yuri petrilli

as nossas canções


não.
as nossas canções não tocam
nos bares
nem nas ruas
nem nas festas
nem nos carnavais.

e entanto
nas ruas
nos carnavais
nos bares
e nas festas
as nossas canções tocam em mim.

e eu nunca estou 
nos carnavais
nem nas festas
nem nas ruas
nem nos bares.
não.

estou sempre nos lugares imateriais
aos quais me remetem
as nossas canções.

a busca


Ao transeunte, estou na calçada.
Ao patrão, estou no balcão, à disposição.
À família, estou em alguma caixa ou álbum.
Aos meus poucos lírios idos, estou na memória.
À dália quotidiana, estou na geladeira.
Ao chapéu estou abaixo, e ao espelho estou defronte.

Dissolvo-me.

Mas escondida nestas intrincadas engrenagens,
que giram em penumbras sonolentas,
uma fagulha de consciência resiste.

Pequena fagulha que,
em eventuais intervalos de entressonho,
sobe-me à superfície das sensações
num resfôlego angustiado:

E eu?

Onde estou em mim?...

             Onde
                        estou

                  em
                             mim

                     ?

[prosa] fragmento diurno-noturno


Segunda-feira fria, quatorze horas e quaisquer minutos que são sempre outros. É noite.
Vagarosamente permito que meus olhos se percam nas ondas dos lençóis que me cobrem as pernas cruzadas, concebendo, com a desatenção de meu olhar cansado, faces e gestos que nascem e morrem nos desenhos formados pelos vincos e sulcos dos tecidos velhos.
Nascem, porque me tocam a alma sensível que transita contente pelas choupanas cômodas da imaginação. Morrem, porque os intervalos sonoros das gotas que pingam nas calhas os desmancham com a realidade da chuva.
Segunda-feira fria, quaisquer horas e minutos que são os mesmos no pleno feriado que trespasso, sábado de agosto. O sangue corre quente nas veias impossíveis dos sonhos que derrubo nestes panos que observo. Quanta amizade pelas criaturas que penso plausíveis! Quanta ternura me causa o pássaro de renda alimentando o filho de asa rasgada! Quanta humanidade no sorriso irônico do finado ente que fui outrora, e quanta possibilidade!... Quanto esquecimento.
E quanta chuva.
Angústia. Pássaros e demais criaturas assassinas e assassinadas. A monotonia do embarque à consciência dolorosa, e o desembarque de seguida, e de novo, e de novo, através do calendário absurdo. Angústia e chuva.
E a chuva chora fria na acuidade com que sinto a realidade desamparada de tudo.
Chove, e desperto. E então encontro a realidade quebrada. E enfim sempre torno a sonhar.
Mas é noite. É sempre noite.

três sonetilhos


I

este infinito instante
em que vives agora
basta apenas que pisques
e pronto: é memória

inda não dás por isto
à sombra das batalhas
mas o tempo que torna
as crianças grisalhas

é este mesmo que colhe
teus momentos dispersos
e te confunde os olhos

para te dar, enfim,
da vida, alguns versos,
dos sonhos, seus espólios.


II

abre os olhos e vê:
o tempo já passou.
apenas em você
o instante não murchou.

este lugar não é
o de quando eras outro.
se aqui ainda vives,
talvez estejas morto.

nem houve no intervalo
de tempo dos teus olhos
qualquer sonho ou excesso...

mas se passaram anos.
e é como se tivesses
vivido em retrospecto.


