Inútil sol inútil chuva inútil céu enquanto não imóveis como as árvores abertas todas elas para tudo feitas em cada folha tudo para tudo atravessarmos rígidos os meses
Inútil é o sol feito relógio de pobres o sol afinal a única pessoa importante que passa na rua E as nossas ideias estas ideias latinas que precisam de ombros para elas entre as árvores fazendo concorrência às coisas misturando-se e distinguindo-se ocupando um espaço tão real como aquelas
E as crianças deformando o espaço indo por dentro enchendo a rua sendo novas ruas deixando-nos depois como únicos gestos que ainda perduram palavras nascidas nos lábios delas mortas mais tarde nas costas de quem passámos
Inútil citadina chuva pretexto para os nossos guarda-chuvas chuva que a todos nos molha e nos confunde e nos iguala companheira chuva E eu vou por esta chuva acima até à minha infância debaixo dos meus pés o chão é outra vez o mesmo
a erva cresce. Entre gestos polidos páginas de livros no meio desta vida exacta e medida nesta cidade assim mesmo tal e qual a erva cresce e tem aroma e leva-me por esse aroma até à erva vou de erva para erva Rasgam-se em mim adros de aldeia há plátanos abrindo sobre danças de crianças Junto da janela passando na rua posso com toda a propriedade dizer que conheço infinitamente melhor as montanhas junto do mar onde tem ninho o pato selvagem e tudo lembra ainda um passado de águas que a forma sempre mudável da minha unha essa unha roída pelos grandes problemas essa unha de passagem das estações e dos dias e dos carros de bois antes e depois dos dias
Inútil céu que o sol todos os dias deixará levará como perdido manto esquecido sobre as nossas cabeças
A primeira infância passou mas agora ou logo deus renova todas as coisas E um dia haverá barcos e seremos livres
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, págs. 46 e 47 | Editorial Presença Lda., 1984