Gerardo Mello Mourão

Gerardo Mello Mourão
Jabuti
Nasceu a 08 Janeiro 1917 (Ipueiras)
Morreu em 09 Março 2007 (Rio de Janeiro)
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Quem de vocês matou o uruguaio

"Quem de vocês matou o uruguaio?"
os soldados não sabiam
"Quero saber imediatamente quem matou o uruguaio" —
— "Saberá Vossa Senhoria que fui eu, Benedito Antônio da Silva, natural do Crato,
número 39 da 2.a Companhia do 12, praça de 1851, ferido na batalha de Caseros".
"E por que matou?"
— "Vossa Mercê, que é da raça dos Mourões, não há de ignorar que eu também
sou morador daqueles pés-de-serra e por isto matei o gringo; pois saiba
Vossa Mercê que estou sem matar desde a guerra do Rosas e o Senhor seu pai me
encomendou três dúzias. Tá completo".
Sob a pala da barretina agaloada
o General de rosto sereno e triste
sorriu sobre o pátio do quartel de Bastarrica
e mandou os soldados passearem tocando
charanga pelas ruas de Montevidéu.

O Marquês de Herval era galante:
Ordem do Dia sobre a batalha de Tuiuti:
— é de louvar o bizarro comportamento do General Sampaio, da raça dos Mourões —
o primeiro cavalo fora derrubado à bala, o segundo também e o terceiro e o quarto
varados à baioneta
combatia a pé
"Guarde seu cavalo, alferes, eu sou da Infantaria"
"Corra à barraca de Osório e diga que estou perdendo muito sangue, é conveniente
substituir-me, fui ferido duas vezes"
continência do Alferes, mão de súbito no peito:
"e esta é a terceira".

"Maté el general brasilero!"
ainda não — e o paraguaio engoliu com chumbo a última sílaba
na mão o sangue da última tapa de carícia sobre a cabeça de seu alazão
espedaçada à bala
quando outra bala decepa a folha da espada
"soldado, passe-me sua espada"
um olhar para o alferes fanfarrão:
tomara a bandeira do porta-estandarte e no meio do mar de sangue e fumaça gritava
"viva o General Sampaio!"
e nos braços dos guerreiros que rangiam os dentes e choravam
e banhado no sangue dos cavalos fortes como o seu
e banhado em seu sangue o sangue
da raça dos Mourões:
"não corte minha perna, doutor,
um general morto é bizarro ainda
um general coxo é feio".
E belo e triste em seu caixão de zinco
os guerreiros da Argentina e do Uruguai lhe hastearam em funeral as bandeiras do Prata
e sobre o chão do país de Godo, Raul e Efran
vou lavrando a escritura deste canto
e ali também é o país dos Mourões e nosso primo Martin Fierro e Osório,
Marquês de Herval, são testemunhas
Antônio de Sampaio, filho do ferreiro de Monte-Mor-o-Velho,
da estirpe de Francisco e Manuel,
da raça dos Mourões
era um general bizarro.

As exéquias na Corte custaram um conto e quatrocentos
o Maestro Arcângelo Fiorito regeu de graça o coro e a orquestra com
primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos, fagotes e oboés e trompas e pistons
e Sua Majestade o Imperador que lhe trouxera o corpo de Buenos Aires
ao meio-dia em ponto na Ilha do Bom Jesus entre os inválidos da Pátria
curva a cabeça em reverência
ao filho dos Mourões:
— "Só no Maranhão foram quarenta e seis combates por Vossa Majestade"
sua Divisão se chamava Encouraçada
bateu o paraguaio a ferro-frio nas sangas dos banhados
encouraçada à dureza de seu olhar a soldadesca
não conhecia o medo
aquele olhar endurecido
ao ódio dos Mourões — seu amor e seu ódio —
e ao seu vigor ergueram-se e deitaram-se
para a vida e para a morte
as coisas e os logares e as pessoas.

"Alferes, a morte é bizarra
guarde este botão de minha farda de lembrança
e cante na hora aquela moda que eu cantei no Tamboril à janela de Maria Veras.
Aquela moda..."

E ao meu canto e à moda antiga
que cantavam os machos à janela das fêmeas
no país dos Mourões
vou lavrando a escritura destas terras que são minhas
até além do Prata e além dos Andes
das Ibiturunas azuis
e um dia
no cartório de Ipueiras, Penedo ou Arapiraca
te farei a doação dessas léguas de sesmaria
do Passo de Camaragibe a Villaguay,
de Crateús, Ipu e São Gonçalo dos Mourões
até Buenos Aires e Santiago do Chile e Guayaquil e Bogotá
nos termos da doação de minha avó Dona Ana Feitosa a Santo Anastácio e
Dona Úrsula Mourão a São Gonçalo
e, te farei sobre essas braças de chão
um templo e uma cama de cedro sob o céu de Deus
à sombra dos plátanos e das carnaubeiras para onde
deitada no meu lombo vens chegando.