MARIA DE FATIMA FERREIRA RODRIGUES

MARIA DE FATIMA FERREIRA RODRIGUES

Sou um ser humano em constante construção. Me sinto parte da natureza e a ela vinculada no sentido material e imaterial. Gosto de lidar com as palavras construindo e desconstruindo castelos. Portanto, escrevo como um exercício de compreensão de mim e do mundo.

1957-12-21 Farias Brito - Ceará
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Alguns Poemas

Neuroses (conto)


Irene parou no portão e olhou para trás. Quis voltar para conferir se havia fechado bem a porta dos fundos. Achava que sim, todavia a sua intuição indicava ser necessário confirmar essa desconfiança. Esse era um gesto usual em sua rotina. Voltou e conferiu portas e janelas, foi ao banheiro, lavou as mãos e seguiu.
Sempre que ia sair uma perturbação vinha a sua mente e não a deixava prosseguir sem que esses atos se concretizassem. E mais! Ao voltar para conferir, qualquer que fosse o esquecimento, também ia ao banheiro e depois lavava as mãos...
Agora conseguiu sair! Ah! Que alívio !
Ficou pensativa sobre esses gestos costumeiros, mas prosseguiu. Já estava quase atrasada para o seu compromisso:  iria assistir a um concerto do Coral Todos Nós.
Dirigiu-se ao centro da cidade, entrou no teatro devagarinho, sentou-se e olhou para os lados em busca de conhecidos. Posicionou-se numa fileira em que tinha uma boa visão. Gostava muito daquele teatro: sua forma, sua acústica, suas cores.
Escolheu essa programação em busca de algo diferente, algo que a acalmasse, pois a noite anterior foi de insônia entremeada por pesadelos. Atribuía essa perturbação a um filme de terror que assistiu antes de dormir. Por conta daquelas cenas de execuções ficou a madrugada inteira em desassossego e amanheceu o dia exausta.
Na noite seguinte decidiu viver uma experiência diferente e ver algo bonito que a acalmasse, por isso é que estava ali.
No ponto extremo esquerdo do palco um senhor vestido de preto cruzou o olhar com o dela. Aquele jeito de olhar a constrangeu, manteve-se em alerta e a indagar-se:
- Por que ele  me olha tão incisivamente?
Enquanto pensava sobre isso dava-se início a apresentação cultural do coral Todos Nós, que é reconhecido pela qualidade da sua formação e repertório. O maestro regia com firmeza e atenção e as vozes do coral se alternavam entre os tons graves e agudos, entoando belas melodias. O repertório escolhido era impecável. O homem vestido de preto entrava e saía da coxia e dirigia-lhe um olhar penetrante. Ela sustentava o olhar, mas um arrepio a atravessava inteira. A peça do coral prosseguia, enquanto sentava ao seu lado uma senhora elegantemente vestida e bem maquiada, que a olhou de forma breve, cumprimentou-a e voltou-se para o palco. Conheciam-se de vista e a Irene supunha ser tal conhecimento vinculado às suas presenças nesse tipo de ambiente. Estando agora acompanhada pensou: ficarei livre do olhar invasor daquele assistente de palco. Ficou quieta observando-o, mas ao vê-lo com a atenção voltada para a coxia levantou-se e saiu. Atravessou todo o teatro pela lateral e adentrou a um outro vão bastante iluminado que dava acesso à rua. Sentiu o ar banhar-lhe o rosto, o que a deixou bastante relaxada. Olhou para o céu em busca da sua constelação preferida, mas nada viu: a poluição obscureceu o céu. Lembrou-se de quando deitava-se na calçada em sua casa, em Capim Dourado, e ficava contando as estrelas, coisa que se a sua mãe visse logo reprovava; segundo ela contar as estrelas no céu fazia nascer verrugas no corpo. Prosseguiu a caminhada, mas ao dar uns dez passos na calçada sentiu uma presença próxima e olhou para trás. O que a levou a constatar que o homem de preto, e de olhar penetrante caminhava olhando para o infinito. Era fim-de-ano e uma feirinha de natal composta de objetos artesanais ocupava os passantes. Ele parou numa barraca de enfeites natalinos e ela parou na barraca vizinha, queria demonstrar que não percebia o assédio dele; cruzaram os olhares e ela sentiu-se mais uma vez invadida. Aquele não era um olhar usual e ele continuava a segui-la.
Manteve-se calma. Viu que ele comprava algo e aproveitou para tentar escapar da sua presença. Saiu atravessando a multidão, entrou na Rua Direita, conhecida por seu intenso movimento, e desaguou numa rápida caminhada na praça São Bento. Já descia uma escadinha para dirigir-se ao Vale do Anhangabaú e prosseguir numa rua lateral que daria acesso à Travessa em que morava quando deu de frente com ele. Estava exausta de caminhar e sentou-se num banquinho que estava disponível ao lado de uma banca de jornal. Do outro lado da rua o homem vestido de preto comprava cigarros e olhava-a de esguelha.
Resolveu caminhar rápido. Embrenhou-se na multidão e dirigiu-se a passos rápidos para o Viaduto do Chá. O céu estava escuro anunciando chuvas. Pensou consigo mesma:
- Era só o que faltava!
Não andava com guarda-chuva. Começou a correr e o homem do teatro, que portava agora uma capa preta, ria-se e corria também. A Irene estava prestes a cair de cansaço. Foi então que uma música suave chegou aos seus ouvidos; abriu os olhos e ao sentir um incômodo na coluna aprumou-se na cadeira enquanto a dama sentada ao seu lado, no teatro, dirigiu-lhe um olhar de reprovação. O homem de preto continuava seus afazeres deslocando-se do palco à coxia, enquanto ela bocejava sem entender ao certo em que parte do espetáculo se encontrava, pois adormeceu logo na terceira música.
O maestro agradeceu aos presentes e fez o encerramento com a apresentação da música Asa Branca.
E agora, seguindo de volta para casa, ela se ocupava em buscar explicações para o ocorrido. Firmou o seu olhar no movimento intenso dos passantes, e para a sua surpresa o homem de roupa preta seguia quase ao seu lado e vez por outra olhava para trás. Um arrepio percorreu-lhe a coluna e ela seguiu adiante em busca de uma viela para proteger-se do desconhecido.

