Gerardo Mello Mourão

Gerardo Mello Mourão
Jabuti
Nasceu a 08 Janeiro 1917 (Ipueiras)
Morreu em 09 Março 2007 (Rio de Janeiro)
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Uma Honra, Perigosa Privilégio

Conta Serge Lifar que, ao receber um troféu de ouro, na Sagração da Primavera, Nijinski, Vaslav Fomitch Nijinski, o bailarino que dançava para dar glória a Deus e que escrevia no espaço a imagem efêmera e eterna de seus gestos e o sortilégio de seu corpo, recebeu a incubência de falar em nome dos demais agraciados. Ele, que não sabia fazer outra coisa, a não ser dançar, embaraçou-se, tropeçou, escorregou e caiu no palco. É o que temo que me aconteça aqui. Pois, além da emoção e da honra de receber pelas mãos fidalgas de Yolanda Queiroz, a Sereia de Ouro do Sistema Verdes Mares, nesta Sagração da Primavera de 1996, querem os ritos da cerimônia que eu fale também pelos outros contemplados. É uma honra. Um perigoso privilégio.
Como poderei expressar a graça e o encantamento de nossa grande Sinhá D’Amora? Ela é até minha prima distante — mas vamos nos aproximando. Pois, também eu pertenço ao clã daquela Dona Federalina Correia Lima. Sinhá D’Amora, hoje na adolescência pristina, de seus noventa anos, está no meu conhecimento e no meu bem-querer desde 1935 ou 36. Desde então, acostumei-me a encontrá-la no salão azul de minha doce e inesquecível amiga Julinha Galeno, que mantinha um verdadeiro Consulado do Ceará em sua bela casa de Ipanema. Guardo, daqueles tempos, a memória de sua leve estampa de mulher elegante e seus olhos sábios de ver as coisas e as pessoas, sempre ao lado da figura cavalheirisca e cordial de seu marido, Amora Maciel. Lembro-me de uma de suas primeiras exposições, creio que no salão mais conspícuo do Rio, no Palace Hotel. Seus pincéis, que já sugeriam um trânsito refinado entre o impressionismo francês e o expressionistas alemães, levaram depois suas cores e suas formas aos melhores espaços da Europa e dos Estados Unidos. O que ela recebe hoje é a gratidão do Ceará pelos momentos de beleza que nos traz. A mão e os olhos de um pintor, transfigurados em formas e cores, são sempre, como no verso de Keats, "a thing of beauty, a joy forever". Uma coisa de alegria, uma beleza para sempre. Por isso ela é hoje aqui agraciada, como na velha cantiga da infância, ao lado de três cavaleiros que a saúdam, todos três chapéu na mão.
Um deles é o meu velho amigo, o Dr. José Bonifácio da Silva Câmara, cheio de títulos e serviços na vida pública deste País. Mas o título maior, o que o traz a esta celebração, é o amor simultâneo pelo Ceará e pelos livros. Sou um velho rato de bibliotecas. As vivas e as mortas. Recebi, não faz muito tempo, um pequeno tratado de Umberto Eco sobre o corpo e a alma das bibliotecas. Com ele, percorri alguma delas. Como visitei, com Jorge Luis Borges, em seus delírios, no apartamento da Calle Maypu, em Buenos Aires, a Biblioteca de Babel e seu labirinto de livros, alguns em línguas que não existem mais. Como visitei, com Umberto Eco, as legendárias bibliotecas poligonais, de Nínive e de Samos, a de Pisístrato, em Atenas, e a de Alexandria que, com a de Serapion, tinha 700 mil volumes no século I. Vimos a de Pérgamo e a de Augusto e as 28 bibliotecas de Roma, do tempo de Constantino. E visitei, com minha mulher, as impressionantes bibliotecas de pedra na China e na Cochinchina, em Hanói e Xian, onde os livros são insculpidos na beleza rupestre das lâminas de granito. Mas a biblioteca que mais me comoveu, na verdade, foi aquela de mais de 6 mil volumes, na casa de José Bonifácio, todos eles escritos e editados no e sobre o Ceará. Como sabemos todos, a palavra biblioteca vem do grego — biblos — que quer dizer — livro — e — theke — que quer dizer — armário — e, pois, significa "armário de livros". A de José Bonifácio deveria se chamar "cardioteca" — é um armário do coração. Ou "pneumoteca". É um armário do coração e do espírito de nossa pátria cearense, de nosso País do Ceará. Naqueles livros e naquela biblioteca, faiscada em livrarias novas, em sebos de livros e nos empenhos de amigos, está assegurada a sobrevivência de cada um de nossos escritores. E a sobrevivência de nossas raízes.
