Raquel Nobre Guerra

Raquel Nobre Guerra
Formou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e tem mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou Groto Sato (Mariposa Azul, 2012). O livro recebeu em Portugal o Prêmio PEN para obras de estreia.
Nasceu a 1979 (Lisboa)
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Gosto de achar

Gosto de achar que sempre fui uma boa solitária.
Quando morrer colocada sob a luz mais favorável
dirão que me movi com a ira de um rei trocista.
Farão romarias ao Senhor Roubado para esmolar
o pouco que não tenha sido apontado.
Amigos que enterraram corpos amigos
um só amor capaz de morrer de tão antigo
um burro tombado de vícios e vaidades.

Os meus duzentos e seis ossos farão a desculpa
para doutoramentos sobre o Estádio, esse tabique,
que impedia o Letes de engolir o rasto dos dias.

Ao fim ao cabo não terá corrido mal
a tão alardeada beleza já nos estava prometida.

Sabes, tenho pouco para dizer a afinal.

Apreciar sobretudo não ter para onde ir
fazer do amor o passageiro frequente
cobrir cada vez mais a cabeça de camélias.

Merecerá mais a literatura que a minha vida?

Fiz a tropa toda no grande bluff da noite literária
contribuí para a mania da minha geração
sofro o meu próprio termo de orfandade e aceito
que a medida daquilo a que chamam realidade
seja um aparador de bibelôts com as pernas bambas
que sem querer um animal faz desandar.
Já pouco escrevo que convenha à javardice diária
escrevo a bebedeira das palavras escolhidas
porque nunca ninguém escreveu para se elevar
escreve-se para dar forma ao medo e abrandar-lhe o peso.

Acreditem, sou supersticiosa, penhorem-me a vida
tenho uma perninha no bem, outra no mal
e mijo no meio, é honesto pensar assim.

Quando me levarem levem-me inteira
mas antes deixem-me surfar a ressaca da última onda.