João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, vai de uma tendência surrealista até a poesia popular, porém caracterizada pelo rigor estético.

1920-01-09 Recife, Pernambuco, Brasil
1999-10-09 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Alguns Poemas

Meu Álcool

Marques Rabelo garantia
que bêbado era quem bebia
por se inventar duplo motivo:
sentir-se invivo ou sobrevivo.

Querer-se lúcido, acordar,
ser todo o agudo que nele há,
ser quando está de todo aceso,
tem o ser na ponta dos dedos.

Ou estar num ser tão extreme
que ser é insuportavelmente,
que ser é estar-se num incêndio
e sentir-se esse incêndio sendo.

Por isso, é que o bêbado bebe:
porque triste quer ser alegre,
e bebe porque chega a demais
a alegria de que ele é capaz.

2

Um pôde achar álcool melhor,
não tóxico, sem qualquer depois,
um álcool que não tem veneno
nem contém amanhãs de inferno.

Que, se é preciso, apaga o incêndio
e se é preciso, vem e acende-o;
um álcool que possui duas pontas,
que age a favor como age contra,

nem precisa que alguém lhe diga
quando dar mais ou menos vida
(como lâmpada do escritor russo,
põe o quarto aceso ou escuro).

Mais: que não se bebe, contempla;
é um álcool para a convivência,
álcool que dá a chama e o sopro
com tê-lo ao alcance do corpo.

3

Esse álcool não é de vender:
ninguém engarrafou um ser.
É álcool sem quandos, sem ondes,
de perto, ou pelo telefone.

Vê-lo e usá-lo foi de imediato:
depois de álcoois mais variados,
da familiar cana de cana
de suas várzeas pernambucanas,

viajou por outros tão diversos
(os de Appolinaire, o dos versos)
que até empregou como bebida
o fluido ambíguo de Sevilha.

E de nenhum deles renega:
nem das úlceras que eles legam
nem da intestina homorragia
em hospitais ao fio da vida.

3

Se a um novo álcool se entregou,
se o vê como álcool superior,
não foi por causa de conselho,
prescrição de médico, ou medo.

É que no novo álccol de agora
pode alcançar mais alta quota
de álcool na vida, e é mais contínua
a vida que acende, e seu clima:

um clima mais claro, e tão limpo
como toalha ou lençol de linho,
e ao mesmo tempo tão intenso
de um ser vivo vivendo pleno.

(E isso, só, com a convivência
de mulher, com a nua presença
de mulher, que como Sevilha
é interna-externa, é noitedia.)

Poema(s) da Cabra

Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.

1

A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.

2

Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.


É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.

3

O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

4

Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.

5

A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.

6

Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.

7

A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.

8

O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.

9

O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.

*

O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.
João Cabral de Melo Neto (Recife PE 1920 - Rio de Janeiro RJ 1999) publicou, em 1942, Pedra do Sono, seu primeiro livro de poesia. Em 1945 saiu O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios do rigor, da clareza e da objetividade, características pelas quais sua obra se tornou conhecida. Nesse mesmo ano entrou para a diplomacia, carreira a que se dedicaria nas décadas seguintes; serviu na Espanha, na Inglaterra, na França e no Senegal. Em 1950 publicou O Cão sem Plumas, em cujos versos manifesta preocupações sociais. Nos anos seguintes produziu várias obras poéticas, entre as quais Duas Águas (1956), Quaderna (1960), Morte e Vida Severina (1966) e A Educação pela Pedra (1967), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia de 1967. A peça Morte e Vida Severina foi musicada por Chico Buarque de Holanda, em 1966, e recebeu vários prêmios. É a obra mais conhecida de João Cabral, que escreveu ainda Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Poesia Crítica (1982) e Crime na Calle Relator (1987), entre outros livros de poesia. Sua Obra Completa foi publicada em 1994. Conhecido como “poeta-engenheiro”, João Cabral de Melo Neto costuma ser identificado, por critério cronológico, com a terceira geração do Modernismo; mas sua poesia, que incorpora as raízes populares da literatura de cordel, instaura um novo critério estético e figura como das mais singulares na Literatura Brasileira.
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Muito lindo esse poema maravilhoso dele está na m memória na história.
07/junho/2021
troll face
entendi nada
19/março/2021
Marta
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15/dezembro/2020
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Alguém saberia me dar um exemplo de verso de rimas consoantes e outro de rimas assoantes?
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