O único estilo para a morte

                                    “colinas tão próximas como se guardassem
                                     os nossos próprios olhos e logo depois
                                     leva-as o vento para adjectivos longínquos”
                                     Herberto Helder

Uma nova manhã de Março, ainda que cedo
para ler-te, mas talvez já muito tarde para retornar
à cerejeira que me inebria os sonhos cegos.
                            *
Ler-te, deixar de ler-te, ler-te ou não ler-te
não é decisão humana que se exija à fala ou verso,
à quase paixão “travada em carne da língua”.
                            *
E ainda que o gorjeio do mundo já seja ensurdecedor,
está tão próximo de mim que é nele que resfolgo,
há o momento, não o corpo, o dia e as suas margens.
                            *
É Março, a manhã propaga-se como um vulcão,
e o meu corpo, canhoto, jaz adiado como a primavera
na tua ausência, aguarda o espasmo da cerejeira.
                            *
Ler-te, deixar de ler-te (ontem morreu-me o vizinho
do 3º andar), “não é o mesmo que meter a cabeça
num buraco abissínio”: em rigor, tudo está fora de mim.
                            *
As vozes erguem-se ferozes e indistintas, o céu chora
em dilúvio alagando a língua, o poema morre,
“morrer por uma rosa é que fia mais fino:” ergo-me
                            *
e cuspo-te, o único estilo para a morte vertiginosa e crua!
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