Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
Jabuti
Nasceu a 31 Outubro 1902 (Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil)
Morreu em 17 Agosto 1987 (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)
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A Loja Feminina

Cinco estátuas recamadas de verde
na loja, pela manhã, aguardam o acontecimento.
É próprio de estátuas aguardar sem prazo e cansaço
que os fados se cumpram ou deixem de cumprir-se.
Nenhuma ruga no imobilismo
de figurinos talhados para o eterno,
que é, afinal, novelo de circunstâncias.

Iguais as cinco, em postura vertical,
um pé à frente do outro quase suspenso
na hipótese de voo, que não se consumará,
em direção da porta sonora
a ser aberta para alguém desconhecido
— Vênus certamente, face múltipla —
assomar em tom de pesquisa,
apontando o estofo, o brinco, o imponderável
que as estátuas ocultam em sigilo de espelhos.

Passaram a noite em vigília,
nasceram ali, habitantes de aquário,
programadas em uniformes verde-musgo
para o serviço de bagatelas imprescindíveis.

Sabem que Vênus, cedo ou tarde,
provavelmente tarde e sem pintura,
chegará.
Chega, e o simples vulto
aciona as esculturas.

Ao cintilar de vitrinas e escaninhos,
objetos deixam de ser inanimados.
Antes de chegar à pele rósea,
a pulseira cinge no ar o braço imaginário.
O enfeite ocioso ganha majestade
própria de divinos atributos.
Tudo que a nudez torna mais bela
acende faíscas no desejo.
As estátuas sabem disto e propiciam
a cada centímetro de carne
uma satisfação de luxo erótico.

O ritmo dos passos e das curvas
das cinco estátuas vendedoras
gera no salão aveludado
a sensação de arte natural
que o corpo sabe impor à contingência.
Já não se tem certeza se é comércio
ou desfile de ninfas na campina
que o spot vai matizando em signos verdes
como tapeçaria desdobrante
do verde coletivo das estátuas.

Hora de almoço.
Dissolve-se o balé sem música no recinto.
Não há mais compradoras. Hora de sol
batendo nos desenhos caprichosos
de manso aquário já marmorizado.
As estátuas regressam à postura
imóvel de cegonhas ou de guardas.
São talvez manequins, de moças que eram.
O viço humano perde-se no artifício
de coisas integrantes de uma loja.
Se estão vivas, não sei. Se acaso dormem
o dormir egípcio de séculos,
se morreram (quem sabe), se jamais
existiram, pulsaram, se moveram,
não consigo saber, pois também eu
invisível na loja me dissolvo
nesse enigma de formas permutantes.