Uma certa madrugada Eu por um caminho andava Não sei bem se estava bêbado Ou se tinha a morte n'alma Não sei também se o caminho Me perdia ou encaminhava Só sei que a sede queimava-me A boca desidratada. Era uma terra estrangeira Que me recordava algo Com sua argila cor de sangue E seu ar desesperado. Lembro que havia uma estrela Morrendo no céu vazio De uma outra coisa me lembro: ... Un horizonte de perros Ladra muy lejos del río...
De repente reconheço: Eram campos de Granada! Estava em terras de Espanha Em sua terra ensangüentada Por que estranha providência Não sei... não sabia nada... Só sei da nuvem de pó Caminhando sobre a estrada E um duro passo de marcha Que em meu sentido avançava.
Como uma mancha de sangue Abria-se a madrugada Enquanto a estrela morria Numa tremura de lágrima Sobre as colinas vermelhas Os galhos também choravam Aumentando a fria angústia Que de mim transverberava.
Era um grupo de soldados Que pela estrada marchava Trazendo fuzis ao ombro E impiedade na cara Entre eles andava um moço De face morena e cálida Cabelos soltos ao vento Camisa desabotoada. Diante de um velho muro O tenente gritou: Alto! E à frente conduz o moço De fisionomia pálida. Sem ser visto me aproximo Daquela cena macabra Ao tempo em que o pelotão Se dispunha horizontal.
Súbito um raio de sol Ao moço ilumina a face E eu à boca levo as mãos Para evitar que gritasse. Era ele, era Federico O poeta meu muito amado A um muro de pedra seca Colado, como um fantasma. Chamei-o: Garcia Lorca! Mas já não ouvia nada O horror da morte imatura Sobre a expressão estampada... Mas que me via, me via Porque em seus olhos havia Uma luz mal-disfarçada. Com o peito de dor rompido Me quedei, paralisado Enquanto os soldados miram A cabeça delicada.
Assim vi a Federico Entre dois canos de arma A fitar-me estranhamente Como querendo falar-me. Hoje sei que teve medo Diante do inesperado E foi maior seu martírio Do que a tortura da carne. Hoje sei que teve medo Mas sei que não foi covarde Pela curiosa maneira Com que de longe me olhava Como quem me diz: a morte É sempre desagradável Mas antes morrer ciente Do que viver enganado.
Atiraram-lhe na cara Os vendilhões de sua pátria Nos seus olhos andaluzes Em sua boca de palavras. Muerto cayó Federico Sobre a terra de Granada La tierra del inocente No la tierra del culpable. Nos olhos que tinha abertos Numa infinita mirada Em meio a flores de sangue A expressão se conservava Como a segredar-me: - A morte É simples, de madrugada...