O dissídio das trevas começara Se figuras reais o tempo a sombras reduziu não menos marca em faces vivas imprimiu esparsas nas prisões entre a floresta negra e o mar báltico A noite ao recuar como pela vazante o mar deixou de pé impávidas na fímbria do dia hirtas nas respectivas estaturas as mulheres obscuras e escuras de corrèze senhoras absolutas do silêncio sobre os sombrios túmulos dos seus concidadãos despertos na alsácia para a vida ali bebida por esse chão francês onde nascemos todos nós Se somos homens é porque temos voz e através dos campos somos conduzidos pelos cães que na noite erguem os seus latidos Os maquis portadores de simbólicas bandeiras arrastam-se debaixo de árvores rasteiras pois a gestapo só nas gigantescas árvores se digna demorar a principesca vista A mais altiva divisão do fúhrer blindada e couraçada numa espessa muralha de ferro vê o caminho para a normandia cerrar-se nas calosas mãos dos camponeses mãos feitas para o pão e para a paz mãos medida do homem não da máquina Devassa a névoa dos vosges e o muro vegetal da alsácia o canto cúmplice daqueles renitentes resistentes talvez dali a nada forte mensageiro de morte Porém já a ninguém a morte importa mas sim o cativeiro vida mitigada morte maior miúda e adiada E a lágrima londrina de moulin amigo da república espanhola prefeito expulso pelos homens de vichy proprietário apenas da palavra liberdade a lágrima daquele a quem malraux chamou carnot da resistência e o nazi barbie boliviano naturalizado cobardemente acaba de dizer que hardy atraiçoou essa lágrima nasce na incisiva e seca fala de de gaulle e traz consigo a altivez e decisão de um povo inteiro em pé por trás daquela face sulcada pela lágrima caudal dos rios de um país O inveterado laico que do sótão de um ignoto presbitério fez chegar até londres sua voz sacramental o pobre rei das sombras massacrado condecorado já com uma cicatriz incisa por si próprio uns três anos antes junto às cordas vocais onde podia a sua voz vibrar sob a tortura silencia para sempre os sons articulados o único ferro capaz de assinalar um homem livre É no forte montluc de lião que já sem fala imprime no papel que lhe apresentam a fisionomia do verdugo que há-de executá-lo O seu silêncio vela essas mulheres que velam pelos mortos os maquis que rastejam sob os ramos de carrasco as oito mil mulheres mortas nas masmorras alemãs a última francesa assassinada em ravensbriick por haver albergado um resistente A ele chefe sem rosto desse exército da noite desse povo de sombras que só ele iluminou só a morte lhe deu um nome verdadeiramente seu Mais do que libertar paris a resistência restitui ao país a sua consciência e as pétalas de flor que a multidão espargia nos carros apagavam logo o pó da normandia E os que por heróis em escravos se encontravam transformados chegados mesmo ao cúmulo das dores a própria morte olharam como vencedores Sobre a luz da cidade tanto tempo extinta sobre a cidade tanto tempo muda os sinos são a voz da liberdade difundida através do céu do verão e da cidade E tu ó homem livre de qualquer país podes ainda hoje ouvir esse dobrar do sino e gravar no teu peito o que te diz: temos nas nossas mãos o leme do destino Nós os irmãos professos da ordem da noite devolvemos a voz ao povo emudecido pela ignorância forma extrema e eleita de opressão Na sala de bilhares da estação de montparnasse o general von choltitz após a rendição desce no seu o olhar vencido do exército alemão diante desse jovem general francês que apenas diz: «Eu sou o general leclerc» Era uma vez o tempo fugaz foge Foi já há duas ou três décadas foi hoje
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 2, págs. 48 a 50 | Editorial Presença Lda., 1981