Renasce neste largo a minha infância a minha vida.tem aqui nova nascente e jorra de repente com o ímpeto do início O tempo não passou ou só a consciência que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo de ser um espectador de sucessivos sucedidos dias de não viver apenas não viver sem sequer saber que vivo num espaço demarcado onde as coisas e os homens eram tanto que eram simplesmente só essa consciência e sensação me fazem suspeitar de que passou o tempo que nunca passou O adro o fim da tarde o jogo do chinquilho o ruído das malhas os paulitos o sol poente sobre si redondo como simples malha atirada por alguém pelo espaço do dia e prestes a cair no mar como nas tábuas o gesto perdulário e impensado de jogar a malha como quem num gesto joga a vida as silhuetas hirtas dos que assistem de boné ou barrete na cabeça e mãos nos bolsos tudo se passa aqui ali há trinta e cinco anos como se aqui ninguém houvesse envelhecido nem sofrido ou morrido ou suportado toda a imensa fome requerida para produzir um rico como se aqui ninguém tivesse demandado longe de aqui o seu país noutros países Tudo é o mesmo adro a mesma tarde o mesmo jogo Até este café onde sentado olho e penso por olhar é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai a primeira cerveja uma cerveja vinda através do calor do dia de verão nesse cesto de vime nesse poço mergulhado É o mesmo o sabor que sempre sinto nesta boca há muitos anos já mordendo o vinho o pão a vida o sabor das mulheres das raparigas inacessíveis sempre como um absoluto sempre impossível tido no entanto por possível o sabor da derrota ou o sabor da terra sensível dia a dia nos meus dedos e um dia susceptível de me encher a boca para sempre Envelheci eu sei e só ganhei o que perdi. Sou de uma adulta idade E entretanto tudo a noite rodeou e o jogo acabou e pelo céu do tempo houve um homem que passou ou uma certa malha arremessada por acaso à vida e viva na precária trajectória antes de caída.
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 2, págs. 39 e 40 | Editorial Presença Lda., 1981