfolhou tingindo a terra preta!

Nilza Azzi

A fita



Puseste bela fita no cabelo,
rosada, contra o negro dos teus cachos...
Depois, tu desdenhaste o meu desvelo:
– Menina, de mim fazes o diacho!

Então foi tudo fita e atropelo,
viraste, de cabeça para baixo,
as pontas dessas fitas. Que novelo!
No meio dessas fitas não relaxo...

E desse olhar maroto que me fita,
entendo que me amarras com teu jeito.
E fazes o que fazes tão direito,

que já não sei se a tira delicada
atrai o meu olhar, ou se é cilada
a fita que te torna mais bonita.

Nilza Azzi

Ângelus



Os velhos sinos, aos domingos,

num breve instante, às seis da tarde,
detém o tempo, um tempo ainda,
calam os sons, antes do alarde,

vistos de longe, tão minúsculos,
extasiados, ante o crepúsculo

que não, não quer se abreviar;
desdobra-se em tons coloridos,
− rubro, rosa, cinza e violáceo −

suspensos no azul luminoso,
origem de angústias e gozo.

Nilza Azzi

A dança do amor


“As long as I'm with you, our hearts
will make the music our souls will dance to… “
(E. H.)

Na esfera azul além dos cantos da galáxia,
estamos todos nós, em pontos diferentes,
ora ao norte, ora ao sul, pequenos, meros entes,
em busca de aprender a usar a nossa audácia.

Assim, desde o começo, os vários dons presentes 
que incitam a enfrentar a dúvida opiácea,
a desvendar a lei com garra e pertinácia,
também nos fazem crer que amor é um acidente.

Mas pode ser que seja, o amor, algo além disso,
que nutre e faz crescer a alma e lhe dá viço;
a força colossal, que existe além de nós...

A nítida expressão e a verdadeira voz,
o sonho e a melodia, a sugerir a dança 
que ao fim irá juntar o bem que lhe afiança.

Nilza Azzi

A poesia borralheira



Não tenho quem aqueça as minhas mãos geladas;
nem mesmo quem me abrace e seque os olhos meus.
Não mora em meu borralho, a dádiva das fadas;
sapatos de cristal só servem pra museus...

Nilza Azzi

Baliza



Hoje eu chorei a dor da minha vida,
que dói tão fundo e nunca se amortiza;
lavei a alma e a pendurei, torcida,
onde não bate sol, nem sopra a brisa.

E quando escorre informe e diluída,
na solidão dos ermos, nem me avisa
que vai fazer sangrar esta ferida
e me deixar num canto, sem baliza.

Mas entre a alma e a dor existe um pacto
de não sofrer além de um tempo exacto,
porque doer a vida sempre dói...

Depois do choro, sempre estou mais leve
e, já que a vida é curta, é muito breve,
não vou fazer do pranto o meu herói.

Nilza Azzi

À uma hora



Os passarinhos cantavam
A minha Lília morreu.
(folclore português)


quando o Amor vacila
a dor estende tentáculos
ajeita as suas ventosas
agarra-se ao coração
até que lhe falte alento

ó alma, que vieste à Terra

como amar e não sofrer?

nilza azzi









Natureza reciclada



Entre brotos e botões, a primavera

tece o rubro colorido e se prepara,
com a cor mais adorável e mais rara,
e com calma, pouco a pouco, ela se altera.

Foi preciso um ano inteiro e quem repara
nos galhinhos que dormiram longa espera,
entre os raios, sob o sol, vê que prospera
um vermelho intermitente e uma tiara,

debruçada sobre o arco, adorna a entrada.
Logo, logo as flores vão formar cascata:
À visão de intensa cor, atordoadas,

borboletas... As asinhas abstratas
das abelhas, transparentes – quase nada – 
e avezinhas com seu canto e passeata...

Nilza Azzi

Achado brilhante



Achei uma estrelinha, à noite, em meu quintal;
piscava ainda aturdida, atrás do limoeiro.
Caíra sem querer do céu universal;
ninguém havia ali, fui eu que a vi primeiro.

Seria um meteorito, ou algo mais normal?
Não há como fazer um astro prisioneiro...
Contatos imediatos de terceiro grau;
estava bem ali, tão perto e por inteiro.

E então, em um segundo, a peça cintilou
– as cores que explodiu! – foi uma coisa louca...
Faíscas a dançar encheram meu espaço.

Achei-me pequenina e, em meu tamanho escasso,
não conseguia achar a voz em minha boca
e, antes que eu falasse, a luz se evaporou.

Nilza Azzi

Bucólica



E fosse Thalia a Graça mais formosa,  
entre as formosas flores do jardim,  
teria a forma pura junto a mim:    
― espinho sem valor de alguma rosa!  

E, da desgraça, o meu sofrer sem fim,  
que escorre pela roda preguiçosa,  
comprime em filamentos qualquer prosa,  
até verter do sangue a cor carmim.  

E fosse eu porventura um ser alado,  
por Zéfiro soprado até seu lado,  
para agitar-lhe as ondas dos cabelos,  

Amor, jamais queria a dor de havê-los,  
os olhos teus, além dos meus, distantes,  
e achar-me desterrado, como dantes.  

Nilza Azzi

Camuflagem



Ramos,  guirlandas, flores em cascata
alcatifaram toda a rodovia.
Por ela caminhei, cheguei à mata,
àquela onde cantava a cotovia.

Toquei, ao alaúde, a serenata,
contei segredos, mas não entendia
porque meu coração jamais acata
a voz que o adverte todo dia.

Há nítidos sinais por toda parte,
mas não posso entender essa mensagem
– a Lua lá no céu me desconcerta !

Quisera ter nascido mais esperta,
agir como os heróis dos filmes agem
e ir viver nalgum jardim de Marte.

Nilza Azzi

Águas de julho



Raio e trovão, a chuva cai bem forte;
lá fora é frio e dentro é quase morte.
É feito pausa extremamente longa
que mora n’alma e nela se prolonga.

E a chuva sempre modifica o ar,
ora mais leve de tanto chorar
ora mais claro, pois que foi lavado,
depois que a chuva foi para outro lado.

Porém sem chuva, sem a tempestade
que, de repente, a nossa vida invade,
não sobra  graça, brilho à luz do sol,

fazendo o arco em cores no arrebol,
nem a candura que se experimenta,
quando afinal acaba-se a tormenta.

Nilza Azzi

À beira-mar



são as conchas
meus pedaços carregados
pelas ondas mais rasteiras
e a espuma na areia
meu estupor
diante do tamanho
do mar

Tamara Trevi

uma garrafa...


Uma garrafa vazia
de fato, está sempre cheia
de toda luz que alumia
e do ar que nos rodeia...

Nilza Azzi

O pingo



O pingo estava perdido.
não sabia por onde andava
aquela letra anoréxica...

Ela era a única junto da qual
a própria existência esférica
fazia sentido.

Nilza Azzi

Altercação



À beira de uma estrada havia um galo.
Chovia e fazia muito frio...
Palavra provocante, ah, se eu te falo,
jamais terei perdão, pois desconfio

que ao vê-lo em tal perigo, o meu abalo
deveu-se a perceber que ele fugiu.
Palavra fugitiva, ah, se eu te calo,
vazia fica a linha, sem um pio.

O que fazia o galo, ali, curioso?
Fugira, ele, de um velho galinheiro,
cansado de viver, lá, prisioneiro?

Palavra que me atenta só por gozo,
esconde-se num velho dicionário
e torna o meu pensar fragmentário.

Nilza Azzi

Estragos de mim...



Estragos de mim esses olhos

em seus caminhos indiscretos
penetram as sombras sem medo
descobrem alternativas

Começos de mim essa boca
faminta por beijos errantes

Numa tela de Djanira
a vida plana como um rio
escoa a luz do momento
reflete os desejos sinuosos

Entre as negras sobrancelhas
surge um vinco involuntário

Nilza Azzi

Avença



Habita uma certeza, escancarada, intensa,
anzóis causam rubor –despenca a água – tingem
cascatas e explosão. No lago nada a virgem,
a flor, a pena, a encrenca, até que a mágoa vença

e o cálice repleto, a luz alada, a origem,
destruam de uma vez diques e frágua. Avença...
E o mar mais interior a gruta invada, extensa,
a praia sem calor onde deságua e cingem

em seixos, branca espuma ao derredor, na orla.
Presente ao longe a voz de uma sereia, imanta,
preenche o mar, o céu, de novo espanto. Crasso!

Informe, a ilusão se crê melhor no espaço,
infâmia que penetra e que permeia tanta
descrença de entender esse meu canto: – Borla!

Nilza Azzi

Catarse



Por que me dói o coração, em dor tão forte,
e por que bate em descompasso, à tua voz,
cada vez mais, sem encontrar o que o conforte,
e dói, e dói, dói sem cessar, e dói após

saber que tudo que lhe resta é dor ainda?
Por que me dói o coração, sofre esse corte,
e dói bem mais, sendo essa ausência dor infinda,
e mesmo assim, esse doer pouco lhe importe?

Ora, ele dói por esse amor, tão renitente,
ora, também, por esse amor, pleno e completo.
Dói-me, porque bendiz a festa do presente

e ainda dói por ser rebelde e inquieto...
E nessa dor, sofre de um modo diferente,
em regozijo por amar-te, ó meu dileto.

Nilza Azzi

Asas



Cansei de amar a quem já não me quer!
Vou sair pelo mundo e ganhar asas,
abusar da poesia que extravasa
e obrigar a palavra ao seu mister.

Cansei de ser um zero à esquerda, rasa,
conforme à situação de ser mulher;
de ajustar-me ao teu gosto e de qualquer
conversa tua que me ponha em brasa.

Depois, quando eu voltar, feliz e alada,
talvez me dês valor e olhes pra mim
como a luz que clareia a tua estrada;

talvez entendas que meu verso enfim
encontra em ti a melhor pista e nada
vai me livrar de amar-te tanto assim.

Nilza Azzi

Preamar



Como se fosse o mar, assim o amor,
vasto, inconstante e muito perigoso,
jamais conhece, do ir e vir, repouso,
e quando encrespa  – que avassalador!

Se brilha ao sol, reflete azul formoso,
ou bem confunde e mostra verde cor,
e sobre nós dispõe, só por dispor,
pois nos atrai ao seu deleite e gozo.

E o mar cuja canção nos delicia
– o marulhar das ondas sobre a areia,
num forte estrondo, o choque nas falésias –

revela sobre amar verdades régias,
senhor desse poder que nos alteia,
de amar­ – essa tristeza, essa alegria...

Nilza Azzi

Divagar



Da matéria inconsistente e vaga
de que são feitos os sonhos
guardei num vidro, uma ínfima parte.
Quando alguém a quem se ama parte
a alma triste e solitária vaga
desiludida, sem mais crer em sonhos.
Mas, quem outrora navegou nos sonhos,
pode recuperar a esperança... (em parte)
abrindo o coração, vencendo a vaga.

