Talvez eu espere simplesmente um amigo que de longe venha capaz de perseguir uma criança pelas ruas à infância reservadas alheio e silencioso e tão distante como alguma ideia
Alguém – mas quem? – caiu de bruços ante o santuário de insídias e ciladas vinha cego manso senhor dos templos à mercê dos lábios primeiro e derradeiro como Adão abolidor da humana deficiência de alma controlador dos mais subtis movimentos interiores firme como quem visse o invisível sol nascente do alto de olhar incendiado e rosto irresistível senhor indescritível da palavra capaz de destruir arrancar arruinar e assolar e levantar e plantar e edificar nos ombros manto de seus cuidados o outono na fronte o coração durante imensos dias as mãos erguidas como sacrifício à tarde os braços repetidos pelo tempo inumerável além do mar ou mesmo além do mundo Será o Alentejo e o que em seus campos vejo ou o resto de tudo, o que ninguém procura Mas nesse alguém – quem quer que seja – são reais o prazer da maçã mordida ocultamente a casa entreaberta nas veladas vestes da memória ou Trindade Coelho lido alguma vez à noite ou simplesmente antigos dias de oliveiras ou água sobre alguns recém-passados passos um sábado uma lua ou uma festa
E a palavra – o prometido e adiado coração – nos é já sem parábolas proposta lá onde sobre o vulto trigo insistentemente corre e um só nome oscila nas eleitas frontes num movimento lento como o vento e onde ainda vagamente é sábado e os homens perseveram nos antigos rigorosos rostos de encontro ao prometido amanhecer de Deus.
Outrora vinha Deus e nós dizíamos: ouve-se o mar Ou: há na vida ou no quintal a nosso lado crianças a brincar Agora nenhum gesto nesse alguém começa ou morre brilhos tristes ternos gatos mornos mortes males Já não há ruas para os vários e pequenos sofrimentos nem ali estamos temos filhos ou envelhecemos sofremos chuva ou frio a ocidente não mais somos injustos para com muito mais que os nossos pais nem a menor ausência nos magoa enormemente E tudo inalteravelmente soma e segue Mas vede-o entretanto vir da vida velho do regresso por muitos rostos gestos longes dispersado as inúmeras mãos caídas sem remédio ao lado comprometido o brilho do olhar em excesso
Grande era a história que trazia para contar Ele quis – oh! quantas vezes – transmiti-la aos outros mas poucos o ouviram começar retroceder recomeçar Passai-lhe no entanto o sono pela face e pelos membros dominicalmente originariamente como com mãos de mãe vesti-o longos dias meses anos de silêncio dai-lhe a beber vinagre atai-lhe os movimentos roubai-lhe pelas feridas o sonho e a saúde Ungi-o mais – oh! muito mais – humano do que nós que saberá levar bem mais do que uma enxada às costas e até determinar as qualidades físicas dos sons
Donde veio ele agora? Quem o tornou possível e estas nossas mãos abundantes em dias? Foi visto – dizem – na cidade ia sozinho preso a uma dor lavada como rua ao sol perdido e trespassado entre o número dos olhos levemente submerso nos mais altos rostos aonde a solidão é mais visível e a dor perfeitamente navegável a muitas milhas da foz
E há um grande coração em construção
Ruy Belo, “Todos os poemas”, págs. 107 a 109 | Círculo de Leitores, Dez 2000