Neuroses (conto)
Irene parou no portão e olhou para trás. Quis voltar para conferir se havia fechado bem a porta dos fundos. Achava que sim, todavia a sua intuição indicava ser necessário confirmar essa desconfiança. Esse era um gesto usual em sua rotina. Voltou e conferiu portas e janelas, foi ao banheiro, lavou as mãos e seguiu.
Sempre que ia sair uma perturbação vinha a sua mente e não a deixava prosseguir sem que esses atos se concretizassem. E mais! Ao voltar para conferir, qualquer que fosse o esquecimento, também ia ao banheiro e depois lavava as mãos...
Agora conseguiu sair! Ah! Que alívio !
Ficou pensativa sobre esses gestos costumeiros, mas prosseguiu. Já estava quase atrasada para o seu compromisso: iria assistir a um concerto do Coral Todos Nós.
Dirigiu-se ao centro da cidade, entrou no teatro devagarinho, sentou-se e olhou para os lados em busca de conhecidos. Posicionou-se numa fileira em que tinha uma boa visão. Gostava muito daquele teatro: sua forma, sua acústica, suas cores.
Escolheu essa programação em busca de algo diferente, algo que a acalmasse, pois a noite anterior foi de insônia entremeada por pesadelos. Atribuía essa perturbação a um filme de terror que assistiu antes de dormir. Por conta daquelas cenas de execuções ficou a madrugada inteira em desassossego e amanheceu o dia exausta.
Na noite seguinte decidiu viver uma experiência diferente e ver algo bonito que a acalmasse, por isso é que estava ali.
No ponto extremo esquerdo do palco um senhor vestido de preto cruzou o olhar com o dela. Aquele jeito de olhar a constrangeu, manteve-se em alerta e a indagar-se:
- Por que ele me olha tão incisivamente?
Enquanto pensava sobre isso dava-se início a apresentação cultural do coral Todos Nós, que é reconhecido pela qualidade da sua formação e repertório. O maestro regia com firmeza e atenção e as vozes do coral se alternavam entre os tons graves e agudos, entoando belas melodias. O repertório escolhido era impecável. O homem vestido de preto entrava e saía da coxia e dirigia-lhe um olhar penetrante. Ela sustentava o olhar, mas um arrepio a atravessava inteira. A peça do coral prosseguia, enquanto sentava ao seu lado uma senhora elegantemente vestida e bem maquiada, que a olhou de forma breve, cumprimentou-a e voltou-se para o palco. Conheciam-se de vista e a Irene supunha ser tal conhecimento vinculado às suas presenças nesse tipo de ambiente. Estando agora acompanhada pensou: ficarei livre do olhar invasor daquele assistente de palco. Ficou quieta observando-o, mas ao vê-lo com a atenção voltada para a coxia levantou-se e saiu. Atravessou todo o teatro pela lateral e adentrou a um outro vão bastante iluminado que dava acesso à rua. Sentiu o ar banhar-lhe o rosto, o que a deixou bastante relaxada. Olhou para o céu em busca da sua constelação preferida, mas nada viu: a poluição obscureceu o céu. Lembrou-se de quando deitava-se na calçada em sua casa, em Capim Dourado, e ficava contando as estrelas, coisa que se a sua mãe visse logo reprovava; segundo ela contar as estrelas no céu fazia nascer verrugas no corpo. Prosseguiu a caminhada, mas ao dar uns dez passos na calçada sentiu uma presença próxima e olhou para trás. O que a levou a constatar que o homem de preto, e de olhar penetrante caminhava olhando para o infinito. Era fim-de-ano e uma feirinha de natal composta de objetos artesanais ocupava os passantes. Ele parou numa barraca de enfeites natalinos e ela parou na barraca vizinha, queria demonstrar que não percebia o assédio dele; cruzaram os olhares e ela sentiu-se mais uma vez invadida. Aquele não era um olhar usual e ele continuava a segui-la.
Manteve-se calma. Viu que ele comprava algo e aproveitou para tentar escapar da sua presença. Saiu atravessando a multidão, entrou na Rua Direita, conhecida por seu intenso movimento, e desaguou numa rápida caminhada na praça São Bento. Já descia uma escadinha para dirigir-se ao Vale do Anhangabaú e prosseguir numa rua lateral que daria acesso à Travessa em que morava quando deu de frente com ele. Estava exausta de caminhar e sentou-se num banquinho que estava disponível ao lado de uma banca de jornal. Do outro lado da rua o homem vestido de preto comprava cigarros e olhava-a de esguelha.
Resolveu caminhar rápido. Embrenhou-se na multidão e dirigiu-se a passos rápidos para o Viaduto do Chá. O céu estava escuro anunciando chuvas. Pensou consigo mesma:
- Era só o que faltava!
Não andava com guarda-chuva. Começou a correr e o homem do teatro, que portava agora uma capa preta, ria-se e corria também. A Irene estava prestes a cair de cansaço. Foi então que uma música suave chegou aos seus ouvidos; abriu os olhos e ao sentir um incômodo na coluna aprumou-se na cadeira enquanto a dama sentada ao seu lado, no teatro, dirigiu-lhe um olhar de reprovação. O homem de preto continuava seus afazeres deslocando-se do palco à coxia, enquanto ela bocejava sem entender ao certo em que parte do espetáculo se encontrava, pois adormeceu logo na terceira música.
O maestro agradeceu aos presentes e fez o encerramento com a apresentação da música Asa Branca.
E agora, seguindo de volta para casa, ela se ocupava em buscar explicações para o ocorrido. Firmou o seu olhar no movimento intenso dos passantes, e para a sua surpresa o homem de roupa preta seguia quase ao seu lado e vez por outra olhava para trás. Um arrepio percorreu-lhe a coluna e ela seguiu adiante em busca de uma viela para proteger-se do desconhecido.
Fátima Rodrigues Expedicionários, João Pessoa, Paraíba, Brasil, 21/11/2020.