Nilza Azzi

Azul ausente


“Verificar o azul nem sempre é puro.”
(Do azul, num soneto_Alphonsus de Guimaraens Filho)
E não havia azul, mais, no meu mundo.
Nenhum azul na noite sem estrelas
e nem no mar, nos rios e nem pelas
pequenas poças d’água... De azul fundo

não eram mais as flores e querê-las
azuis não me traria o tom rotundo,
o azul sempre tão caro, pois, segundo
um deus qualquer, dá bom fado às camelas.

E sem o azul, perdeu-se a luz mais bela;
tudo ganhou a cor da tempestade,
os cinzas derrubando o horizonte.

E  a cor mais triste vista bem defronte,
tinge-me os olhos, quando o pranto invade,
falto de azul...  Que grande ausência, aquela!

Nilza Azzi

 

Analogias



Luz do pensamento, asas da alegria,
águas no deserto, em manhãs tão brancas,
flor de buriti, a enfeitar barrancas,
um bom cobertor, numa tarde fria.

A bebida quente, lá pelas tantas,
pôr do sol perfeito, cor que irradia;
de uma torta doce, a melhor fatia,
a pergunta esperta e as respostas francas.

Louco espaço-tempo da minha mente,
tudo que acontece de mais frequente
são analogias que ninguém vê;

tudo que desperta em mim um sorriso,
tudo que há de raro e de que preciso,
confesso que só pode ser você…

Nilza Azzi

Depois do carnaval



Tirei uma tampinha do meu dedo,
ele sangrou e não parava mais...
O mundo entonteceu, ficou azedo,
mas recebi socorro de um rapaz.

Olhei pro sangue e senti tanto medo,
que aquelas gotas me fossem mortais
e, assim, da terra, fosse eu tão cedo.
– Alguém iria aos meus funerais?

Mas minha alma não fugiu em gotas,
o esvair-se não aconteceu
– esse meu medo estúpido, ancestral .

O esparadrapo, com as bordas rotas,
esconde o corte que o dedo sofreu:
só vou olhar depois do carnaval...

Nilza Azzi

Ausências



Era uma vez um trem, já de partida,

e a jovem que corria pra embarcar,
adeus flutuando pelo ar
— a lágrima escorrendo uma dor líquida.

E sempre uma estação para lembrar,
um rosto, uma figura esmaecida.
A força para a glória de uma vida
ficara entre as paredes de outro lar.

Era uma crise fatal, sem solução
— impossibilidade natural
de ter o que quisera ter então...

Restava um gesto antigo contra o mal,
manter sob controle o coração,
que os trens chegam e partem, sempre igual.

Nilza Azzi

Alfa



Quando, da Lua, as cores se arrepiam,
como se fossem luzes da ribalta,
e quando o som do violão faz falta
para embalar as vozes da poesia,

quando as palavras não colam na pauta,
tal como a noite não cola no dia,
quando o tambor percute à revelia
para marcar a dança e a ressalta,

além dos montes, nos longes da terra,
vozes secretas urdem velhos planos,
sobre uma guerra resistente e antiga,

e  o velho alfa, que comanda a liga,
jamais emite um uivo leviano
e pelas matas, pelos campos, erra...

Nilza Azzi

amar é doce



na vez do encontro  
meu coração dispara  
e nesse ponto  
descubro o quanto é cara
a tua voz  
e sei o quanto é doce  
estarmos sós  

nilza azzi

Até


Quando eu falar de amor, não acredita em mim
e as juras que eu fizer, jamais confia nelas,
mas posso prometer, não restarão sequelas,
se um dia esta ilusão chegar a ter um fim.

As minhas emoções tranquilas e singelas
não são nada demais, são flores num jardim,
bem simples e banais, as hastes de um jasmim,
tecendo a sua rama, em torno da janela.

Quando eu beijar teu corpo, apenas por desejo,
não crê em mim também, supondo ser  afeto
e então vou me curvar,  serás meu predileto.

Porém se conseguir, tão claro como almejo,
mostrar-te, meu amor,  que não mereço fé,
mais forte eu te amarei e por mais tempo, até.

Nilza Azzi

love



leva-me a outro universo
limites aos quais nunca fui
longe... longe... longe...

Enlevada por teu chamado
lúbrico e atemporal
levito em sustos
lua... de... mel...

nilza azzi

Tempo improvável



Quando contempla a sucessão dos dias,
esse rosário de infinitas contas,
que lhe escorregam pelas mãos vazias,
por dedos pasmos, ante as horas tontas,

guarda a tristeza das ave-marias,
das ilusões e das certezas prontas...
Se redescobre o amor e as fantasias,
como afastar as dúvidas e afrontas?

Livra ao silêncio um grito sufocado,
de extrema rebelião, pelo pecado
de amar assim a quem amar não deve.

Mas o inimigo é sempre mais feroz,
tempo suspenso que lhe cala a voz,
pelo impossível desse sonho breve.

Nilza Azzi

Apagam-se as luzes



Medrava, entre as pedras, a gramínea,
rasteira, mas constante em seu crescer;
bem forte, não importa, curvilínea,
seguisse sua trilha a se estender.

Sabia que no a, havia a alínea;
fugia com horror da alínea b...
Conquanto se notasse consanguínea,
queria a complacência de quem lê!

Por falta de tesoura, extrapolou,
criou belo tapete, o tal gramado,
e tudo se tornou, sem mais, informe.

Ao pé da letra, não se fez um gol,
nem mesmo um escanteio foi marcado.
Alguém trocou a placa e o campo dorme...

Nilza Azzi

Ai, que saudade!



Ai, que saudade  
da vida que vai tão longe  
de um sonho que o tempo esconde  
nas horas tristes do dia...  

Ai que vontade  
de ser um lugar tão perto  
a vida depois da curva  
e o céu a descortinar  
não fosse essa mancha turva  
nem tampouco a solidão...  

Nilza Azzi

Ausência



De ti não me restou palavra alguma,
história, ou mesmo ação benevolente;
não guardo tua imagem no presente.
Nenhuma frase expressa coaduna

a forma sem contexto, irreverente,
da fala a desfazer-se, qual espuma
− quem vive de mentiras se acostuma,
ao ponto, em que até a verdade mente.

E vivo num deserto ardente, seco,
com noites em que cai além de zero
o grau da solidão, justo no beco;

o ponto do discurso mais austero,
o falso adjetivo, o verbo peco,
o som que já não ouço e ainda quero.

Nilza Azzi

 

Nilza Azzi

gato-poesia



meu gato-poesia espia
e mia em cima do muro
inseguro, lambe as patas
espreme os olhinhos amarelos...

se teme o inimigo ancestral
bem ou mal, enfrenta o perigo
e junto ao perdigueiro vai brincar

nilza azzi

Formas



Nuvem que vaga pelo céu distante,
sonho de chuva de um grão diminuto,
meio dormente, à beira do levante:
– nova esperança traz como atributo.

Que escalde a terra, o fogo crepitante
e de algum modo, num saber arguto,
rompa-se  a casca, surja logo adiante...
Dos muitos brotos, logo venham frutos,

em messe farta, a revelar da vida,
a breve essência, a história resumida,
o desdobrar da eterna trajetória,

do ciclo efêmero do ser humano...
E sobre as graças, nesse chão profano,
vale lembrar que a forma é transitória.

Nilza Azzi

 

Vespertinas



És a minha alegria, meu pesar,
toda loucura dos meus dias tontos,
um tesouro perdido a procurar
– a soma inútil de todos os pontos .

És a cor mais escura a fazer par
com o contraste desses brilhos prontos...
As luzes da cidade a cintilar,
meros sinais de certos desencontros.

E não sei se te quero ou te rejeito,
estranho amor, que permanece além
daquilo que se entende por um bem.

Um mal comum, mas que me causa efeito
– um salto que se aborta pelo medo –
e a noite colhe um dia meio azedo.

Nilza Azzi

Máscara



Sem metro, sem rima, sem pausa, sem cor,

perdidos no espaço, sumiram de vista;
são mil fragmentos... por mais que eu insista,
eu não reconheço um pedaço, um valor

daquilo que outrora chamou-se razão.
São tantos pedaços que ao mundo entreguei...
O mais puro afeto, ao capricho da Lei
escapa de mim, e eu não tenho noção

daquilo que espera por mim de ora em diante.
Então eu não quero ser mais comportada,
eu rompo com tudo e caminho adiante,

cantando revolta e tristeza guardada.
A vida é cruel, é uma dor delirante:
a poesia mascara essa dor tão danada.

Nilza Azzi

O louco


O louco é a primeira carta do tarô;
também a última e a mais instigante...

Ia pela rua, um pobre homem só,

levava numa vara o saco do destino,
amarrado em trouxa, um saco pequenino,
enfrentando o mundo, louco de dar dó.

Junto ao precipício, com seu violino,
enviava ao vento o mi, o fá e o dó...
Tinha no chapéu, a pena carijó
e mirava o alto, todo o céu divino.

Não sabia o medo, nessa vã loucura,
entregava ao caos, o peso do seu fardo
e se despejava num vazio imenso.

Tinha na lembrança, à guisa de consenso,
vagas  impressões do doce mais amargo,
que jamais provara, em sua desventura...

Nilza Azzi

Soneto do verde imoderado


"Então pintei de azul os meus sapatos" 
Carlos Pena Filho

Então pintei de verde os meus cabelos,
sem saber se acertava em tal emprego;
se na guerra e no amor não há sossego,
que morra verde o fruto e sem desvelos...

E o verde mar profundo a que me achego,
levanta, em verdes ondas, pesadelos
que o verde das palmeiras rasga em zelos
e tudo se transforma em desapego...

E na verdura insana da floresta,
vasculho sem saber se ali inda resta
uma esperança, ao menos, a brilhar.

Um vaga-lume o vago verde pisca
e, esverdeada, deixa uma faísca
e se a loucura é verde eu já não sei.

Nilza Azzi

Canto d'aldeia



Mais uma tarde chega e minha aldeia,
nessas horas tristíssimas do dia,
envolve em luz as nuvens e arrepia
a franja do horizonte... A lua cheia

sobe no céu, enquanto a aragem fria,
enevoando os prados, volta e meia
junta o capim e no seu canto enleia
grilos e sapos; rompe a calmaria.

Se, no escuro da noite, é tão pequeno,
esse pedaço de terra e, mais sereno,
dos lares, o recôndito sagrado,

sempre há luzes acesas (e outro fado),
a se estender, por este mundo vasto,
porém nesse meu canto, a mim, me basto.

Nilza Azzi

Clímax



Como se, em mim,  já não coubesse mais,

de bem querer, pedaço mais nenhum
e o coração guardasse desiguais
um eu e um outro, em formas incomuns,

ressinto assim que, às vezes, é demais
o tanto amar...  E busco algum jejum,
para encontrar do amor alguma paz,
sem anular meu ser, de jeito algum...

Mas é na calma que me explode a falta
e já não sei além de mim, além
do meu sentir, o espaço que detém

nessa minh’alma, a estima tão em alta,
sem que me importe a justa sobra em mim
e que me acabe justo nesse fim...

Nilza Azzi

Floreta



Esse dragão que habita na saída

do mundo escuro, antro de outras feras,
se cospe fogo e a muitos intimida,
revela antigo o seu saber, pudera!

Guarda os confins da terra mais temida,
onde ninguém jamais soube quem era,
– muitos quiseram ascender à vida,
ao tempo curto de uma primavera.