III

como aceitar que a mão
que a minha mão enlaça
é só minha outra mão
que o coração disfarça?

a memória é um tecido
assim dissimulado
que tanto nos engana
mesmo estando rasgado

ah, que doce a mentira
que em mim se acalora
quase fisicamente...

mas o tecido é falho.
e as minhas mãos se esfriam
melancolicamente...

o homem


o homem constrói faróis no próprio umbigo,
faróis que sugerem lares incertos
e disparam escuridão nas ilhas
que se movem sobre os oceanos.

o homem inventa paisagens verbais
com formas e belezas literárias,
as prende eternamente nas palavras
e sofre pelo mundo não ser página.

o homem morde o relógio como ao pão
sozinho no escuro, à espera, talvez,
de um amigo – embora não saiba amar.

o homem regressa a si mesmo, infinito,
vencido. o homem se come pelas pernas.
seu tempo é sua própria indigestão.

semente


– j.

há uma semente aqui,
ela me disse,

e o tempo agora revela
um campo estéril
de tulipas mortas...

com as mãos vazias e sujas, penso:
não se pode semear
a névoa de medo e sonho
que precede o solo real,
por mais sedutora que seja.
é necessário transpô-la,
e isso demanda coragem.

também não basta semear
o solo perfeitamente tangível
e manter a armadura que limita
o alcance das mãos que cuidam,
é preciso deixá-la de lado,
e isso demanda coragem.
fazer valer a semente
demanda sempre muito amor,
e o amor demanda coragem,
muita, muita coragem
nesta terra de desterros.

porque o amor é sempre
o primeiro gesto de vulnerabilidade
diante da face da morte:
somente assim
pode-se não morrer;


é o coração exposto
que não sente medo
de buscar,
é o olhar calmo à espera da verdade,
é a força que nos põe à margem
da fenda abissal e nos faz apreciar
os infinitos tons de azul.

não subsiste onde suas raízes
ficam soltas ou feridas,
em reinos de resistência e podridão
onde imperam as distâncias,
preferindo ceder à ruína.
em campos assim
restam somente pétalas imaginárias.

e eu ouço,
sob o peso de minha exaustiva armadura,
os sussurros das pétalas:
através de poemas,
através de memórias já gastas.
numa voz disforme e ausente,
elas me dizem:

havia uma semente aqui.

a casa


dentro da casa cabem muitas casas.
as paredes empurram contra as formas
todos os tempos nelas sublimados,
e em cada gesto a casa se transforma.

a cada porta que se abre ou fecha,
a cada coisa que se sente ou solta,
de dentro da caixa ou do álbum de fotos,
desdobra-se, como uma matriosca.

num canto da sala, a casa da infância
se abre, por exemplo, num tropeço,
ali, com suas presenças ausentes,
com seus brinquedos e rostos que esqueço,

e que esquecidos crio e tento achar,
rostos líquidos de voz e de sombra,
vívidos, sensíveis, invisíveis:
sem querer me ferem – e eu desvio o olhar.

dentro da casa cabem muitas casas.
logo no canto oposto à pueril
casa da infância, fechada na pálpebra,
reside a casa que ninguém mais viu,

desmoronando, roída de traças,
sobre seu alicerce imaginário,
cercada de acontecimentos ternos
que não puderam nunca entrar ali.

e na cozinha, no banheiro e quartos
diversas casas se mantêm à espreita
surgem, como na sala, de qualquer canto,
bem como da cama, quando se deita.

também é outra a casa no sofá,
se o corpo se reúne a outro instante
que tenha por acaso ali vivido
em uma casa  – a mesma – já distante.

e o mesmo se aplica a cada objeto,
e a casa comporta em seus corredores
viagens maiores que as de avião:
em qualquer cômodo, a um toque da mão,

a casa de quando ela ainda vinha,
aberta pela chave do perfume,
e a casa de logo depois da morte,
trazida pela roupa no cabide.

e o que dizer dos que a casa habitam?
em cada vida, quantas casas cabem?
a casa se reparte em cada peito,
e se projeta, múltipla, tal como

a luz num prisma, em dispersão,
e torna impossível determinar
onde vivemos – e eu quase sufoco
entre estruturas de concreto e sonho

se paro e olho em seus olhos cansados,
que pousam, bem como os meus também pousam,
sobre a matéria que, em silêncio, guarda
inglórias histórias – e quase morro

sob o peso de tanta casa, nômade,
andarilho de passo dividido,
retendo em mim esta dor singular
de não reter, de tanta casa, um lar.