Outro agraciado é o Dr. Luiz Esteves Neto. Sua vocação o transformou numa presença humana, exemplar e fecunda, na vida da sociedade cearense. Talvez não tenha nunca pintado quadros, como Sinhá D’Amora, nem guardado livros como José Bonifácio, nem escrito elegias, como este vosso cantador. Mas sem homens como ele nenhum de nós estaria aqui. Participante efetivo das atividades sociais, seu nome é um emblema da vida econômica e da vida associativa. Industrial, presidente da Federação das Indústrias do Estado do Ceará, sua representatividade o levou aos órgãos de direção da Confederação Nacional da Indústria, para onde levou a fibra e o vigor dos capitães de empresa de nossa terra. Seu nome figura na nominata egrégia dos clubes sociais e dos grupos de construção da riqueza e do desenvolvimento. Luiz Esteves Neto é para nós, aquilo que nosso filósofo maior, Farias Brito, chamava "a base física do espírito". Homem de formação universitária, ele poderia ter escolhido qualquer outro tipo de ocupação, nas áreas da inteligência. Escolheu esta, para dar à sociedade que pertencemos, horizontes melhores à esperança do desenvolvimento.
Quanto a mim, pobre cantador das Ipueiras, do pé-da-serra da Ibiapaba, aqui estou com único cabedal maior que mereservou a vida: — a riqueza de ser cearense. No país do sul, nas opulentas babilônias de São Paulo, com seus milhões de descendentes de primeira geração de imigrantes, algumas pessoas invocam a nobreza de suas origens, como na exclamação famosa de Alcântara Machado: — "Paulista eu sou, há quatrocentos anos".
Em nossa terra, aonde quase não chegou a vaga de imigrações da segunda metade do século passado e das primeiras décadas dos novecentos, todos nós, quase todos nós, podemos proclamar, como eu mesmo o faço: — "Cearense eu sou há quatrocentos anos". O que em outras terras é privilégio de uns poucos, aqui é patrimônio de todos. A este patrimônio, devo as vigências mais profundas que me nutriram ao longo da vida.
Teria eu de seis para sete anos, quando minha mãe, pobre professora primária do interior, me fazia decorar páginas inteiras do romance lírico de José de Alencar, cantando os verdes mares bravios e, ao mesmo tempo, um poema grandiloqüente, ufanista e saborosamente ingênuo, de nosso poeta popular, Juvenal Galeno, que ainda hoje sei de cor: "sou cearense e me ufano"...
Estas foram as primeiras plantas enraizadas no chão de minha alma. Depois, foram os cantadores de feira, especialmente o cantador Anselmo Vieira, das Ipueiras, catalogado por Leonardo Mota. Com eles aprendi o ritmo cantante das redondilhas maiores, dos decassílabos de gabinete e dos hendecassílabos sonoros, cantando galope na beira do mar. E aqui lembro — e rendo-lhe uma homenagem — um agraciado da Sereia de Ouro, desaparecido este ano, meu saudoso amigo Eleazar de Carvalho, o egrégio mestre-de-capela, que teve entre seus discípulos até mesmo o mais famoso maestro do mundo em nossos dias, Zumbin Mehta. Eleazar de Carvalho também me dizia um dia que toda a sua disciplina musical se edificara no metro escandido dos cantores de viola e de rabeca nas feiras do Ceará. Afinal, Homero também foi um cantador de lira nas feiras da Jônia.
Nos labirintos do saber e da cultura erudita, varando o oco do mundo, por Europas, Ásias, Áfricas e Américas, peregrino de todas as vicissitudes, talvez eu possa dizer como Keats: — acho que meu nome constará depois da minha morte entre os poetas de meu tempo". Se isto ocorrrer, à uma coisa eu o devo — à fidelidade obstinada à minha terra, aos seus valores primitivos.
Ainda recentemente o Presidente da República se queixava do caráter provinciano de nosso povo. Aprendi com meu saudoso amigo, o presidente Eduardo Frei, do Chile, uma linção fundamental: a distinção entre provincial e provinciano. Ser provinciano é uma coisa negativa. O provinciano é o homem sem perspectiva, que não conhece e não imagina nada além da pobre cerca de seu quintal. O resto do mundo não existe