O velho monstro, sempre avesso à luz,
produz as cinzas de seu próprio leito
e, nele, a sombra mais cruel reduz

à sensação de um luto insatisfeito.
No campo ao lado, ao pé de velha cruz,
a flor singela de um amor-perfeito.

Nilza Azzi

Pensamentos de Deus



A inspiração da Mente universal
recolhe e agrega todo ser vivente
e no sono de Brahma, bem e mal
desaparecem,  dentro da semente.

Adormecida, a vida segue igual,
até que o deus, diante da serpente
que engole a cauda, ação fundamental,
reage e expira tudo novamente.

E quando o Verbo determina aos Devas,
que da matéria, a essência mais primeva
deve compor mais uma Ronda, então

o Criador conforma em pensamento
a todos nós, assim nos dando alento,
e nos transporta além da escuridão.

Nilza Azzi

Vestígios



Um verso eu rabisquei na areia do deserto,

sabendo de antemão que o vento levaria,
palavra por palavra, além da areia fria,
até que não restasse a minha voz por perto.

No verso eu descrevi o quanto eu te queria
e como acreditei que amar pode dar certo.
A marca que deixei foi sob um céu aberto
e o mundo em que vivi vibrava em harmonia.

Porém como esperava, o vento ali soprou,
rasteiro, e foi levando a areia e, em cada grão,
desfez-se a minha voz, fugiu-me a força, então.

Quem sabe a brisa entregue, à areia que espalhou,
uns traços deste verso, e não de outro qualquer;
vestígios sem função do amor de uma mulher.

Nilza Azzi

Campo limpo



Levanta —  meu senhor! — O dia brilha intenso,

nas terras logo além,  germinam as sementes,
assume o teu papel, não sejas indolente;
se tudo é sempre igual, a língua perde senso.
Nem todos são os grãos que vingam,  entrementes,
ganhar a luz do dia envolve uma disputa!
— O  verso não quer mais uma palavra enxuta,
procura pela voz  versátil das vertentes.
Senhora dos vergéis, estranha ao vil concreto,
de nível superior, os modos imponentes,
(o som escapa forte, é sopro contra os dentes)
desmonta de uma vez o berço analfabeto.

        No fundo do crisol, mistura delirante
        espalha pelo ar as luzes do levante.

Nilza Azzi

Nebulosa



O amado surge e o horizonte brilha
em cintilações de luz, em cor e festa.
E o cheiro do capim dessas manhãs
rescende ao bom odor da terra bruta.
Por onde andei, em solitária estrada,
longe de ti, ó força de minh'alma?
Somente atrás da pequenina chama
do amor que vislumbrava prado além;
em busca da estrelinha sobre o monte,
nas tardes de perdida escuridão...
Não sei! Nem sei de como estás diante de mim,
atrás das névoas de ilusões tão fortes.
Diz, meu amor, da essência dessas flores,
do encantamento dos jardins celestes;
e dessas vinhas de cachos maduros
das fontes virgens cujas águas cantam
outras canções, das quais não falaremos...

Nilza Azzi

Projeção



Se um dia fores só e eu for só,

logo nós que fomos sós a vida inteira,
uniremos tristezas em fileiras
e a saudade não será mais tão atroz.

Se um dia, deste mundo, o desencanto,
de tão velho, não roubar a nossa fé
e essa vida, tão antiga como é,
não trouxer o sofrer que abate tanto...

Nossos passos, seguindo a mesma estrada,
da poesia e das almas inquietas,
deixarão pelo pó as mesmas setas
rumo ao sonho, onde não nos falta nada.

Nosso olhar, procurando um bem futuro,
bem na linha em que o céu encontra o mar,
não terá outro bem para espalhar,
a não ser um poema extremo e puro.

Nilza Azzi

Charada



Inspirado vou eu ouvir som agoureiro,
se primeiro há em mim a intenção de fruir;
de sorrir pelo céu, esse azul de tinteiro
e me abeiro da paz, brancas nuvens, porvir.

Ao me abrir ao prazer, vejo ao longe um outeiro
e um aceiro contorna um farol a ruir...
Eis me a rir, gargalhar, pois me sinto fagueiro:
sou herdeiro do vento; ele é meu elixir...

A luzir, longe o mar, velas brancas, infladas
e as paradas da espuma a subir pela areia.
E se alteia uma onda, outra logo se quebra

e celebra a visão, alma assim nunca alquebra.
Se requebra esta voz, a balada que anseia,
desenleia este amor das antigas charadas.

Nilza Azzi

Infinito



Esse engenho que roda enquanto gira
e, ao girar, faz rodar tudo ao redor,
e carrega no centro o rei maior,
queima sempre e sem fim, a imensa  pira.

Esse fogo sustém  um pormenor,
é uma força infinita e nunca expira,
entrelaça nas alças de safira,
a existência do grande e do menor.

Entre os sóis que constelam seu trajeto
e as esferas, de suma quididade,
em si mesmo, ei-lo único e completo...

Infinito, do qual nada se evade,
guarda tudo o que há de mais secreto,
vai e vem, detentor que é da Vontade!

Nilza Azzi

Grande amor



Amor-paixão senti pelo Diogo.
Que sentimento forte, abrasador!
Que me queimou inteira, como o fogo
queima o papel de uma carta de amor.

Que erro mais tolo, ele era demagogo
e me envolveu em erros... Sem pudor!
Levou-me à farsa. Libertei-me a rogo
e nunca mais, assim, quero dispor

dos meus afetos. Quero a alforria
e que o Diogo tenha o que merece.
Minha revolta já não se disfarça

e o meu desejo? Outro não seria
− e até por isso faço a minha prece −
Vê-lo penar de amor, só por pirraça.

Nilza Azzi

Sem medidas



Ah, se eu tivesse, em vez dessa certeza

um desquerer qualquer que me valesse,
razão que não me fosse igual, nem esse,
um vasto amor, com fúria que se apresa.

Mar revoltado, em ondas revertesse,
em luz que se dá brilho, antes de acesa,
em chama que nos arde a natureza
e a força que nos mora fosse haver-se...

E o mar engole e cospe − é ou não é
o mundo de nós mesmos feito avesso,
de um outro que nos vive, por tão forte.

Se é, se pode alguém manter a fé,
por mim já está tão certo, ou estremeço,
só de pensar que amor desvale o norte.

Nilza Azzi

Dragão



De novo esta vontade de sumiço
o verso é meu esconderijo antigo
o céu que nos protege não é fixo
camadas de mistérios e perigo.

A velha persistência sabe disso
e  fadas inventaram esse abrigo
tornaram  a palavra compromisso
as letras são os rastros do que digo.

O coração do espaço desfibrila
a reta se desfaz ao fim da fila
de pontos nos buracos do infinito.

O mar nada mais diz enquanto fito
a plácida ilusão do espaço azul
no ninho do dragão achei um ovo...

Nilza Azzi

 

Estados da alma



O céu, sempre uma esfera silenciosa;

o azul, uma ilusão que nos encanta;
a voz é uma vontade na garganta;
rainha no jardim, somente e rosa...

As nuvens, brancas nuvens, são a manta
que torna essa impressão mais caprichosa;
a mente acha repouso enquanto goza
de um certo desalento e não se espanta.

Silêncio, pois é sob o céu parado
que a vaga sensação de um bem perdido
procura acomodar-se á vida em terra;

silêncio que faz bem, mas nada encerra
e nos ouvidos sopra esse zumbido
que é som, mas representa um outro estado.

Nilza Azzi

Flores da época



O manacá-da-serra enlouqueceu,

liquida tudo, vai trocar o estoque;
libera a floração num jubileu
e deixa a serra linda, sem retoque.

E tantas outras surgem a reboque;
no verde deste outono, a cor venceu
e a luz que reverbera tem teu toque,
nas cores da ilusão, ó meu Romeu.

O custo é uma pechincha, é quase nada
o entorno da paisagem adornada
atrai a atenção. A tarde desce...

Ponteia a quaresmeira o verde escuro,
a serra do Japi é quase um muro
e escrevo num papel a minha prece.

Nilza Azzi

Leque



Na madeira, marcava-se a toada 
– era um lírio, seu rosto descoberto – 
sobre o palco, passinhos, delicada, 
movimentos de areia no deserto...

O quimono da gueixa, iluminada, 
sob um feixe de luzes, entreaberto, 
é bordado em brocado e, na beirada 
do decote, uma pérola, decerto 

dá realce a uma pele sem sinais. 
E na dança folclórica descerra 
várias vezes a arte do pintor: 

Sobre o leque fineza de dispor 
sutilezas  – a síntese da terra – 
as nuances das crenças ancestrais. 

Nilza Azzi

Cada estação...



Cada estação é uma tela
surpreendente e natural;
cada qual por si é bela,
faz brotar novo ideal.

Nilza Azzi

Da tristeza



Tenho uma dor, antiga como a vida,
se tem um nome, deve ser Tristeza.
Já vim ao mundo, dela acometida,
antes que a minha alma fosse acesa.

Para deixar de estar assim perdida,
na solidão, em meio às incertezas,
fiz contra a deusa súbita investida:
– Tornei-me alegre (estúpida proeza!).

E nesta vida, onde há pouco e tanto,
de uma alegria que persiste breve,
de uma tristeza que nunca prescreve,

a alegria envolve-me  à vontade,
mas é tristeza o que da alma evade
e vem amalgamar-se ao meu espanto.

Nilza Azzi

Inconstância



Na terra em que havia palmeiras
e o sabiá com seu canto
habitam jovens faceiras
mas seu mundo é desencanto.

Foi-se embora o trovador
num navio sem destino
a cantar versos de amor
e a sofrer por desatino

Nilza Azzi

Inglória



Essa dor que nos punge a alma, ingente,

e não é dor de amor nem de paixão,
é mais dor de viver, viver e, então,
descobrir dor maior, à nossa frente.
É saber que na busca não há pausa,
mesmo quando o cansaço nos abate
e, se a busca nos leva ao disparate,
é mais intensa a dor que ele nos causa.
Também é despertar com nossos medos,
adormecer nos braços de fantasmas,
em meio à realidade que se plasma
cruel e descobrir isso bem cedo.

É causa sem efeito que nos valha, 
diante do desfecho da batalha.

Nilza Azzi

Carnaval



Há duas direções no meu caminho
–  em pleno carnaval tudo é excesso –
porém , diante do mundo, não confesso
o quanto este folguedo me é daninho.

Em meio à multidão, em seu recesso,
cansado, o coração bate sozinho
e nada, nesse intenso burburinho,
afasta a confusão na qual tropeço.

Por que é tão dorido ver-me assim,
perdida nesse brilho tão escasso?
Talvez porque o salão olha pra mim,

mas quando olho no espelho, me desfaço,
se deste lado enxergo um arlequim,
do outro –  a gargalhar –  vejo o palhaço.

Nilza Azzi

Critério



A minha mente anda confusa e vaga,

perdeu o siso, o pouco que ainda tinha...
E assim deixou-me a murmurar sozinha,
Linguagem muda  – parece uma praga.

