Alguns Poemas

A INTERRUPÇÃO DO ROSTO

1. interrupção da boca

Onde um astro havia que queimava à distância os lábios

por causa da ignorância que de si crescia na boca

como uma pedra fria escurecida

2. interrupção dos rios

lavravam os rios as pessoas sem terra

encardiam as mãos e os pés com o mistério

dos choupos acesos pela água e deles dos rios

guardavam apenas o rumor que se lhes ouvia

ao atravessarem juntos o tronco nu da tarde

3. interrupção das palavras

a madeira chegava à cidade para

construir casas e acender lareiras

toros que vinham de longe

da luz rápida das inclinações sobre os rios

que no seu sangue deixavam a imitação

do movimento

que vinham das vésperas do gesto largo

de vidro do machado inicial

onde o olhar não penetra a bruma

são vazias as palavras

sem o sangue dos primeiros nomes

bestas que nascem mesmo assim

lembram ausências

em casas a que se perdeu a chave

4. interrupção das casas

as pessoas guardavam os cobertores e os lençóis

em arcas que arrumavam sob a luz tardia

como se preparassem os minutos para a noite

e quando chovia olhavam pela manhã da janela

a curva da rua que tomavam para o trabalho

onde a água no inverno se acumulava muito funda

e quando ao fim do dia chegavam a casa fechados nos muros dos passos

bocejavam de fome e sono o frio que traziam para as mesas

as casas são palavras com paredes

frases que chamam pelo calor de um nome habitado

aqueles que a elas regressam

5. interrupção dos cabelos

as pessoas traziam os cabelos apanhados

e na algibeira pedaços de silêncio que recolhiam

os seus avós nas aldeias debruçavam-se sobre as horas da terra

para apanhar as batatas

espreitavam por hábito ao fim do dia o avanço da vida

na porca parideira no pocilgo e antes do deitar

ouviam em pequenos rádios canções que os ponteiros

do relógio decoravam como decoravam o seu caminho

não é fácil os cabelos esquecerem a linguagem idêntica do vento

transformarem-se em arame

6. interrupção do olhar

o olhar das pessoas parava no ruído da areia pisada

e no mato dos bosques que da acidez da luz

não protegia

das casas altas do tempo não havia notícia

ou da forma como o mar recebe a curva larga das gaivotas

os peixes que a profundidade guarda

e desse mar algas havia que queimavam os olhos

e eles por isso o ignoravam como se ignora o mundo

7. interrupção do rosto

como pode o rosto ser contínuo

sem o vidro da memória

que do sono se não levanta

como se pode

com a poeira das pedras continuar o rosto

8. interrupção do silêncio

vestem camisas engomadas as pessoas

para calar os murmúrios que se escapam

da nudez dos troncos sob a luz trémula da tarde

procuram no silêncio o casaco para o frio

e o ruído dos carros que passam nas suas ruas descendentes

é abafado e perde-se no esquecimento da curva em que terminam

as cidades despem aqueles que morrem longe dos rios

de que perderam o risco sussurrante nos mapas

e bebem o mosto do seu silêncio

9. interrupção da fala

dificilmente se calçavam de manhã as botas

ocupadas que estavam pela sombra das palavras

recolhia-se o reboco do chão junto às paredes

da interrupção da fala sabemos porque

no muro precário das palavras ficou

a impressão forte de uma mão a cor de sangue

o primeiro gesto

de quem entra nessas casas de barro

à beira do deserto.

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