camila_duarte

camila_duarte

2003-01-10 Coimbra
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Alguns Poemas

Se eu lavrasse terrenos

Todos os dias eu penso,
E penso que repenso 
O já estar farta de pensar. 
Tanta terra batida 
Pronta a lavrar. 

Muito fácil é sonhar, 
Mas custa-me adormecer. 
Às vezes abraço a almofada, 
Viro-me vezes sem conta, 
Tiro a meia para roçar o pé no lençol, 
E tiro a mão para roçar o lençol no rosto. 
A Camila desfaz a cama 
E a cama desfaz a Camila. 
Tento dormir para descansar, 
Mas descansar cansa, e não durmo. 
Penso, e penso que repenso o já estar farta de pensar. 
Então sonho para me distrair…
Só que sonhar sem dormir 
É como ter fome sem comer:
Sentir com o pensamento 
E pensar tanto que nem se sente. 

Honestamente,
Estou dormente. 
Tanta terra batida
Pronta para lavrar. 

Fecho os olhos, 
E penso que lavro, 
Sonho que lavro.

Mas que maldição 
Ser isto tudo 
Da minha cabeça. 
Não há dia, hora ou minuto 
Em que o pensamento
Desapareça. 

Se eu lavrasse terrenos, 
Não havia tanta terra batida
Pronta para lavrar.
Seriam meus dias amenos, 
Seria calma a minha vida
Se parasse de pensar e sonhar.

Mas eu não lavro terrenos, 
Eu penso e sonho 
E penso que sonho 
E sonho que penso
E é tudo tão intenso
Que não há como parar, 
E cá continua a terra batida
Pronta para lavrar. 

Se tivesse terrenos lavrados,
Haveria terra para bater,
E se lavrasse terrenos
Pararia de escrever. 

Se eu lavrasse terrenos, 
Pensar ou sonhar 
Não era um problema.
Mas de que serve viver, 
Sem sonhar ou pensar, 
Se é a sonhar que vou pensar
E é a pensar que vou sonhar
Que acabo por me inspirar
Tornando em poema o dilema.

E termino o dia a respirar
Fundo, bem fundo, 
Muito fundo, 
Tão fundo…

Acendo uma vela, 
Giro o disco de vinil, 
Entrelaço os dedos, 
Repouso as mãos na barriga, 
As costas na cama, 
Os olhos no teto. 

Por instantes chamo Deus, 
Deste mundo arquiteto, 
Que me vem fechar os olhos serenos
E aguarda que lhe pergunte:

E se eu lavrasse terrenos?

Ser Nada

Os raios de luz irrompem pela janela,
Invadindo-me o quarto:
Beijando as minhas pálpebras, 
Saudando-me o rosto,
Aviso de que começa novo dia…
Misto de perfume de outono.

Estore acima,
Escadas abaixo. 
Escorregando pelos degraus,
Chama-me o burburinho da avenida. 
Sigo sempre em frente, ao fundo virar à esquerda, 
Peço o croissant fresco e caminho para o miradouro.

Sento-me no mesmo banco todos os dias,
Pego na mesma caneta, nova folha de papel.
Receio ter que a juntar à resma de folhas na secretária,
Que, embora usadas, permanecem em branco.

Trazer uma folha nova todos os dias serve-me de consolo, 
Mesmo não tendo nada para escrever nelas.
Chegam em branco, partem em branco, com leves vincos ou manchas de desespero.

Já não escrevia há muito… 
Pensava em ser poeta, pensava em escrever poemas. 

A chuva começa a cair. 
Ecoa o som das gotas que embatem nas folhas das árvores. 
Há um vento confortável e desconcertante, que me provoca arrepios e me abraça na solidão. 
Acaricia-me a água o rosto, lavando-me o espírito de confusão. 
Ao fundo, névoa encobre a serra. Vejo agora nada mais, nada menos, que a minha existência confrontada com o nada. 
Vem até mim uma onda de nostalgia e, por instantes, o silêncio instala-se. 

O meu corpo quis a cama, as minhas pálpebras quiseram os beijos do sol, o meu nariz quis o perfume de outono, os meus ouvidos quiseram o burburinho da avenida, a minha boca quis outro croissant e a minha alma quis que começasse outro dia:
Queria outra folha de papel. 

Ali estava, diante de mim, eu própria.

Finalmente, levava uma folha preenchida para casa.
Encharcada, em branco, amassada. Contudo, é o testemunho daquilo que vi hoje. Vazio. 

De volta a casa,
Escadas acima, 
Estore abaixo,
Repousei no chão molhado o meu peso.
Olhar fixo no teto, feixes de luz atravessando a água presa nas pestanas, lâmpada acabada de fundir. Vi poesia. 

A poesia está no todo, e os poetas são a parte do todo
Que põe o todo no papel.

Ser poeta.
Ser poesia.
Ser nada. 

Cosmos

Será que antes de romper a aurora, 
O sol pede à lua para não ir embora? 

E quando as estrelas rasgam o céu, 
Será que a lua ao sol agradeceu? 

Bom dia ou boa noite, 
Dizemos nós às pessoas com quem nos deitamos na cama, 
Ao vizinho que nos segura a porta, 
À empregada do café onde tomamos o pequeno almoço, 
Nos emails burocráticos onde o nosso próprio nome soa a protocolo e não a identidade. 

Sorte a nossa. 
Debaixo dos raios de sol, sorrimos num piquenique à beira rio. 
Vemos quem lança as pedras mais longe, ou qual pedra salta mais, talvez raspando tangente a uma careca sexagenária qualquer. 
O sol brilha, o sorriso irradia, a pele resplandece. O mundo aquece. Bom dia. 

Sorte a nossa. 
Um tom de azul escuro quase preto, guardião de constelações sobre a nossa cabeça. O que vês? Ursa menor? Maior? 
Dentro do carro, rádio ligado e batatas fritas, queixamo-nos de como os candeeiros da cidade tiram o brilho às estrelas. 
A noite emerge, as mãos tocam-se, a pele arrepiada estremece. O mundo arrefece. Boa noite. 

Azar o deles. Sol e lua. Que nos veem, dia após dia, observar o romper da aurora ou as estrelas a rasgar o céu. 
Para nós, bom dia e boa noite são o ponto de partida.
Para eles, o ponto de chegada. 

Sol e lua, que movimentam o cosmos,
nunca se tocam,
nunca se detêm num diálogo que perdure além de meros instantes,
nunca se conhecem senão no breve cruzar natural de essências.
Nada mais que bom dia e boa noite. Condenados à solidão. 


Sol: boa noite, lua *desaparece*

Lua: bom dia, sol *desaparece*
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tsunamidesaudade63
Ola Camila adoro a tua poesia contínua é com imenso prazer que leio a tua poesia, bjos
01/março/2021
thaisftnl
Belas poesias, amei!
02/setembro/2020
-
devoto
se eu fosse poeta poeticamente lhe adotaria
17/fevereiro/2020
fatimar_7
A sua poesia será certamente intemporal.
31/janeiro/2020
fatimar_7
Adoro ler CD. Continue. Parabéns.
29/janeiro/2020
fatimar_7
Luzes de Natal ... aquele lugar na mesa em vão ...
29/janeiro/2020
fatimar_7
Adorei todas.
29/janeiro/2020
-
sergios
Belíssima construção! Adorei todas as quadras!
24/janeiro/2020

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