Por ter causado esta tristeza minha,
do pensamento, um fato não se apaga;
indiferente aos rumos desta saga,
meu bem-estar despreza e espezinha.

Já o coração precisa de uma voz,
pois quer contar do seu estado aéreo,
o descompasso, o sobressalto atroz,

mas não consegue agir e ter critério.
Se sofre mais que a mente, e sofre a sós,
é porque sabe que és um caso sério.

Nilza Azzi

Em foco



Ela

era descarada
nada temia
tudo enfrentava
e ousadia
era seu lema

Quando era sua vez
subia ao palco
e brilhava
sempre audaz
no mundo vogava

Ela era também tímida
receosa e tão pequena
emitindo um som tão fraco
quase cinza de um poema

Nilza Azzi

Finais



Tarde cinzenta de um domingo triste,

é bem outono e o mundo, descompasso
entre o querer e o que de fato existe,
entre o que sonho...  e o que de fato, faço.

Tarde cinzenta guarda meu cansaço,
por enfrentar, desse inimigo, o chiste
e padecer o gosto do fracasso:
– Ponto final a que me conduziste.

O céu pesado esconde a  velha cor,
traz ao meu mundo o peso da opressão
e o coração sufoca por ser só...

Saber... Querer... Poder... Eis o meu nó!
Fruir...  Sentir... Parir... Sempre se dão!
– Quisera ter mais sonho e mais amor!

Nilza Azzi

Gato



Eu me apaixonei por ti,
entreguei meu coração,
porém tu disseste um não,
à prova que eu te pedi.
Tu não me amas de fato,
como eu pensei que me amasse.
Sei bem que tu és um gato,
mas só vejo em tua face,
um olhar vago, abstrato.

Nilza Azzi

Morreres



Se eu tiver que morrer ao meio-dia,
que o sol se esconda e a chuva seja fria
e que eu vá jazer longe daqui,
no mar azul, que há muito eu escolhi.

E assim meu pó não saiba mais quem é,
se areia, sal, se espuma ou mesmo até
alguma conta, em que participei
da formação da esfera, branca ou grei.

Se eu tiver que morrer à meia-noite,
que o vento encrespe e forte seja o açoite
das ondas, sobre as rochas das falésias...

E as minhas poucas cinzas, ele asperge-as,
o mar revolto, a um céu indiferente,
na cor banal de um último poente...

Nilza Azzi

 

Rede de segurança



Rede de segurança

Em uma das mãos a argola
noutra a pilha de palavras
ando na corda bamba

Existe o horizonte, longe, além
e o precipício abaixo

É sempre o óbvio que transparece
apesar do peso a palavra levita
enquanto avanço o passo

A plateia apenas observa
alguns torcem por mim
outros querem meu fim

Por covardia não olho para baixo
enquanto o vento balança o fio
e o vazio envolve os sentidos

nilza azzi

 

tronco




teu tronco
faz-se em retas curvilíneas
onde cravo minhas gavinhas
em avanço na escalada
até que possa
alimentar-me, a tua seiva

nilza azzi

Visões



A borboleta que vemos entre as flores,

a pousar, aqui e ali, com ar gentil,
ela sói provar também de outros humores,
de outro tipo menos nobre, bem mais vil.

Quando os cadáveres, meros condutores,
deixam escapar o sumo que os nutriu
essas rainhas, das mais diversas cores,
pousam sobre a morte, bebem desse fio.

A vida lembra esse rio indiferente,
cujo desejo, seguir até o mar,
força um caminho, sem nunca se deter.

O rio, das águas, esquece de saber;
bem como a vida, de nós, de se lembrar:
ela só quer perdurar, seguir em frente.

Nilza Azzi

Horas absurdas



Oras absorta ao céu

teu absurdo manto azul
a face oculta.
Horas de silêncio
deslizam vãos e véus.
Sonhos e refluxo
eras e horas
oras entre heras...
Teu absurdo manto verde
pompa e festa.
O grito adormecido, tua boca
era ora a espera, ora o abandono.
Visões e reflexo do Universo
em absurdos olhos azuis silentes.
Horas absurdas da manhã
teu café com leite
jornal do dia
e pão com manteiga.

Nilza Azzi

Última visão



Éramos dois, num dia tão distante;

um mundo em flor, as ruas do mercado!
Quem vai saber por que não fui adiante,
pois me perdi – caminho equivocado.

Éramos dois, na busca de um instante
em que um triunfo fosse declarado,
mas a vontade não é o que garante
chegarmos sempre ao mesmo resultado.

Longe daqui, montanhas do Marrocos
serão teu lar, cobrindo o horizonte,
um pôr-do-sol, a cena ali defronte?

Não sei prever se vou morrer na praia;
– órfã da luz e sem amor, sufoco ­–
o mar traz ondas brancas, num só bloco.

Nilza Azzi

Olhares



Não há olhar sem luz,  por ela sempre externo

a forma da visão e de encarar o mundo.
O belo nos seduz, contudo o mais fecundo
contato é emoção; contempla o mais fraterno.

A imagem que reluz, se esvai, dura um segundo;
as mais opacas são lembranças de um inverno.
Se um feixe nos conduz, do raio que governo
pesquiso de antemão e cores não confundo.

Fitar eu sempre quis, com olhos bem brilhantes,
o amor sem nem cuidar que fosse sobranceiro;
apenas ser feliz, sem freios de um roteiro.

Guardei no meu olhar a luz da liberdade;
mortal jamais prediz o que virá adiante.
inútil foi sondar; te foste num instante.

Nilza Azzi

 

Perguntas



– Vovô, se toda noite o céu se acende

e as luzes já começam a brilhar,
existe algum anjinho ou um duende,
que junta cada estrela com seu par?

– Quando era tão pequeno como eu sou,
vovô, você sabia de onde vinha
o brilho desse céu que Deus criou
e lá, sabia achar sua estrelinha?

– Depois que tudo já foi apagado,
onde é que o anjo guarda aquelas luzes?
O armário é bem grandão e bem escuro?

– E quando a Terra vira pro outro lado,
as estrelinhas, já com seus capuzes,
estão dormindo num lugar seguro?

Nilza Azzi

Sem outras saídas



Deixei escorrerem as águas passadas
e os velhos moinhos, em torpe abandono,
sustentam as pás, essas mãos desoladas,
na desesperança do gesto que aciono.

Inúteis os grãos, as searas deitadas
caíram ao chão, antes mesmo do Outono...
E os velhos moinhos, beirando as estradas,
são outras moradas, mas nada questiono:

– O tom da paisagem, estranha, irreal;
o ar quixotesco e as pedras caídas,
na base do muro, pintado de cal.

Em tempos de outrora, sem outras saídas,
o meu pensamento sofreu, afinal,
o choque mortal de emoções preteridas.

Nilza Azzi

Vênus exilada



O quanto peque em versos, sem qualquer talento,

tentei fugir de ti poesia malfadada,
seguir outro caminho, andar por outra estrada.
Ah! sim, pensei deixar-te, o sonho que alimento,

a nuvem de meu estro, a linha alinhavada,
o mundo circunflexo, o estrato e o sedimento,
o meu querer pesado, o coração ciumento
e a dor de bem saber a letra da toada...

Da mesma forma eu quis, do amor passar ao largo,
pois tem muito em comum, a saga das paixões,
e paguei um a um os meus pecados tolos.

Já não sei mais dizer se foi por culpa ou dolo
− e saberias tu, se os limites transpões −
que perdi meu amor, o meu vate, o meu bardo!?

Nilza Azzi

 

Chuvisco



Tome-se o cinza claro
e faça-se dele um céu bem alto
escondendo atrás das nuvens
a alegria do azul.
Depois sopre-se um vento
medianamente fraco
para soltar algumas gotas
que passem rapidamente

Nilza Azzi

Ciúme



Quando afastou também a última certeza

e descobriu do amor, que não sabia nada,
sem calço na ilusão da mente atordoada,
cedeu ao coração, sem forças, indefesa.

Porém  para sentir, quem sabe, aliviada,
a alma que buscava os rastros da beleza,
deixou atrás de si, as gélidas pegadas
e atravessou a ponte, uma esperança acesa.

Mas quando descobriu, num mundo quase escuro,
a dor que vem causar a nossa estupidez,
para entender um pouco acerca desse evento,

reconheceu que pode, o amor ser  ciumento,
pois faz crescer em nós, e toda de uma vez,
a sede de sabê-lo em todo seu apuro.

Nilza Azzi

Critério



A minha mente anda confusa e vaga,
perdeu o siso, o pouco que ainda tinha...
E assim deixou-me a murmurar sozinha,
linguagem muda – parece uma praga.

Por ter causado esta tristeza minha,
do pensamento, um fato não se apaga:
– indiferente aos rumos desta saga,
meu bem-estar despreza e espezinha.

Já  o coração precisa de uma voz,
pois quer contar do seu estado aéreo;
o descompasso, o sobressalto atroz,

mas não consegue agir e ter critério.
Se sofre mais que a mente, e sofre a sós,
é porque sabe que és um caso sério.

Nilza Azzi

Desfaçatez



Já não escolho a mão que a mim acena
e, dos sorrisos, guardo os meus mais ternos;
vou embalar promessas nos invernos
e preferir o que me faz serena.

Não mais importam votos sempre eternos,
desejo apenas a penumbra amena,
a voz sincera, a cor que envolve a cena,
enquanto envio os riscos aos infernos.

A minha escolha não se crê mais certa,
apenas segue a luz da descoberta
de que não há saída boa, honrosa,

e só pretendo entrar nesse jardim
na vastidão das flores, sendo enfim,
apenas uma a mais, pequena rosa.

Nilza Azzi

Dissolução



Sinto saudade de um bem que nunca tive;

a nostalgia da ausência é sempre forte
e esse vazio, denso e calmo, é mais terrível,
porque não há solução na minha sorte.

Se nas esquinas do tempo, eterna, vive,
à minha espreita, essa sombra, a minha morte,
para flagrá-la, escorrego nesse aclive
e não mais quero a verdade que conforte.

Se na passagem que está no meu caminho,
tudo que existe são formas de incerteza
e, neste mundo, a matéria segue presa,

o bem perdido é um desejo comezinho
– a ceifadeira nos diz que tudo finda –
que esse vazio pode ser maior ainda.

Nilza Azzi

 

Enciclia



Nas tardes que se perdem, vãs as horas,

enquanto a noite ainda é limite,
o ar carrega as vozes mais sonoras
e o som jamais revela o que admite.

Pessoas são abelhas, um convite,
trazer pra si regalos, o que adoras.
Viver maior prazer, o amor permite
sonhar ainda bem longe tais auroras.

Porém a tarde acaba, a noite avança,
escorre pelas mãos outra esperança,
sabendo que a manhã, a luz estraga,

mostrando a realidade a mesma praga.
No ciclo, uma outra tarde escoa lenta
e crua, a solidão prossegue, aumenta.

Nilza Azzi

Estrelas e nuvens



Há nuvens tão brancas no céu infinito,

um terno convite a contar carneirinhos.
Também há estrelas e, muitas, reflito,
mas sempre estarão a brilhar tão mansinho?

