Éramos meu pai e eu E um negro, negro cavalo Ele montado na sela, Eu na garupa enganchado. Quando? eu nem sabia ler Por quê? saber não me foi dado Só sei que era o alto da serra Nas cercanias de Barra. Ao negro corpo paterno Eu vinha muito abraçado Enquanto o cavalo lerdo Negramente caminhava. Meus olhos escancarados De medo e negra friagem Eram buracos na treva Totalmente impenetrável. Às vezes sem dizer nada O grupo eqüestre estacava E havia um negro silêncio Seguido de outros mais vastos. O animal apavorado Fremia as ancas molhadas Do negro orvalho pendente De negras, negras ramadas. Eu ausente de mim mesmo Pelo negrume em que estava Recitava padre-nossos Exorcizando os fantasmas. As mãos da brisa silvestre Vinham de luto enluvadas Acarinhar-me os cabelos Que se me punham eriçados. As estrelas nessa noite Dormiam num negro claustro E a lua morta jazia Envolta em negra mortalha. Os pássaros da desgraça Negros no escuro piavam E a floresta crepitava De um negror irremediável. As vozes que me falavam Eram vozes sepulcrais E o corpo a que eu me abraçava Era o de um morto a cavalo. O cavalo era um fantasma Condenado a caminhar No negro bojo da noite Sem destino e a nunca mais. Era eu o negro infante Condenado ao eterno báratro Para expiar por todo o sempre Os meus pecados da carne. Uma coorte de padres Para a treva me apontava Murmurando vade-retros Soletrando breviários. Ah, que pavor negregado Ah, que angústia desvairada Naquele túnel sem termo Cavalgando sem cavalo!
Foi quando meu pai me disse: - Vem nascendo a madrugada… E eu embora não a visse Pressenti-a nas palavras De meu pai ressuscitado Pela luz da realidade.
E assim foi. Logo na mata O seu rosa imponderável Aos poucos se insinuava Revelando coisas mágicas. A sombra se desfazendo Em entretons de cinza e opala Abria um claro na treva Para o mundo vegetal. O cavalo pôs-se esperto Como um cavalo de fato Trotando de rédea curta Pela úmida picada. Ah, que doçura dolente Naquela aurora raiada Meu pai montando na frente Eu na garupa enganchado! Apertei-o fortemente Cheio de amor e cansaço Enquanto o bosque se abria Sobre o luminoso vale... E assim fui-me ao sono, certo De que meu pai estava perto E a manhã se anunciava. Hoje que conheço a aurora E sei onde caminhar Hoje sem medo da treva Sem medo de não me achar Hoje que morto meu pai Não tenho em quem me apoiar Ah, quantas vezes com ele V ou ao túmulo deitar E ficamos cara a cara Na mais doce intimidade Certos que a morte não leva: Certos de que toda treva Tem a sua madrugada.