Fátima Rodrigues Expedicionários, João Pessoa, Paraíba, Brasil, 21/11/2020.

Aprendizados do amor


Aprendizados do amor 

Esquecer?
Talvez fosse bom esquecer tudo que foi ensinado, exceto o que foi aprendido lá na dor da ignorância. Lá  onde o aprender salva!
Ter apreço por aqueles aprendizados singelos, amalgamados na vida, como os  aprendizados de parteiras que, com voz suave e mãos ligeiras, abrem caminhos para um ser vir ao mundo.
Incorporar o saber amoroso da mãe, que combina ingredientes vários para saciar a fome de uma criança, que dela depende em sua função materna.
Falo do afeto que transborda pelas bordas do prato. Mas, sobretudo, dos afetos que transbordam no abraço e nas lágrimas que vêm do riso e da dor.
Cato palavras como cato feijão, ha dúvidas se as escolho correto.
 Escolho ? contém colho, e é bom saber que as palavras são plantadas e colhidas em mim.
Quem disse que pequi é melhor que cana-de-açúcar? 
Fiquei em dúvida! Gosto de ambos.
Chorei quando li sobre o calvário do Frei Caneca.
Talvez me compadeça em demasia de um passado que o Brasil não memoriza, pois em muitos dos humanos plantaram a pós verdade. E isso causa incômodo, e o dito no confronto não ecoa. Perde-se no vazio.
Carrego esse fardo!
Mas, também a musicalidade e a poesia.
Em conta-gotas  me vem à música e a poesia,
para depois essas artes me inundarem como as águas de Belo Monte fizeram com as terras indigenas. Embora com efeitos incomparáveis.
De forma absoluta, intermitente, esmagadora, fico plena de letras.
O Rio Cariús nem se fala! Tomo banho em suas águas diariamente, enquanto ele banha com amor as  vazantes que o entornam.
Quando acordo, rio dos sonhos bobos que  me atravessam e conto aqui para meia dúzia de leitores, cujos olhos cansados se entretem, mas ficam a indagar sobre a veracidade dos versos.
Queria conversar por outros canais com cada um desses leitores e, além disso. escutar os seus próprios versos.
Talvez lêssemos juntos os conselhos do Rilke, e caminhando à beira mar recitariamos 
"Vou-me embora pra Pasárgada". 

Fátima Rodrigues,  expedicionários, João Pessoa, Paraiba. BRASI, em 10 de abril de 2024.


Carta aos desafetos

Soube por terceiros que me vês de um jeito obtuso. Sobre isso nada tenho a dizer. O olhar é teu. Eu também tenho o meu sobre as pessoas e o mundo.
Sou um ser humano como tantos outros à deriva de olhares generosos, críticos e, por vezes, tolos assim como o teu.
Em mim não há qualquer esforço em parecer a ti nem a ninguém diferente do que sou. O teu jeito de me ver não tem qualquer importância, pois, em razão das nossas incompatibilidades, julgo melhor mantermos o distanciamento. Contudo te asseguro que ao tomar distância de pessoas inconvenientes o faço em respeito ao  que sou, e nesse gesto  existe um egoísmo que é guiado por uma espécie de intuição, que me sopra aos ouvidos, clamando por  precaução e paz.
A vida, como a entendo e aprecio, exige partilha. Desconheces esse valor.  Demanda também respeito, fraternidade e lealdade, e isso não faz parte do teu cabedal de valores.
Não consegues enxergar o essencial, no sentido posto por Saint-Exupéry. Esse atributo é invisível aos olhos das aves de rapina, visto que dirigem o olhar a um só objetivo, a sua satisfação imediata, e para isso guardam toda a sua acuidez visual e auditiva.
O essencial exige uma ausculta  ao coração. Sem ética não é possível ter essa sensibilidade para o essencial.
Sigamos nossas estradas. Elas nos levarão ao nosso próprio encontro, e a constatação do que somos, disso não há como fugirmos. Como bem disse Hamlet: "ser ou não ser, eis a questão".
Ficas com teu fardo que dos meus eu já me livrei.

Fátima Rodrigues
Em julho de 2014
Sou um ser humano em constante construção. Me sinto parte da natureza e a ela vinculada no sentido material e imaterial. Gosto de lidar com as palavras construindo e desconstruindo castelos. Portanto, escrevo como um exercício de compreensão de mim e do mundo. Além de escrever e ler gosto de cinema, de música e de praticar jardinagem. Sou mãe e essa é uma experiência de vida que me fascina e desafia permanentemente.
https://www.facebook.com/faatimarodrigues
faatimarodrigues@yahoo.com.br
Tatiane Viegas
Parabéns! É muito bonito.
30/dezembro/2020
Helder Roque
Gostei imenso.
16/dezembro/2020
Helder Roque
Belissimo poema.
12/dezembro/2020
-
lagazaz
Belos versos
27/julho/2020
-
jeiancoski
Achei muito lindo!
02/julho/2020

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