A noite agradável revela um conflito,
a brisa  suave parece um carinho
e cresce o luar, cada vez mais bonito,
aqui neste canto, um quintal comezinho.

Matéria de sonhos e versos perfeitos,
mistérios celestes instigam a mente...
Quisera viver bem mais leve e contente,

Ccntudo uma dor vem roer, de tal jeito,
pedaços do ser, que a saudade rejunta,
e seguem disjuntas, estrelas e nuvens.

Nilza Azzi

Inferno



Esse inferno, lugar de solidão,
é por vezes o céu em que eu habito,
onde as luzes eternas brilharão,
só quando for calado o último grito.

E a solidão, procura do infinito,
a forma mais real deste meu chão,
faz flutuar, alheio e esquisito,
o anseio que as manhãs jamais verão.

E o parco dos recursos, que aqui tenho,
aguento, sem franzir sequer o cenho:
– As brasas, sempre vivas, encobertas,

que queimam, descartadas as ofertas,
de todas e quaisquer outras saídas, 
sem céu e sem razões desentendidas...

Nilza Azzi

Paz aos homens



Ah, se fosse Natal naquela estrela,
a estrela fria, azul, a mais brilhante,
onde a paz fulgisse sempre adiante,
sem precisar de heróis a defendê-la.

Se a cada novo ano, a cada instante,
já não houvesse  formas de detê-la
e explodisse em inúmeras centelhas,
a luz daquele Amor reconfortante...

Dela eu queria apenas um reflexo,
para espalhar em volta o mais perplexo
dos meus olhares sempre atordoados,

qual fosse um raio em vara de condão
a derramar nos tempos que virão,
a paz aos homens, todos, de bom grado.

Nilza Azzi

Singularidade



Oh, estrela do céu! Tão distante de mim,
esse brilho que tens reverbera sem fim.
És passado, porém, és de outro universo,
paralelo a este meu, singular e perverso.

Oh, meu raio de luz! Tão perfeito és assim
como eu vejo daqui, ideal serafim.
Da matéria que és, sou grãozinho disperso,
da poeira que sou, és completo, o inverso.

Num carbono da Terra, em diverso sentido,
vislumbrei a razão de um planeta perdido,
que não teme o calor das estrelas candentes.

Dele posso  tocar o meu sol de mais perto,
sem notar um senão que me impeça. Deserto!
Desafio estas leis – luto contra as correntes.

Nilza Azzi

 

 

Súplica



Deixei pra trás qualquer desejo súbito,
de caminhar na estrada reta e única.
Me desviei, formei um novo hábito,
buscando compreender as leis da física.

Entendo as coisas, examino o ângulo,
deixando longe o meu pensar tão ázimo.
Procuro o equilíbrio desse pêndulo, 
onde possa alcançar o ponto máximo.

O teu olhar ao longe é uma bússola,
e ao ver teu vulto eu penso em nova tática...
O teu sorriso brilha como a pérola,

o som da tua voz parece música.
Do teu falar, eu não tiro uma vírgula
e peço o teu amor, em uma súplica.

Nilza Azzi

Divagação



Para falar da dor, uma palavra: – Basta!

mas ao falar de mim, confesso que não sei,
se aquela que busquei foi pecadora ou casta,
contida ou arrojada, em vidas que sonhei.

Ao se falar do amor, despreze-se à Jocasta
que ao filho se entregou, desrespeitando a Lei
e a sorte lamentou, na sina tão nefasta.
Eu já não sofro a pena, a sorte revirei.

Em busca da Palavra, eu sigo vida afora
e já não tenho filho ou homem que me atarde,
não creio na ilusão, nem Édipo me castra.

Das vinhas colher mel, é o meu desejo agora
e ao mestre tão atento, eu digo com alarde:
– Na fala do Poeta, há um sonho que se alastra.

Nilza Azzi

Happening



Fazer amor contigo, às escondidas,

apenas pelo gosto ao proibido.
Com jeito simular umas mordidas,
na orelha, e murmurar ao teu ouvido

besteiras e vontades reprimidas,
no mais secreto espaço da libido.
Criar um rebuliço em nossas vidas,
em busca de um conforto desmedido,

sentir que nos tornamos por momentos
um só, já que um do outro tão sedentos,
buscamos nos unir de corpo inteiro.

Ser assim, de tal forma que teu cheiro,
ainda ao acordar, esteja em mim,
como se os sonhos não tivessem fim...

Nilza Azzi

Maria



Voltando à casa vazia,  
nos ombros a alma torta,  
fatigava-se Maria,  
triste e só, sem esperança...  

Fosse noite ou fosse dia, 
palmilhava a mesma estrada. 
Pobre moça, saberia 
que o mundo é velho e sem fim?

Nilza Azzi



 
 

Carência



Jamais tu saberás que sinto amor.
Talvez eu saiba disfarçar a minha insensatez.

Escondo o meu rubor e falo de outro assunto,
ou olho para o céu, enquanto as mãos ajunto.
Anseio por saber, mas calo e não pergunto
o que sentes por mim, desde a primeira vez.

O sonho que vivi, embora foi contigo.
Porém se fui feliz, hoje nem sei se ligo...
Vazio me restou o coração, amigo,
e vivo sem querer, num mundo sem porquês.

Nilza Azzi

Contrassenso



E te contar que eu já te amei
embora o amor tão silencioso
antecedesse em seu começo
ao que o destino a mim dispôs

tornasse fato o meu tormento
visto que amor é contrassenso

... e te contar que um arrepio
ainda vive sobre os poros
da alma inteira em seu vazio

como se fosse indiferente
ao coração o que ele sente.

Nilza Azzi

Embrulho



Coloco meu segredo numa caixa,

embrulho com papel lindo, floral.
Escondo num armário – ninguém acha –
e vou tomar um ar noutro local.

Ocorre que a velhice me despacha
o senso... esqueço tudo... esse é meu mal.
A minha lucidez está em baixa,
periga de alcançar mais alto grau.

Assim, ninguém,  jamais, vai descobrir
o embrulho em que decerto estou metida,
segredo bem guardado e esquecido.

Estranho... nunca tive um apelido
e o nome, recebido nesta vida,
será pouco lembrado no porvir.

Nilza Azzi

Flor-de-são-joão



A flor-de-são-joão, brilho laranja,

floresce neste inverno em plenitude;
a cor inflama o campo e ainda esbanja
perfume que suaviza o entorno rude.

Espalha-se o cipó como uma franja,
nas copas, colorindo as altitudes,
ou é pelas encostas que se arranja,
surgindo na paisagem, amiúde.

Atrai muitos insetos – as abelhas
adentram as corolas mais vermelhas
zunindo a sinfonia, tantas asas...

As flores reunidas lembram brasas:
– aquelas que rebrilham na fogueira
e o vento faz corar a noite inteira.

Nilza Azzi

Reencontro



Um dia, nesta terra em que vivemos
a sina destas vidas separadas,
ao crermos ser possível sofrer menos,
seguimos, percorrendo outras estradas.

E assim, vaguei por todos os extremos,

perdida e sem ter gosto para nada,
mas tu, entre os prazeres mais supremos,
vivias, de uma forma equivocada.

Porém, num sentimento que traduzo,
por ser ao teu redor tudo confuso,
no mar entraste, para não voltar...

E ali, onde flutuam minhas cinzas,
nas horas em que as ondas são ranzinzas,
beijo teus ossos junto ao quebra-mar.

Nilza Azzi

Ultrarromântico



A Lua segue a noite... A luz depura
e aclara a solidão  – fel dos meus dias.
Busquei-te em todo canto e, com candura,
clamava só por ti, mas não me ouvias.

Deixaste,  sem aviso,  a noite escura...
Amor, não entendeste o que eu queria?
Sufoco, tenho a febre que não curas,
e morro: – Vem juntar minhas mãos frias!

Distante, o meu amado segue a aurora
e deixo, aos borbotões, fluir meu pranto,
convulso, pela dor que me devora.

Tão só, na vastidão deste meu canto,
não sei o que será de mim agora,
porque te disse não, mas te amo tanto...

Nilza Azzi

fragmentos



há um pedaço de céu
numa palavra tua
um mel que escorre
em sensação estranha

a minha alma recolhida
nua como a madrugada
veste véus de sonho e névoa
tem desmaios de lua nova

há uns ticos de tristeza
na lembrança do que dizes
algumas gotas úmidas
que não choro por querer

nilza azzi

Pena capital



Faz frio. É noite. Há fogo aceso.
A chama em claridade brinda.
Ao penetrar o corpo ileso
o lume se desfaz e finda

em sombra. No espaço sem peso,
a mente descansa. Bem-vinda,
a certeza de ser coeso
o ardor de vê-la assim tão linda,

em contraponto àquele céu
anil. Sentir tão dentro tal
espanto. Procurar seu mel,

aspirar à entrega total,
apenas ser um simples réu:
o amor a pena capital.

Nilza Azzi

Como antes



Vagar pela orla, catando conchinhas,
pensando somente nos sonhos que tenho;
sentir que essa aragem suaviza o meu cenho,
feliz, pois ao lado também tu caminhas.
São sempre bem vindas, as brisas marinhas
que envolvem meu corpo, perfumam o ar.
Fragrância salina convida a sonhar!
Os pássaros voam, cortando em rasantes
a espuma das ondas e assim como antes,
avisto um galope na beira do mar.

Nilza Azzi

Paralaxe hipotética



Adeus soneto! Vai comigo uma saudade.
Eu, de partida, já nem sei o que dizer,
enquanto espero o alvará de liberdade
desta prisão, onde me vi a florescer.

Como um amante que não dura eternamente,
porém nos dá grandes momentos de prazer,
provaste ser um companheiro bem ardente
− nos leva ao êxtase, a loucura de escrever.

As minhas rimas já se vão empobrecendo,
minguam reservas de figuras de sintaxe.
Vocabulário? Esgotei o cabedal!

Sobre medidas, as noções ando perdendo,
pouco me ajuda recorrer à paralaxe...
Guarda em teu eixo, o meu adeus sentimental.

Nilza Azzi

Ponto de fuga



No infinito a convergência
a inocência de um olhar
um mar de céu e de luz
uma única aquarela

Como é bela a emoção
dos matizes sobre a tela
e nos traços dos pincéis
velhos réis por mim reinaram

(contudo, no grão de areia, o Aleph se desdobra)

Nilza Azzi

Quem sabe?


“Tão longe, de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento ?" 
(Carlos Gomes /Bittencourt Sampaio)
 
Há momentos em que sou a labareda,
mas há outros de queimar, ser a fogueira;
pensamentos delicados, gota queda,
e tormentos, em que corro em cachoeira.

Há uma instância em que, brisa, eu sopro leve
e uma outra, em que eu chio, em vendaval.
Coração vai na batida em que não deve;
vez em quando, toma um ritmo normal.

Se descanso, como um lago em placidez,
me enfureço com estrondo em mar revolto;
chuva mansa que essa terra satisfez,

tempestade em que o estrago corre solto.
Uma coisa só não muda em mim, é certo:
é a saudade, por não ter você por perto!

Nilza Azzi

 

Circunvolução



Enquanto não houver a luz da perfeição,
o sonho não virá, serei poeta em vão.
Se na palavra pus efêmera esperança,
escapa o Ideal, o bem que não se alcança.

