A abóbada da tarde mais uma vez acaba o sol de a fechar sobre a minha diária aventura Viram-no partir pontualmente à mesma hora quando num pouco de dia a um canto sempre a um canto já eu tinha conseguido arredondar uma íntima ampola de som para a palavra definitiva Ia mesmo soltá-la eu que todo o dia fui para ela quando ele me deixou e foi abrir outras portas erguer verticalmente caídas esperanças e passar novas mãos por tantas faces mortas Só me resta recolher o meu rebanho de pensamentos com um vago rumor de guizos enquanto à beira-mar os camponeses deixam palavras não aladas cair na água morta Morro irremediavelmente nesses pensamentos que ainda agora o sol iluminava enquanto eu os estendia e os recolhia e os orientava numa direcção que convinha e os precipitava sobre o fumo de uma casa sobre um buraco de luz ou uma coluna de fumo mais volúveis que um bando de pássaros Morro mais uma vez criticamente completo Todos os gestos carregados com vinte e quatro horas de história de ventre ferido na aventura do restolho petrificaram inevitavelmente na face orientada de uma estátua aqui ou noutro jardim Todo o caminho é de regresso Amanhã serei outro: lavarei os dentes com toda a solenidade como antigamente meu pai antes das grandes viagens enquanto alguém no espelho se encarregará de olhar pelos meus olhos Assim sou passado de dia em dia confiado pelo dia que parte ao dia que chega não venha o sino que ao longe toca perturbar as linhas de um rosto que recompus e pus de pé na atmosfera doméstica Fechar um postigo pode ser um gesto cheio de significado quando na arrumada paisagem quotidiana a expectativa marcada pela funda inspiração nos revela duas ou três mãos postas sobre a colina Amanhã serei outro
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, págs. 37 e 38 | Editorial Presença Lda., 1984