Nunca até hoje eu morrera tanto em alguém Caíste mais na minha orla do que a nespereira do quintal
Não secou para mim assim o paul de malmequeres onde os ralos iam repetir as noites e os abibes vinham de estações no bico O mesmo céu que tu me desdobraste sobre a infância acaba de depor na tua fronte o excessivo peso de uma estrela Com a tua partida a minha história começa a escrever-se para além da curva onde à tarde rompia a camioneta das cinco: nenhum outro veículo vinha tão cheio de longe e de tempo A natureza entrava pela noite dentro precedida no pátio pelos véus da sombra
Agora as tuas pálpebras desceram Não mais o teu olhar te defende Tu és um ser exposto a todos os olhares esgotado resumido e sem mistério Deixaste abertas todas as gavetas desordenada a secretária Já a tua presença não reúne as linhas divididas desse rosto que essas humildes coisas tinham para ti nem a tua sombra cobre domésticos e ínfimos segredos Tens finalmente aquele metro e oitenta a que te circunscreviam civilmente é essa até a tua última dimensão conhecida
Levarei mais longe a tua vida e cobrirei da tua morte um pouco mais de terra Haja sempre novos olhos abertos no muro do tempo e braços que transmitam o sol à volta da terra para lá do mar Já as primeiras chuvas perseguem os passos que cumpriste na praia Tudo nessa posição te dispõe para o dia da grande aceitação Estende-se sobre ti na sua superfície de mar o grande olhar de deus
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, págs. 42 e 43 | Editorial Presença Lda., 1984