Nas brumas da manhã, espelho do Universo,
em busca de alvorar o conteúdo terso,
estranho à minha voz, esquiva-se o sentido.
Silêncio e estupor me abatem e, perdido,

percebo que a raiz, sem força se destaca
do solo onde nasceu, mantendo a forma opaca.
Como se fosse o pó indo ao sabor do vento,
recolho da emoção o nada que apresento:

Recebe um alvará, no verso que extravaso,
a dor mais forte em mim, contida por acaso.

(se você teve a gentileza de ler até o fim, leia agora de baixo para cima...)

Nilza Azzi


Ribalta



Pobre alma que vagueia sem roteiro,
sem parceiro para ser seu ombro amigo,
traz consigo a solidão mais descabida
e duvida das trapaças do destino...

Os fantasmas vislumbrados vão velozes;
não há vozes que lhe sejam familiares
e os pesares, que carrega sobre os ombros,
são assombros já sem peso, são deslizes.

Não me avise destas ruas sem saída,
nem tolhida, seja a escolha que professo,
pois o excesso de opressão deixou-me louco!

Faço pouco, mas coloco o ser completo,
no trajeto por cumprir que ainda me falta
e a ribalta acolhe o público mais nobre.

Nilza Azzi

Sublime amor


   
    Sublime amor, perfeito amor, garanto,

    desde que um dia tudo teve fim,
    deixo a distância habitar em mim
    – aumento assim a saga deste canto!
    Se toda estrela brilha e nisso insiste
    e perambula espaço afora, bela,
    ao cintilar ante o semblante triste,
    o pranto eterno deste vate, sela.
    Como um planeta a perseguir o sol,
    gira imantado, um mero seguidor,
    desde os primeiros raios do arrebol,
    bebo das luzes deste antigo amor. 

                   Num mar de estrelas, célere, disperso
                   Migalha e areia, trastes do meu verso.

                                 Nilza Azzi

Desvios



Espanto a dor
essa poeira de letras
pesadas, sibilantes
dobradas no percurso
da linha, da pauta
que perpasso a custo

Estouram as oclusões
fermentam interseções
e o luto é profundo
e violento o sofrer

Dizem que a tristeza
é passageira
mas e se não for?

Nilza Azzi

Em águas rasas



No remanso de um lago, em pleno gozo,

criaturas que nadam sem receio.
Desconhecem a terra, mundo alheio
à existência banal, num mundo aquoso.

Um pescador, bem jovem, chega. Veio
com iscas.  Concentrado e habilidoso,
ao encontrar o sonho em que repouso,
estende a rede e apanha meu enleio.

Despenco a cachoeira (o sonho é alto!).
Resisto numa água transparente.
A luz do sol cintila bem à frente...

Porém o pescador prossegue incauto,
alheio ao sentimento que extravasa,
e é ele o peixe pego em águas rasas.

Nilza Azzi

Feitiço



Eu tenho as mãos geladas, olhos baços,

sem ti, o mundo, inerte, perde o viço
e a vida se desfaz num tom mortiço;
sem ti, tudo me escapa, faltam laços...

Os dias vão e vêm e nem por isso
serão os meus desejos mais escassos,
nas horas que me escapam aos pedaços,
sem graça, pois me falta o teu feitiço.

A noite chega cheia de arrepios,
mas sonho que divido a minha cama
contigo, que teu corpo por mim clama,

porém meu leito assoma em seus vazios
e sem o teu calor não tenho nada:
— A noite é uma esperança esfarrapada.

Nilza Azzi

 

Quereres



Querer-me-ia sozinha
tão eu mesma e tão alheia
ensimesmada em meus sonhos
num mundo sem pesadelos
sem o medo do abandono.

Querer-me-ia distante
tão dona de mim, tão minha
presa ao meu mundo tranquilo
num tempo sem novidades
sem saudade do futuro.

Num susto, vi-me tão perto,
tão longe dos meus quereres.

Nilza Azzi

Turbulência



Já me encontrei perdida em meio à turba.

Mal me trouxe de volta até meu canto,
já me perdi em vã tristeza e, tanto,
sem superar a dor que me perturba,

e não me vi, senão com grande espanto,
sorver da paz.  Basta que o tempo urda,
na solidão de uma esperança surda,
um mal de amor: - Dizer, eu não sei quanto!

Não sei contar sobre a descida ao poço,
mas ao puxar a corda e ver a draga
faltou vontade de beber tal água.

A grande sede, bem contida, trago-a,
enquanto aguardo e a sorte não me afaga,
não mais me perco em meio a um alvoroço.

Nilza Azzi

Doçuras



Final de outono, neste quase inverno!

O tempo triste finge ser eterno,
como se eterno o tempo sempre fosse,
quando a visão da luz se faz mais doce.

Na tarde, quando chega a hora escura,
descobrem-se as estrelas lá na altura
e a voz do coração, mais cautelosa,
desfolha-se em mil pétalas de rosas.

Na noite, a tal quietude nos liberta...
Se a solidão é tida como certa,
saudemos o perfume dos lilases.

De mim, serei então, o que assim fazes,
– já pronto pra colheita, assim tomara! –
Um campo de cultivo, uma seara.

Nilza Azzi

Momentos



A tarde traz um céu de brilhos brancos,

varando o azul, produto da ilusão...
O frio é seco, a vida segue aos trancos
e as andorinhas rumo ao norte, vão.

Tão simples os sorrisos, quanto francos,
vou devagar, escolho a contramão;
já despenquei ladeiras e barrancos,
mas não me decidi por sim ou não...

Se o coração ainda tem perguntas,
descubro que respostas nascem juntas
e tudo se embaralha no horizonte.

Se o Sol já não se põe atrás de um monte,
em morte lenta, atrás dos prédios arde,
bem no momento exato, e nunca tarde.

Nilza Azzi

Senhora dos meus sonhos



Duas da tarde: – O céu tornou-se escuro,
manteve acima a cor do seu recado,
depois verteu o cinza concentrado
e derramou-se para além do muro.

Às três e meia, tudo já mudado,
brilhava o sol um brilho prematuro,
a esticar seus raios com apuro,
por entre o ar chovido, o seu traçado.


Às quatro horas, quase ao fim da tarde,
a brisa leve seca o mundo em volta.
O tempo pausa, em súbito sossêgo...

A cor azul, lembrança de um mar grego,
despega um tom e surge em viravolta:
– Senhora dos meus sonhos, tempestades.

Nilza Azzi

Voltas



Quanto mais, quanto menos te vejo,
mais percebo a doçura que falta
no meu dia, na noite, no ensejo
desse olhar cuja ausência ressalta.

Quanto enlevo nos ais dos cortejos,
e outros mais nas conquistas em alta.
Quanto amor eu não cri benfazejo
e por menos larguei sobre a pauta.

Se esta rua dirige-se ao cais,
a medida dos passos que avanço
não permite chegar ao seu fim.

Há tristezas que vivem em mim,
sem a trégua de um mero descanso,
sem um ponto de fuga, jamais.

Nilza Azzi

 

A cartomante



Ela agitou a bola e olhou bem fundo;
logo explicou, tudo é ilusão da mente
e sei por que é assim, exatamente,
é que te opões ao bom e velho mundo.

Tu sofres tanto, quando ninguém sente
a solidão e a dor, cada segundo,
se nessa opinião eu me aprofundo,
é porque és forte, além de renitente.

Mas ninguém leva um fardo além das forças!
Se acreditar em Maya leva adiante
e nos solapa a paz de cada instante,

mesmo que finjas e a visão distorças,
o que o cristal revela, sem embargo,
é que essa escolha deixa gosto amargo.

Nilza Azzi

domínio



deixo meus dedos passearem pelo teclado
com a mesma impaciência
com que desenhava a lápis sobre o papel
palavras nascidas da memória antiga
e dessa intimidade sem fronteiras
retiro dos sentidos que me restam
os sons velozes das vogais
e as esperanças surdas das consoantes
procuro as sensações inusitadas
de quando se combinam as verdades
em vocábulos tontos de tristeza
em palavras loucas de alegria
e quando o espaço todo se recobre
de preto tanto quanto posso dar de mim
procuro descanso numa praça
e espero que essas aves tenham asas

nilza azzi

Galáctica



Meu namorado colhe estrelas, tece os ramos

que me oferece, azuis clarinhos, cintilantes...
Dispõe tapetes só de flores onde estamos,
onde sorvemos luz e amor, a cada instante.
Sua presença traz ao mundo a cor dourada,
faz coração vibrar num sentimento puro.
Se junto dele vou além, sou mais amada,
ele é presente, ele é passado, ele é futuro.
Meu namorado põe a luz no meu olhar
e o mundo faz girar veloz à minha volta.
Com devoção conduz minh’alma a apreciar
a imensidão... Tal qual um raio, ela se solta

dessa prisão e, sem temer mais coisa alguma,
desfruta o sonho e mil venturas, uma a uma.

Nilza Azzi

Quase




Eras de quase certezas  
espantos e sabores  
e falta de intenção

Eras ombro e colo
festa e arrebatamento  
antes do vazio

Heras pelos muros  
a repetir auroras  
como se quase fossem  

Nilza Azzi

Taças



A taça em que borbulha um claro vinho – e leve –

aquele em que bebeste as seivas de um afeto,
transpira em névoa branca, o excesso, mas não deve
perder de sua essência, o olor de que é repleto.

Passou aquele instante, a febre intensa e breve
e em luta contra tudo, estranho a tal projeto,
juntaste  amor e dor nas páginas que escreves,
fingindo indiferença, o escudo predileto.

A taça que versou o vinho sobre a blusa,
que umedeceu o colo e pôs a desmaiar,
a jovem que cruzou o teu olhar, confusa,

conserva por inteiro as curvas de teu sonho,
retém no seu cristal um brilho de luar,
reflete na memória um souvenir risonho.

Nilza Azzi

Conotações



Essa palavra fácil, sempre astuta,

que não posso deter no meu palato,
fala por mim, porém nunca me escuta;
essa palavra, com seu ar barato,

com seus vícios, desvios de conduta,
a enorme força nela, eu desacato.
Que venha a mim na arena, absoluta,
para saber quem vai vencer, de fato.

Hei de arrancar-lhe máscaras e vestes,
hei de deixá-la nua, hei de expô-la,
para que nunca mais me faça tola...

Hei de entregá-la às órbitas celestes
e quando enfim tornar a encontrá-la,
que ela me seja clara em qualquer fala.

Nilza Azzi

 

Ouve-me a voz



És a cor do meu céu, és certeza de luz,

teu olhar me seduz, sobre mim verte a paz,
mas sou contradição, nesse olhar foi que pus
esperança e paixão; esse é o bem que ele traz.

Sobre mim cai um véu, uma esfera que aduz,
esse sonho compus de certezas capaz...
Quero o afeto, pois não, a que bem faço jus,
mas que, sem mais razão, se me escapa, aliás.

Entre o mal e o bem, eis que sofro por ti
e não posso querer que me entendas porque,
se uma dor tão atroz não me deixa, eu aqui

compreendo o poder dessa força cruel.
Então ouve-me a voz, leia o que não se lê,
pois escuro se faz, de ora em diante, o meu céu...

