Após uma estadia nas alturas a expensas do mais puro pensamento que fez deter o dia a hora e o momento numa fuga da vida e dos ruídos e dos carros os quais que eu saiba só veneza repudia sem dores nem cuidados horas certas sem assuntos urgentes porque tudo se tornou esquecimento como renunciar agora a tanta luz e como pactuar com tão antiquíssimo poder como esse que às coisas lhes consente acontecer? Os plátanos disputam as últimas das folhas aos ventos e às chuvas de dezembro e como que se queixam do inverno Já apodrece o coração das árvores e essa raça cega mas sagaz dos simples dos seres condenados à mentira se socorrem da escuridão das águas para pensar a parte aos seus servos devida como se um ser cedesse a raciocínios quando está em questão a própria vida Não deixamos no chão o menor rasto as coisas que pensamos não dão resto e a destruição do nosso rosto é agora maior que no delírio do verão Já não nos surpreende o meio-dia o mar se o foi deixou de ser inofensivo um destino de ferro nos detém e são longos os dias longe de nós próprios Nem mesmo já se perde a infância imperiosa na forte frequência das perguntas sem resposta Até a lua esse incêndio de prata que antes era como astro fé agora é autêntica catástrofe Em nenhum muro branco alguma sombra é representação possível para o homem Nos próprios corações a tempestade se serve da cumplicidade da idade dos restos impalpáveis dum destino que não nos mata menos do que aos peixes no tanque descuidados a água das favas (tinha chovido lembro-me e assim chove agora quando peço à infância uma metáfora e a chuva é mais real que se chovesse) Tudo trabalha mas ocultamente e tudo é semelhante ao sobressalto Terrível tempestade de alegria que parcela do dia hoje em dia nos permite? A vida é uma república odiosa e até é monstruosa essa ponta do pensamento que deixa nos meus dedos só palavras e não dias Oculta cresce a erva do profundo sentimento E mesmo quando fora é domingo dentro de nós é dia de semana Que mundo é este mundo destes dias que mais nos mata do que atenas nos matou? El corte inglés em plena primavera segundo o comunicam todos os anúncios que vejo nas paredes hoje dia dois de março Vou entrar para ver posso ter lá o termo deste inverno que me invade Talvez eu recupere o que perdi e me veja de novo envolto em folhas como qualquer árvore anónima que vi
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 2, págs. 29 e 30 | Editorial Presença Lda., 1981