dentro da casa cabem muitas casas.
o tempo as adormece e não corrói.
nenhuma das casas desaparece,
e mesmo quando alegre a casa dói.

dentro da casa cabem muitas casas.
é claro à vista por trás das janelas.
dentro da casa cabem muitas casas,
porém já não caibo em nenhuma delas.

das partes que não partiram


das partes que não partiram
é que somos compostos.
somente através de regressos
amamos e vivemos.

o tempo nos fere e divide.
despedimo-nos de nós mesmos e das coisas
a cada mínimo instante,
e, no entanto, não abandonamos nada.

parte a estação, resta-nos a pétala.
apertando-a contra o peito, sangramos.
e mal percebemos que é por meio dela mesma
que chegamos a novas primaveras.

parte o beijo para o impossível,
mas a reminiscência do beijo, nos lábios,
permanece – e assim, em nós, o anseio de revivê-lo,
de acalorar o corpo morno, de vencer a morte.

para cada história em nós decepada
uma busca incessante em nós se elabora.
traços vagos no meio da noite
nos guiam a sonhos incríveis.

e mal percebemos que amamos.
e mal percebemos que vivemos.
o coração se consome em música
e a poeira, à luz de um novo dia, cintila como estrelas.

rascunho


risco a palavra
no caderno de rascunhos

uma cerca de arame farpado
 me separa do poema

o que ficou ali?
a vida que em mim fervia
interditou-se  na tradução
e agora habita
o esquecimento

 inacessível
 porém jamais
 inexistente

uma viva parte de mim
morrendo perpetuamente

lembrar é criar


nada se perde:
o que era azul
ficou em algum lugar
entre o amarelo
e o verde

o busco
– com sangue o busco –
na paleta,
e quando enfim o acho
o acho violeta

nada se perde, mas
nada se acessa, jamais
o azul que ali viaja
só se revê violeta,
roxo, talvez lilás

ouroboros


o tempo reúne a obra
à natureza do obreiro.
naquilo que afinal sobra
reside o que é verdadeiro.

a vida em si o desdobra
até que se mostre inteiro,
na inteira volta da cobra
aonde estava primeiro.

assim se vê claramente
no olhar dos restos do lar:
silente, longínquo, velho...

onde vagarosamente
começa a se humanizar
a infinda face do espelho.

a um nome


I

um som rompe o silêncio.
teu nome.
num ato reflexo adquirido,
lubrifico os lábios.
percebo-o somente
no instante seguinte.

a poesia
infiltra-se na carne,
meu bem.

o corpo não esquece.

 
II

porque a memória do corpo
não acompanha o compasso
do tempo.

dentro da urna corpórea
a cinza não se sabe cinza.
arde, perpétua,
na chama imóvel
do instante
original.

o amor que te tenho,
honestamente,
é muito pouco.
meu corpo, porém,
não sabe disso.

ainda dançamos
entre as sapucaias.
mortos
e quentes.

o corpo não esquece.

continuidade


a palavra escrita
nada eterniza

só fotografa
a eternidade
da palavra nunca dita

o que se escreve
é uma fração
que cada letra
delimita

a eternidade
é como fonte
fluindo as coisas
nunca ditas

não dirás
em teu tempo
tudo o que tens
a dizer

mas dirás
algo de flor
e tocados da flor
outros dirão por você

não cantarás
todo o amor
inteiramente
profundo

mas o lerão
e farão do amor
que não foi teu
de todo o mundo

e quanto mais a palavra
resgata do nunca dito

maiores
nos tornamos
em nossos corpos finitos

lírio


despertei do sonho
em que te abraçava
e me vi diante
das folhas queimadas
do lírio sem flor

como se ali renascida
você morresse
            pela segunda vez

arte


carregar aquilo que morre
ao infinito
chama-se eternidade

devolver a eternidade
àquilo que morre
chama-se arte

pandora


da caixa ainda escorrem as quebradas notas
de uma canção
quase esquecida

     o que dói não é
     não poder recompô-la,
     tampouco a impossibilidade
     de sintonizar-se ao seu tempo

