Era uma vez talvez algum país de sinos de sons entreouvidos no passado constantemente renovado de quem morre cada dia e forra de manhãs o interior dos olhos pastor de escolhos vários entre os limos e os nimbos
Talvez ainda agora haja crianças ou venha no inverno saudar-nos o verão Talvez primeiros passos olhos limpos escolas jogos coisas novamente novas haja ainda Sob as pontes do Tibre a mesma água correrá talvez
Talvez na minha tarde tudo caiba ainda chuva no olhar ou ave núbil sobre a rubra Babilónia e suba no entulho a derrocada casa cedo percorrida ou nasçam nas regueiras pela primavera outra vez as rãs - ah! poder eu molhar os meus actuais pés pela primeira vez Caíram as maçãs onde nupcial algum rosto ondulava havia muita gente a proteger-me e não tinha talvez chovido ainda Talvez possa chorar à periferia a beira-mar da minha vida talvez seja cantar o último recurso
Talvez eu espere o mês possível entre abril e maio o calmo manto sobre a agitação dos homens a ilha - ó cisne, ó ilha branca de bondade - a hora-pérola o rosto inabordável mas familiar frequentes braços sobre penas e cansaços a voz não conhecida e afinal a prometida contida numa pedra branca e sempre nova apesar de sem cessar a mesma
Talvez além dos montes haja a única cidade a do inverno dos pinhais do vento dos novelos de vida além das evidentes oliveiras do fim definitivo de semana de cada um dos dias esmagados contra a mais aguda esquina das lágrimas das névoas ou do mar (afinal pouco mais neste país eu quis cantar: talvez nem mesmo o mar nem uns olhos ocasionais - todos aqueles por onde tu não vais nem jamais podes ir)
Talvez nos reste uma janela sobre a madrugada cingindo o rosto aos mais distantes gestos Acerquemo-nos mais: talvez possamos ser apenas um num corpo só uma infância comum Pela janela o sol e o comboio o sino e mesmo o cão - nenhuma outra voz que não a sua entre nós e a proibida aldeia e os áditos de Deus e o coração da suspirada tarde e o anónimo assobio perdido na azinhaga com cheiros e com vozes e com passos de crianças naquela inquietude que em si mesma se compraz
Como saber de mim? Eu - que diabo! - apesar de estrangeiro atrás da face pelo tempo atribuída e de enxertado em oliveira e zambujeiro talvez ainda tenha algumas tias Talvez eu reconquiste ainda a minha tão perdida aldeia e vá colhendo espargos ao longo do muro senhor de mim como quem sabe as horas certas e notando ingenuamente como por ser domingo as coisas que se vêem são diferentes É talvez esse o dia em que recolho os olhos e molho de maresia a mais vazia dor da minha ausência Como encontrar-me? É ver-me nesse ou noutro dia debaixo do olhar da mais jovem mulher que como um manto branco pelos dias se desdobra em Patmos nessa aldeia ou naquela inesquecível cidadela setenta vezes vista blasfemada e admirada sempre deserta e sempre povoada aonde vale a pena o pôr-do-sol e a palavra é mais que nunca provisória
Não temos o direito à alegria nem talvez ao próximo rumor do mar ditante Nas margens do Halis talvez habite ainda a esperança de que os deuses encham tudo o cheiro do jornal a tragédia da música na rua o coração fechado à primeira manhã as tardes de novembro a dor de folha em folha
Talvez o persistente trigo esconda um pouco da verdade Talvez seja de Deus o nosso tempo
E a alegria é uma casa demolida
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, págs. 77 a 79 | Editorial Presença Lda., 1984