Sei hoje que ninguém antes de ti morreu profundamente para mim Aos outros foi possível ocultá-los na sua irredutível posição horizontal sob a capa da terra maternal Choramo-los imóveis e voltamos à nossa irrequieta condição de vivos Arrumamos os mortos e ungimo-los São uma instituição que respeitamos e às vezes lembramos celebramos nos fatos que envergamos de propósito nas lágrimas nos gestos nas gravatas com flores e nas datas num horário que apenas os mate o estritamente necessário mas decerto de acordo com um prévio plano tu não só me mataste como destruíste as ruas os lugares onde cruzámos os nossos olhos feitos para ver não tanto as coisas como o nosso próprio ser A cidade é a mesma e no entanto há portas que não posso atravessar sítios que me seria doloroso outra vez visitar onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te Morreste mais que todos os meus mortos pois esses arrumei-os festejei-os enquanto a ti preciso de matar-te dentro do coração continuamente pois prossegues de pé sobre este solo onde um por um perigo os meus fantasmas e tu és o maior de todos eles não suporto que nada haja mudado que nem sequer o mais elementar dos rituais pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois forma rudimentar de morte e afinal morte que por não teres morrido muito mais tenhas morrido Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo tu matas-me não só rua por rua nalguma qualquer esquina a qualquer hora como coisa por coisa dessas coisas que subsistem vivas mais que na vida vivas na imaginação onde só afinal as coisas são Ninguém morreu assim como morreste pois se houvesse morrido tudo estava resolvido Os outros estão mortos porque o estão Só tu morreste tanto que não tens ressurreição pois vives tanto em mim como em qualquer lugar onde antes te encontrava e te possa encontrar e ver-te vir como quem voa ao caminhar Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 2, págs. 28 e 29 | Editorial Presença Lda., 1981