o que dói,
– o que de fato dói –
é a mutilada esperança
que se agarra ao fundo
   enquanto a música se perde
   sem que ninguém a ouça

ophiuchus


eu vou estender até o infinito
o breve conteúdo do recorte,
e nele hei de criar o nunca dito,
para além da ausência e para além da morte

eu vou colocar a todos, lado a lado,
em uma prateleira bem polida,
em que não pese a palavra passado,
nem possa o tempo ditar a partida

eu vou organizar toda a mobília
e esculpir cada ilusão à apoteose;
diluviar o lar de maravilhas
até esquecer seu semblante de hipótese

eu vou segurar com força o monstro
que, entre velas, rasteja pra devorar
tudo o que quero prender nos meus braços

e tudo estará bem. e eis que demonstro:
cada coisa em seu lugar
na casa caindo aos pedaços

decurso


o que em minhas mãos se aflora
e no corpo experimento
dura não mais que um agora
e então se desfaz no vento

mas não sem que antes traduza
de seu ínfimo momento
o infinito que o conduza
ao verso, seu monumento

para que de cada corte
reste a beleza incontida
e quando enfim me transporte

o tempo ao cais da partida,
eu leve só minha morte
e deixe aqui minha vida

fóssil


amor é espécie
que somente em eventos
de extinção em massa
desaparece

extingue-se do que permanece,
e o permanecido parece
desaparecer:
leva consigo lugares
que não retornam nunca
à matéria pré-amorosa,

leva consigo a neutralidade
mesmo de certas sílabas,
que não mais cortam o silêncio
sem cortar a lembrança
(nome, faca sutil
amolada entre gestos
                          e signos,
desenhando no ar
um par de olhos, uma boca,
indicando, no mapa,
um endereço
para o qual não há caminhos)

consigo extingue da cidade geral
a cidade específica,
que humildemente se recolhe
à poeira da caixa,
e ali se exerce
sem novas obras,
sem
aniversários, festas,
pique
niques,
                sem
                luzes 
de natal

cafés, cheiros, plantas, bancos,
                                canções
por toda a parte
e em lugar nenhum,
coisas consumidas em marcas antigas
de garras ausentes
e dentes ferozes
outrora tão doces

cataclismo de sua própria fera
único fóssil
               que ruge

lembra


poucos meses de isolamento
comportam séculos de esquecimento

poucos meses de cinzas
caídas sobre a mesa
poucos meses de poeira cobrindo as prateleiras
poucos  meses de fome
de penumbra
de ausência
                        de amor

subitamente toco as letras de um caderno:
coisas vivas de há poucos meses
acenam de algum lugar da eternidade
– quem escreveu estas coisas?
quem encarnou estas preocupações?

eu
não lembrava

havia vida aqui:
havia uma casa, um orquidário,
havia planos traçados,
o escarlate da vontade
sangrava pelos poros do papel

havia qualquer coisa que não fosse cinzas,
poeira, fome e penumbra,
como agora as minhas mãos parecem
implicar

havia uma carta a enviar, uma viagem a ser feita,
uma canção sempre a descobrir;
poemas embrionários,
sincera comoção pelos vencidos.
um cansaço distinto do exílio.

e para onde foi?
(pode um lírio desfazer-se
sem legar qualquer perfume?)
quanto desta repentina piedade será só culpa,
falta de cautela,
miragem?

e, no entanto, eu sei:
sou eu

tanta coisa minha
que eu nem lembro
de ter esquecido

eu não lembrava, céus,
eu não 
              lembrava

não é o esquecimento tão mais belo
    quanto mais terrível
    do que a morte?

canção para o teu silêncio


em teu primeiro silêncio,
deixei todas as palavras,
supondo que nunca mais
delas eu precisaria.

em teu último silêncio,
precisei de todas elas,
e não pude nem morrer
quando notei que as não tinha.