Nilza Azzi

 

Sal da terra



Ora! Deixem que brilhem as estrelas,

a  respingar o espaço de incertezas!
Meus pobres olhos brilham só por vê-las,
porque sou só, sem forças, indefesa.
Se fosse a luz do olhar qualquer farol
e houvesse um porto em mim onde atracasse
um barco e, então, um só raio de sol
pudesse iluminar a minha face,
quem sabe fosse aquilo uma esperança
de ser a solidão coisa banal,
e a lágrima − essa gota que se lança 
a fim de revelar todo seu sal,

em brilhos de cristal a céu aberto −
a luz do olhar de Deus, quiçá mais perto.

Nilza Azzi

Salicastru



O mar está quieto, a praia curva

sobre si mesma o arco em que se fez.
A onda apenas rola e assim não turva
a limpidez da água... A uma só vez

pousam na espuma garças e gaivotas.
A tarde, que desenha a bruma escura,
carrega desventuras, mas não notas
a força do desejo, ó criatura!

Perseguem teus anseios céu e mata,
sinais dissimulados nas vertentes;
um simples sussurrar inconsequente.

Quem pisa na armadilha, o nó desata
e sofre, quanto mais ali esperneia,
e morre, sem sequer tocar a areia.

Nilza Azzi

Encontro romântico



O meu amor não teme as madrugadas
e vence o frio e a chuva sem receio.
Caminha, vem de carro ou outro meio
de transporte, por ruas alagadas...

O meu amor me olha e diz que é feio
usar qualquer desculpa esfarrapada.
Denota indiferença pela amada,
mandar uma mensagem por correio.

E para estar comigo, no meu leito,
escolhe o seu perfume mais cheiroso,
aquele que ele sabe ser perfeito,

num gesto delicado, afetuoso.
Assim, desejo vê-lo satisfeito
e faço a minha parte por seu gozo.

Nilza Azzi

Insistência



de um vazio perpétuo
aflora essa alegria
sempre inevitável
intersticial

estranhamente inútil
relógio ineficiente

a indicar um tempo
nunca passado
nunca presente
um espaço ausente

retalho de vida
que me sobra
um pedaço do céu

nilza azzi

Lagos calmos



Até meu coração às vezes sonha
com lagos calmos e suaves ondas...

Enquanto as tardes descansam
olhando o voo das aves
procuro tuas pegadas
ó ninfa das águas claras

Nilza Azzi

Os olhos de Ester



Se nos olhos de Ester há uma falsa consciência

e se o bardo não pensa as verdades que expressa,
nessa praça mais ampla, as fragrâncias intensas,
já floresce o jasmim, perfumando a travessa.

Se no seio de Ester não se encontra a licença
para seu puro afeto e se a jovem não cessa
de dizer que não quer nada que lhe pertença...
Oh! Que pobre ele é! Oh! Que triste promessa!

Se não cabe a José a esperança, sequer,
de encontrar nesse amor um lampejo que seja
de cumprir seu destino e levá-la á igreja...

Oh! Que pobre ele é! Oh! Que ingrata mulher!
Pois os olhos de Ester não refletem, José,
esse enlevo total. É melhor 'dar no pé'...

Nilza Azzi

Partenogênese



Se dividisse ao meio o dom que te alimenta,

multiplicado assim, por divisão aos pares,
serias sabedor das artes do gameta;
farias destes céus espaços populares.

Se grávida da voz, a estrela se arrebenta
e traz o mundo à luz, ferida em mil esgares,
a cria então vingou da sedução sedenta:
— E tu não sujarás o chão onde pisares ...

Derrete-se o metal no caldeirão de Hades
e, dele, o que se faz é obra de Vulcano,
o criador do raio, estrondo sobre-humano.

Na conta de tirar, alteram-se as vontades,
e o gozo mais cruel, no sonho ele se frustra:
— O filho da uma deusa, a revelar-se um lustra.

Nilza Azzi

 

Repique



Quando amanhece pelas bandas de Campinas,

quando o céu limpo da cidade é azul intenso,
quando o perfume do jardim recende a incenso,
é que me esqueço das tristezas vespertinas...

Como se a noite desfizesse o mundo denso,
como tirasse da lembrança as dores finas,
como se o dia solevasse as minhas sinas,
é que me vejo a carecer de um outro senso.

E, nessas contas de um balanço equivocado,
jamais encontro a solução do meu agrado,
pois tenho um saldo negativo que não cubro.

Ao confrontar-me com tristezas e alegrias,
vejo-me sempre com as mãos demais vazias.
– E outro poente engole o dia, exato e rubro.

Nilza Azzi

Salto



A centelha que ilumina a cada um de nós

e impulsiona com firmeza a nossa evolução,
encaminha a nossa mente além do eu e, então,
nos ajuda a superar a dor de sermos sós.

É difícil de entender, pois de outra dimensão,
veio a Mônada habitar o ser profano e após
completar a experiência  e desfazer os nós
que vieram do passado – e aqui e agora estão –

poderá tirar proveito do que aconteceu,
(as lições que necessita) até que o apogeu
desta  lida lhe permita alçar-se a grau mais alto.

E da luz que ela concentra, aumenta e perpetua,
faz surgir o entendimento e abraça como sua
a missão de mergulhar no vácuo desse salto.

Nilza Azzi

Trevo



saídas que sugam
em quatro direções
momento da incógnita
espaço da escolha
é ilusão a direção certa
no trânsito da vida

nilza azzi

Viciosa utopia



Acordar-te no poema da manhã

com a barba ainda por fazer
a despertar-me um susto.
Inventar-te no poema da tarde
usando uma camisa azul
arrebatando o olhar.
Tatear-te no poema da noite
o corpo recendente e nu
fonte das instâncias últimas.

nilza azzi

 

A dança cósmica



Convém entrar na dança criativa
deste momento, o único presente,
e na roda lembrar que assim faz Shiva
em movimento eterno, permanente.

E enquanto dança e a natureza aviva,
em seu cabelo a forma de um crescente,
já  conduz outra força, a destrutiva,
e tudo volta ao caos de anteriormente.

O mestre, que é senhor do espaço e tempo,
e vive em reclusão nos Himalaias,
dançando sobre a neve é que ele ensaia

o antigo ritual; nesse entretempo,
logo o gelo derrete e um fio esguio
d‘água alimenta a vida – e forma um rio.

Nilza Azzi

Havia...



havia naquela rua
uma criança perdida
vivia a olhar pra lua
sem nunca viver a vida

nilza azzi

Linhas cruzadas


Para Dudu Oliveira

Vi o fio bem esticado,
mas mesmo assim tropecei
me atrapalhei nas palavras
e não consegui tocar
seu âmago, seu sentido

Nas linhas eu me enrolei
desenhei um zigue-zague
juntei frases desconexas
enfrentei os meus pecados
e desfiz-me em personagens

Bem do topo da montanha
olhei um mar sem sentido
a banhar areias brancas
mas vacilei nas palavras
e perdi encanto e vez

Nilza Azzi

Ponderações


Para Dr. Renato V. de Castro

A vida humana é obra da surpresa!

Se todos nós vivemos maus momentos
e de sofrer fugimos mui atentos
a preservar da dor a alma indefesa,

de nada, em nós, existe uma certeza.
Na imensidão dos fatos violentos
que se divulga sempre aos quatro ventos,
qual criatura permanece ilesa?

Se no saber procuro ir mais fundo
e levo a vida atrás de um ideal,
entre as notícias que correm o mundo,

ganha destaque o que é sensacional
e pouco importa se eu em dor me afundo
− a dor da gente não sai no jornal.

Nilza Azzi

Tormenta



A chuva cai batida, enquanto o céu desaba,

retalho e mais retalho, em sua cor cinzenta,
porém cada pedaço ainda traz de  sobra,
um cinza mais escuro, além do que se aguenta.

Por sobre a terra escorre a chuva que soçobra,
em forma de enxurrada, escura e bem barrenta.
O que mandou ao céu, de volta, a terra cobra
e atrai aos seus lençóis os restos da tormenta.

Depois, tudo sossega e o céu pede uma trégua;
cansados do trabalho, o raio e seu clarão,
relâmpago e trovão descansam da folia,

tudo parece calmo, além, por muitas léguas.
Há uma pausa, um suspense e – de repente, então –
a chuva recomeça a chover, como havia...

Nilza Azzi

Vazio



Hoje acordei com saudade de ti
do tempo que nunca tivemos juntos
esse intervalo vago e inexplicável

Investiguei minhas entranhas
e no vazio abri mais chagas
as dores amargas recrudesceram
e te busquei como se foras pedaço meu

Hoje senti falta dos beijos que não dei
do passado que nunca foi presente
de não saber se me amas ou me amaste

Encontrei-me abandonada em meu desterro
como se o amado habitasse minha alma
e validasse para sempre o meu sentir
sem razão e sem consentimento

Nilza Azzi    

Honey



Carrega o odor das pétalas das rosas,

raro perfume que este vento trouxe.
É tão suave e doce, doce, doce,
quanto o desejo das horas ditosas.

Se um pedaço do céu, decerto fosse
e fosse a cor da íris mais formosa,
ainda assim, daria vez à glosa,
posto que essa doçura pressupôs-se.

Na calma, às vezes, que um amor tempera,
no mais profundo encanto da querença,
tudo acontece em doce plenitude.

Quanto à certeza, tê-la nunca pude,
mas se há doçura tal que me pertença,
tenho-a na luz dourada  das quimeras.

Nilza Azzi

Poema in comum



Tu és o meu poema 
de ontem, de antes, de sempre. 
Navio que chega e parte sem aviso, 
destronas meu juízo e roubas minha cena. 

Tu és esse desejo alheio aos meus sentidos, 
no desalinho das palavras mal brotadas, 
nas desbotadas cores das figuras, 
nessa mistura estranha dos meus nervos. 

Tu és o estranhamento em verbos novos,
a súbita mudança, a quebra de linha,
a rinha onde lanço esta disputa
meu texto livrado à voz dos povos.

Nilza Azzi

Tempo-será



Tão breve o tempo de ilusões pueris
e forte o alento que é da juventude!
Somente um vento, porém nos ilude,
na forma vaga, um mero pingo em giz,

nos foge o tempo e morre num palude.
O que nos falta, o que é viver feliz,
parece um bem que escapa por um triz,
mas quem resolve essa questão tão rude?

Se estoura a bolha e nada mais espio,
é claro então que essa ilusão não rende
e um novo mundo emerge do vazio.

Solto no vácuo, como fora um rio,
vai meu passado, ao longe ele se estende,
e apenas sigo a ponta desse fio.

Nilza Azzi

Trilha



se nas reviravoltas me cansei das luas

e se dos girassóis já se perdeu o encanto
é que uma primavera foi embora um dia
e nunca num verão eu soube o que era amar

pintei minha loucura em cor bem transparente
deixei no céu o adeus sem mesmo refletir
nos braços que partiram já não choro mais

se os restos de um poema são de cor brilhante
e a trilha das palavras vem do pensamento
além do imaginário tine a realidade
certeira e mais cruel do que qualquer inferno

mas se numa recusa há sempre uma esperança
repousam vinho e mel nos campos semeados

nilza azzi

Ultrassensual



Numa casa de pedra, entre azuis trepadeiras,
ao abrigo do olhar indiscreto e  alheio,
nós fruímos, do amor, sem cansaço ou receio,
o prazer sensual e as delícias inteiras.