as letras são só relevo,
agora, do teu semblante,
onde a espera exasperada
fez-se nula, mas completa.

fora da palavra morte,
não morro. levo comigo.
de teu último silêncio
não regressarei poeta.

em teu primeiro silêncio,
construí a minha casa;
pus mais flores e mobília
do que na casa cabia.

em teu último silêncio,
desabaram as paredes
ao redor da porta aberta,
por qual jamais entrarias.

e fiquei de mãos vazias
sem verdade ou movimento,
vendo os símbolos quebrados
nas marés entreabertas.

fora da palavra vida,
só me resta carregá-la.
de teu último silêncio
não regressarei poeta.

fotocópia


mil poemas depois
e ainda não encontrei
conclusão
aos teus olhos.

por mais que eu parta
e desafie o tempo,
por mais que eu me debruce
longamente
sobre as grandes questões e doenças,
e percorra, nômade,
os labirintos da palavra,
é sempre à infinita banalidade
dos teus olhos
que regresso.

dois faróis doloridos
resistindo sobre as sombras
das ilhas naufragadas.
mais esquecidos a cada lembrança.
mais vivos a cada vez que os mato.

onde até mesmo o esquecimento
se torna modalidade
da memória.

[prosa] fragmento de sensação


Há momentos em que me ocorre, por qualquer razão maior que eu próprio – ou, ao menos, maior que à minha compreensão de eu próprio –, uma intensa acuidade da atenção aos mais mínimos gestos, acontecimentos, sons, detalhes e demais factos comumente tidos por insignificantes, de que se compõem grande parte de meus arredores e fôlegos quotidianos; e de seguida o que me ocorre é, em geral, a pungente tendência a comover-me por tais pequenezas, que de fato não o são.
Sim... Qualquer ente humano, querido ou desconhecido, que, proferindo uma saudação ritualística qualquer, franza de maneira distinta os olhos e altere minimamente o tom da pronúncia de suas palavras... Ou a visão ocasional e oportuna de uma formiga que, ao sair do copo que há pouco enchi de água justamente por a não ter visto inicialmente, começa, à borda do mesmo copo, a esfregar as patas magras e fortes ao redor das antenas, enxugando-se... Ou, ainda, o som ágil e despretensioso vindo dos lábios de quem me chame pelo nome – tudo, de repente, é-me uma vela, se vejo bem, com qual minha alma dormente se reacende. É tudo um sutil punhal que me penetra o coração, sangrando um profundo sentimento de piedade e carinho impossível.
Certa vez mostraram-me a fotografia de um bebê, de que não recordo o nome, embora o relembre deveras. Sorria como considerável parte dos bebês o faz em fotos; talvez, por isso mesmo, dava uma primeira impressão de não ser bebê, mas foto. Por repentino destino, no entanto, um dente único e muito branco que despontava da gengiva inferior saltou-me aos olhos como se fosse uma súbita condensação de toda a vida, algo que rasgasse o símbolo fotográfico dissimulado e trouxesse-me à alma não o bebê em si, em sua carne contornada e individualidade ainda por desenvolver, mas sim a própria consciência abstrata de que aquele bebê existe, de que outros bebês existem, de que existem bebês com corações inocentes e olhos entreabertos ao mundo e dentes de leite doídos. Aquele dente, de alguma forma, caiu-me na alma liquefata como fosse uma peça de chumbo descendo a um poço profundo, mas com tal voracidade de modo a ser capaz de elevar quase à tona – meus olhos – a água – lágrimas – há muito esquecida no fundo. Tive dentinhos de leite também, como tem esse bebê. Fui bebê também. Algo em mim talvez ainda o seja. Aquele bebê fora, naquele instante, toda a humanidade, e até por isso não cismo lembrar seu nome. A poesia foi-me quase possível outra vez, embora fosse triste.
Posso quase ousar dizer que agora compreendo o que em mim me causa tais sensações: ora, a percepção dos detalhes exige (diferentemente da percepção ampla) a admissão, ainda que inadvertida, de que é tudo real. A vida é real. O mundo é real. Eu sou real. Também o ente que observo franzir os olhos e tropeçar nas palavras tem um modo de dizer, e algo a exprimir, e possivelmente bondade ao cumprimentar outro ente que julgue digno de cumprimento. Também ele sente a alegria estúpida da realidade.
Também a formiga, por mais marginalizada que seja nos corações de seus conterrâneos humanos, tem existência, tem vida, tem um lar a que deve retornar, tem tarefas a realizar, tem a necessidade de se alimentar e de escapar do afogamento para que assim postergue a hora em que forçosamente se dispersará na terra, organicamente – seria ela assim tão diferente dos homens para que por elas não tivéssemos qualquer coisa como ternura?
...E meu nome. Também sou alguém. Também tenho um nome, um aspecto, uma figura humana reconhecível a quem se pode atribuir afeto, desprezo, nojo, ódio, indiferença. Sim, recordo-me de que sou. Eu, que tanto, por vezes, me vejo entorpecido e diluído no meio alheio, sinto-me real quando me dou conta de que tenho um nome que me distinga.
E ternura. Tenho ternura ao ponto de ter lágrimas, pela consciência de que somos todos reais, com vãs dores e vãs alegrias reais, subjugados todos ao ofício de viver. Nós, bússolas quebradas guiando caravelas infinitas que partem sem destino, em um mar de dor e de beleza. Nós todos... Almirantes fadados que aspiram ao eterno ainda que não o saibam.
Ainda que uma única estrela anã condensasse em si todo o universo, não seria tão densa, relativamente, quanto à condensação de toda a fraternidade à humanidade e ao mundo quando esta se dá em um único seio humano.
Portanto abraço a todos quando aos mínimos detalhes me atento e constato a igualdade de nossas condições.
Outra vez pressinto a água subir à tona do poço, embora, agora, fique presa por detrás das pálpebras, em fluxo contínuo, rumorejando a infinidade destas sensações – rumor que em falhas parafraseio e ouso traduzir.
            Sim... A poesia é-me quase possível.

a cidade revisitada


...mas a cidade ainda existe,
e tem ainda casas e ruas e labirintos
e alicerces
que, revistos,
encarnam as cores de todos os olhos
que espiam incrédulos.

mas ainda existem – e por muito existirão –               
pés deslizando bruscos pelas calçadas
e calcanhares e pernas apressadas
de homens e mulheres
trespassando o mormaço
a serviço,
ou tornando da vida
à noite
para um cigarro, talvez, ou dois, ou três.

há infinitos pisoteada e existindo,
a cidade é o palco
dos sapateados involuntários,

da pantomima de alguns,
dos monólogos de tantos,
dos silêncios de inúmeros.

é o teatro onde as cortinas só se cerram
sob a terra ignorada,
onde não se alegra com as flores dadas por conveniência
ao fim do espetáculo.

e ainda existe porque a arte vaga de existir
em tudo se imprime ainda
no que não existe, e se projeta no tangível.
a cidade ainda existe.

“que venha logo a escura noite,
com seu intervalo e seu álcool”,
clamam as almas
que em seus estômagos sabem
do ato vindouro e sem ensaio.

poema de hades à espera do inverno


mediu-se à maneira de anúbis
e viu voar a pluma

não por seu ódio,
mas por seu amor,
tão impiedoso quanto

canto


em meio ao que permanece,
porque não permaneço,
posso sofrer e cantar

fosse eu infinito
para além da infinidade
com que sinto,
a cidade
e a canção
não eram tão grandes

a rosa mnemónica


– s.

ponto de referência
em si mesmo indefinido
de um tempo de espanto e incerteza:
poderia mesmo ter explodido?

poderia mesmo ter colorido
as paredes com seu pigmento,
e abraçado a casa toda 
no rubor de um só momento?