O teu beijo começa a aquecer-me. Tonteio...
Some o mundo ao redor e um espasmo se abeira:
– só desejo elevar-te ao meu nível de anseio
e deixar-me viver as paixões verdadeiras.

E no instante em que a morte me toma, um reflexo,
só percebo que a alma, indistinta do sexo,
mal percebe, do corpo, os limites externos.

Assim quando, no amar, o momento é eterno,
e um olhar cede ao outro um delírio complexo,
reconheço que a vida é real, tem um nexo.

Nilza Azzi

 

Voltas



Quanto mais, quanto menos te vejo,
mais percebo a doçura que falta
no meu dia, na noite, no ensejo,
desse olhar cuja ausência ressalta.

Quanto enlevo, nos ais dos cortejos,
e outros mais nas conquistas em alta.
Quanto amor eu não cri benfazejo
e, por menos, larguei sobre a pauta.

A medida dos passos que avanço,
se esta rua dirige-se ao caos,
não permite chegar ao seu fim.

Sem a trégua de um mero descanso,
sem um ponto de fuga, entre os vaus,
há tristezas que vivem em mim...

Nilza Azzi

Indiferença



Os mouros que à costa vêm,

assustam como ninguém
e nos ameaçam todos...
Se a notícia soa falsa,
tem poder e o temor alça
bem mais alto do que aos godos.
Mas se é só espalhafato,
se não passa de boato,
a chegada dessa gente
só me deixa indiferente.

Nilza Azzi

Peregrino quântico



Então, grávido da Lua, vou surgindo;
vejo flores tateando tudo e nada.
Sob o pálio celestial a ela eu brindo
e lhe peço pra ser minha namorada.

Diga, ó Lua, nosso filho não é lindo?
Tem a pele qual a clara madrugada.
Se nos olhos tem a cor do céu infindo,
nos cabelos traz a luz do Sol, dourada.

Se gerado foi na esfera celestial,
teve todas as estrelas por madrinhas
e o futuro lhe promete a vida em Marte.

O Universo lhe pertence e, em toda parte,
as viagens dos elétrons traçam linhas,
em louvor desse rebento sem igual.

Nilza Azzi

Choro de outono



hoje à tarde o céu chorou
sem aviso, sem alarde

escorria quase a medo
eram pingos do chuveiro
sobre a água acumulada

a chuva de hoje à tarde
durou pouco, quase nada

nilza azzi

 

Sem medidas



É quando a tarde cai, e o Sol se esconde,
e a noite chega rápido, e me alcança,
que não posso esquecer-me da criança
perdida, não sei quando, não sei onde.

Não é tristeza, não, ou dor que vaza,
também não é saudade o que me agarra.
É mais a nostalgia... Aquela farra,
na rua, ao fim do dia, em frente à casa.

O espectro da noite, e não me iludo,
era uma ruptura, o adeus à vida,
a forma de aprender que, descabida,
um dia chega a morte e leva tudo.

Enfim, quando declina, em seu processo,
o dia, e só nos sobra a escuridão,
as mágoas, uma a uma, todas vão
juntar-se desmedidas, pois não meço
o tempo, pelos frutos da estação.

Nilza Azzi

Sobre o amor



O amor é uma certeza pelo avesso,
pois rouba ao coração senso e cautela.
Recobre a lucidez com véu espesso
e o ser humano, frágil, nos desvela.

O amor é um infindável recomeço,
renasce de si mesmo, em aquarelas,
e até zomba de nós, meio travesso,
exato, mas por vias paralelas.

Ao largo de nós mesmos, coisa estranha,
a nossa descautela, ele acompanha
e alcança as nossas falhas, torna claro

o quanto o nosso orgulho nos faz tolos.
Valor grande demais pra ser consolo,
o amor é sempre belo, incerto e raro.

Nilza Azzi

Dia ensolarado



Dia ensolarado ao redor dos mares...
perfumando as ondas, cheias de olor;
quando as espumas deságuam nos ares,
gotinhas deslumbrantes regam a flor.

Nilza Azzi

Dor



Se a dor que dói em mim, assim doesse,
doída, como um nada, a doer tanto,
talvez doera só pelo interesse
de que, por fim, não doeria o pranto.

Se a tua ausência já doeu bastante
e doerá, por certo, eternamente,
que doa, de uma vez, lacrimejante,
qual doeriam lágrimas da mente.

E quando a tua dor em mim doía,
tal qual doeram todas, vezes mil,
deixei doerem por compreensão.

Assim vivo o dorido dia a dia,
embora já me doam, dor gentil,
as dores que eu bem sei que doerão.

Nilza Azzi

Terror augusto



Eu vi a face de um país de horror,

feito de dor e sofrimento atrozes
e do lamento de infinitas vozes;
mundo de fogo e fel – assustador.

Vi na aparência estranha dos algozes,
nos olhos fundos do observador,
todo o castigo duro e destrutor;
restos e espectros trágicos, ferozes.

E foi o mal de ver, feito uma espada,
cortando a minha carne, até que nada,
em mim, não fosse chaga ou louco espanto;

como saber que a vida dói, mas tanto
que o fato de morrer me fosse apenas
um descansar do horror e dessas cenas.

Nilza Azzi

 

Versos de um domingo



O rio desce tranquilo da montanha;

com calma, escorre as águas cristalinas,
mas quando chove muito ele se assanha
e invade, além das margens, as campinas.

E a força da torrente é tal, tamanha
a callha da enxurrada, que termina
por revolver o saibro; a água ganha
a cor barrenta e arrasta a areia fina.

À beira de um remanso, vendo a cena,
o olhar perdido, a alma, então serena,
transmite para o corpo um sobressalto.

Relembra de beber da água mais pura,
do tempo em que o amor era ventura,
de quando o coração fremia, incauto.

Nilza Azzi

 

Um pouco de sal



A caminhar tão lentamente (era a lesma),

espécie antiga, fadada à extinção,
deixava um rastro, um filete de si mesma,
sem vislumbrar mais premência... Tudo é vão!

Na insipidez de seu mundo sempre escuro,
no silêncio do buraco onde vivia,
naquele corpo indefeso e mal seguro,
sempre apartada, a fugir da luz do dia,

foi se arrastando... Porém, sem que esperasse,
no seu caminho encontrou uma barreira.
Tal molusco por não ter nenhuma face,
não tem noção da tragédia que se abeira:

sem perceber a razão, em si deságua;
some no sal, vira simples poça d’água...

Nilza Azzi

Na solidão...



Na solidão dos seres e das almas,
moram fantasmas tristes, sem desejos,
meros zumbis assustam minha calma −
vê-los bem longe é tudo que eu almejo...

Nilza Azzi

Transição



Um anjo, uma mulher, bateu à minha porta,

com flores nos cabelos e uma forma alada.
Quisera que ficasse (o tempo não importa)
e uma tarde qualquer, me desse a mão e nada

pudesse coibir que a trilha, embora torta,
surgisse à frente firme, em luz clara e dourada.
Na sua companhia, o amor sempre conforta
e a tepidez do abraço anula a madrugada.

Mas nunca coube a mim, ditar-lhe: “- Agora escolha!”
Apenas quis fruir do canto, um certo gozo,
enquanto perdurou, a ligação fatal.

Não posso reclamar, pois nunca me fez mal,
porém partiu, deixou-me em círculo vicioso,
em volta da Poesia: − a pétala e uma folha.

Nilza Azzi

Rastros de espanto



Manhã fria e enevoada.
O vento é um chicote a fustigar a pele...
Hoje não houve canto de passarinhos ao despertar.
Um silêncio vasto de feriado e inércia
deixa no ar o vazio da tristeza e da saudade!
A natureza silenciou o canto ritual...
Meu olhar alcança um pequeno templo no horizonte,
irregular contra os contornos da colina.
Os primeiros raios do sol varam a névoa invasora,
incidem sobre o metal de algum telhado
e reverberam horizonte além...

Nilza Azzi

Velas ao vento



Na linha do vento, prossigo sem lei,
singrando esses mares, tão verdes, além...
Acima esse teto de céu azul rei,
meus rumos tomei, não me curvo a ninguém.

Se o vento se acalma ou se estaca de vez,
eu paro e contemplo a existência ao redor,
mas quando ele sopra, bem doce e cortês,
eu sou vela inflada e navego melhor.

No mar da poesia, as palavras eu pesco
e, ao tempo do vento, seguimos velozes,
nos damos as mãos, em completa união.

Os meus sentimentos aos verbos eu mesclo,
exponho minh'alma e juntamos as vozes
— veleiros ao vento, os meus versos se vão...

Nilza Azzi

Pausas



Na fonte das certezas e dos medos
escorrem  meus silêncios, minhas pausas,
enquanto  uma esperança morre cedo
e a minha solidão tem sombras rasas.

Esgotam-se as nascentes, calam vozes,
permutam-se as vontades por promessas...
As horas cada vez vão mais velozes
e apontam as loucuras inconfessas.

Na rua um carro breca, em sobressalto,
entendo que o perigo é sempre esperto.
O som de uma buzina é qual arauto
e o sonho me adverte de algo incerto.

O dia ­─ mais um dia ─ vai ao meio
e deixa em minha alma outro receio...

Nilza Azzi

Rastros de espanto



Manhã fria e enevoada.
O vento é um chicote a fustigar a pele...
Hoje não houve canto de passarinhos ao despertar.
Um silêncio vasto de feriado e inércia
deixa no ar o vazio da tristeza e da saudade!
A natureza silenciou o canto ritual...
Meu olhar alcança um pequeno templo no horizonte,
irregular contra os contornos da colina.
Os primeiros raios do sol varam a névoa invasora,
incidem sobre o metal de algum telhado
e reverberam horizonte além...

Nilza Azzi

Evocações



Na ladeira da memória,
há uma casa nacarada:
lá é que moram os risos.

Junto ao mar ecoam risos
evocados na memória
pela concha nacarada.

Radiante e nacarada
era a luz daquele risos,
no amanhecer da memória

Nilza Azzi

Viés


olho os teus poemas
com olhos de través
cortando as palavras
num viés bem comprido
num mergulho indefeso
nos jogos de sentido
barco sem leme
entre luas e corujas
e mares e pontes
e o coração que treme

Nilza Azzi

24 de maio



Ainda lembro daquele ensaio, 
a nossa festa era virtual.
Como esquecer, num dia de maio, 
esta amizade, que é sem igual?

Querido amigo, eu te distraía,
da tal tristeza em que tu vivias...
Que lá do céu venha neste dia,
penca de bênçãos e de alegrias!

Os tempos hoje são mais amenos;
isso permite que nós brinquemos
com a franqueza gratificante.

Desejo a ti uma longa vida
e, pela data que é tão querida,
meus parabéns, digo neste instante.

Nilza Azzi