ou – menos que isso – poderia, ainda,
ter permanecido, simplesmente, em sua jarra triste,
sem mais que um vento , a que se desse,
nem mais que um olhar, a que iludisse?

explosão, ilusão? desdobra-se, rosa, ao sabor
sempre vário da minha incongruência,
que em mim se reparte e ressuscita,
ao que reinvento a tua essência

do xilema ao floema do poema, 
as pétalas se desprendem dos segundos,
desintegrando-se diante dos meus olhos,
reconstruindo-se em meus abismos mais profundos

disforme, conforme, pluriforme rosa,
perpétua na dor que carrego sempre comigo;
é e não é, e o que será, já não sei:
a dúvida em meu peito é o seu jardim ambíguo

fósforo


vida: em maior parte, reticências
(mil contos nas distâncias de três pontos)
estando nela, nunca estamos prontos
o coração coleciona ausências

e cresce sem que cresça o seu tamanho
(daí a sensação de decepado
embora nada tenha se anulado)
fendido entre o familiar e o estranho

e assim levamos este peso, sem
saber bem a o que ou a quem
tantas reminiscências entregar

de estarmos cheios do que não sabemos
querendo nascer, de cada dispêndio
a partir da parte que nunca lemos:

a parte que resta depois do incêndio
em seu sonho perpétuo de queimar
na chama extinta que não sobe achar

feliz aniversário


as velas se multiplicam
sobre o silêncio da distância

eu te conhecerei por quem você não é
e você me conhecerá por quem eu não sou

e assim vamos
de mãos dadas
através do fogo 

eternamente unidos e desconhecidos

aquiles vê pentesileia


diante agora do teu rosto colho
o fruto de quando não te via:
em como vens, te despedes
em como te aproximas, te apartas

morte e vida consubstanciadas
em contraditórias flores,
crescendo, enroscadas,
dentro de mim

sem jardim
que lhes dê repouso

o símbolo


onde o poeta acaba
a poesia nasce

assim amamos as flores:
para compor jardins
do que nos escapa

diante de um texto póstumo


prazer de encontrar-te outra vez
onde eu não te esperava

pudor de pousar o olhar 
numa só palavra

primor de escutar outra vez
a tua canção

pavor de matar a esperança
de ter sido a morte
somente ilusão

episódio


tão breve
  dançou dentre
as brasas
  e já se esvaiu

  dessa cinza
se faz tinta:
  eis a vida
após a morte

dança de novo
  coração medroso
na cor morta
  que imita a aurora

  celebra em ti
teu sonho distante
  que não se conclui
                        jamais

traço


depois,
sem saber se era ele o esboço de seus sonhos
ou se seus sonhos eram o esboço de si,

ficou só como um destes tantos
desenhos
que iniciara
em cadernos esquecidos.

rabiscos
ali perdidos, para sempre sem pernas,
sem mãos,
nem faces
nem nomes.

antropomórficos sem dinâmica
em páginas cruas.

desenhos
até que bem legais

o que fica


o que pretendi deixar
para deixar-me consigo,
não poupa-me de levar 
a mim pra morrer comigo.

posto no que agora sou,
não posso estar no que fiz.
só sombra se enraizou
da árvore sem raiz.

se mudo de opinião
à margem do tempo ido,
as letras não sabem: são.

mas, meu nome as tendo ungido,
resto, pra sempre, em meu não.
lembrado, e entanto, esquecido.

poesia


a poesia é uma coroa de flores
sobre a miséria do amor

sibilo


em meu mosaico de escamas
guardo as partidas estrelas;
vê-as passar, se as amas,
que é inútil buscar retê-las.

aquele que me segura
ilude-se com um fantasma;
e o perfume que procura
reduz-se a mero miasma.

por isso, inda que eu te fira
o céu vazio, possessivo,
e teu sonho até prefira

um morto sol a um sol vivo,
não fujas à minha lira,
pois tanto eu dou quanto privo:

do rastro da luz que arquivo,
já um novo astro respira
– e outra vez tua vida gira.