aleomar_fbi

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Mora em Brasília-DF. Gosta de escrever crônicas.

1971-11-23 Nascido em Olho d’Água PB
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Alguns Poemas

AS DUAS FACES DA INTERNET


AS DUAS FACES DA INTERNET
Falarei sobre a história de dois mundos que se chocaram. Cada qual com sua visão das coisas diferente da do outro. Dois mundos que se convergiram por meio de uma tecnologia avassaladora chamada Internet. Essa é a história de Pedro e seu filho Thiago.
Enquanto Pedro, aos vinte e dois anos, viu a internet surgir, a internet, aos vinte, viu Thiago nascer. Enquanto Pedro aprendia a usar a internet, esta aprendia a usar Thiago. Ao passo que Pedro tentava descobrir as vulnerabilidades da internet, ela buscava explorar as fraquezas de Thiago.
Pedro, até então, estava limitado aos programas de TV, jornais, revistas e às fofocas que rolavam na vizinhança. Não imaginava que estaria por vir um canal que possibilitaria a ele ter o mundo em suas mãos dentro de sua própria casa. Mas aquilo o assustava, pois não tinha mãos grandes o suficiente para carregar o mundo. Tudo era muito novo e deveria ser usado com cautela.
Thiago nascera em um mundo aberto e não conheceu as linhas do limite nem o confinamento das regras.
Pedro viu que aquele novo mundo podia lhe trazer inúmeros benefícios se o agregasse às faltas que o mundo velho carregava, mas, também, conseguia enxergar o perigo que poderia representar se viesse a utilizá-lo de maneira errada e imprudente.
Thiago só conseguia ver uma coisa: sua vida só seria possível se estivesse ligado à internet. Tudo tinha que vir dela ou ir para ela: Facebook, Twit, Instagran, Snapchat, entre outras mil coisas que ele não poderia deixar de visitar. Sua vida não tinha mais um dono, todos participavam dela. A solução para todos os problemas era encontrada sempre de forma fácil e rápida na internet. Não precisava pedir conselhos aos seus pais sobre nada. Para a formação do seu carácter, eles eram inúteis.
Pedro conseguiu ganhar prestígio em seu trabalho usando os recursos que a internet disponibilizava. Procurou aprender a fundo o máximo que podia sobre esse fenômeno tão poderoso. Desenvolveu sites para grandes empresas e instituições, e, com isso, ganhou muito dinheiro. Ele conseguia distinguir o que era bom do que era nocivo na internet. Por isso, se limitou, tão somente, ao que acrescentaria alguma coisa de bom em sua vida e na vida dos outros.
Porém, a tempo, Thiago se sentiu curioso em saber como era o mundo na época em que seu pai ainda era jovem. E numa conversa que tiveram, pôde fazer muitas perguntas e tirou várias dúvidas, muitas delas nem sabia que tinha. Após essa conversa, Thiago descobriu que, mesmo sendo bastante jovem, deixou de viver muitos anos de sua vida só se dedicando à internet. Então, Pedro e Thiago passaram a trabalhar juntos em um projeto só deles. Mas como se estivessem manuseando explosivos, com muita cautela e responsabilidade, fizeram da internet o seu passaporte para um mundo melhor.
Aleomar Tolentino

ATO SUJO, ALMA LIMPA


ATO SUJO, ALMA LIMPA
Da janela do seu escritório, no vigésimo quinto andar de um luxuoso edifício, Dr. Edson Fattori, empresário do ramo petrolífero, vê a chuva bastante intensa cair sobre uma cidade que ele considera ter em suas mãos, enquanto aguarda os participantes de uma reunião que está prestes a começar.

Lá embaixo, dos buracos de sua lona, dona Francisca das Chagas Medeiros, moradora de rua, vê os carros passarem, carregando seus donos e suas histórias, enquanto aguarda o fim da chuva para voltar a pedir.

Carros luxuosos entram na garagem do edifício e, deles, saem pessoas bem vestidas e com maletas intrigantes, os quais sobem, para o alívio da espera do Dr. Fattori. Como se ele precisasse, seus colegas de reunião lhe trazem presentes tal como dotes de um casamento muçulmano: vinhos caros, um relógio suíço, uma gravata italiana e até uma joia para sua esposa. Depois de tanta pompa, eles vão logo ao que interessa: as malas são abertas e o jogo é apresentado. Membros do governo trouxeram as malas vazias para que voltassem com elas carregadas de dinheiro que alimentaria um grande esquema de corrupção. A empresa do Dr. Fattori ganharia algumas concessões milionárias e, em contrapartida, cederia um pequeno percentual para a campanha eleitoral de alguns candidatos na eleição daquele ano.

Dona Francisca recebe a graça da companhia de outro andarilho que lhe pede abrigo em troca de alguns dos pães que carregava. É motivo de festa, pois ela e seu netinho de seis anos já não sabiam se iriam comer novamente caso a chuva não passasse.
Para comemorarem, Dr. Fattori e seus comparsas abrem alguns champanhes e se servem a sorrisos largos como se o mundo todo estivesse feliz naquele momento.

Ao final, aqueles homens, que parecem boa gente, voltam para os seus carros e, na volta, passam pela pista cuja barraca de dona Francisca margeia. Dona Francisca insiste em olhar pelos buracos, ao que um dos carros não desvia da poça de lama e “fuzila” seus olhos com água suja. Mas aquilo se torna motivo de risadas por parte dela e do seu novo amigo com o qual saboreia uma bela janta repleta de quase nada. A felicidade do seu netinho, com um pão inteiro só pra si, o qual se torna enorme naquelas mãozinhas tão pequenas, faz dona Francisca ficar grata por tanta sorte que tivera naquela noite.

A chuva passa e o dia chega. Dr. Fattori teve uma noite de sono muito agradável, e, numa espécie de agradecimento a sabe-se lá quem, passa em uma padaria, depois pede ao motorista que pare o carro em frente à barraca de dona Francisca. Desce do carro e vai ao encontro dela carregando algo em sua mão esquerda. Olha para ela e diz:

- Toma! É para senhora e para o garoto.
Sai de lá aliviado e achando que se todos fossem bonzinhos como ele o mundo seria bem melhor.

Dona Francisca abre o embrulho e, com uma cara de quem deixou de ser invisível, fala para o seu netinho:

- Come o pão e deixa a mortadela pra mim.
Aleomar Tolentino

Deus no banco dos réus (Parte I)

Vamos! Acorda gigante! Já estamos atrasados. 

Disse Filipe, se incluindo na culpabilidade do atraso. 

- Ah não pai, me deixa faltar hoje? Eu tô cansado e com muito sono ainda. 

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Na tarde anterior, Lipe, como era chamado pelos mais próximos, e Jorge, seu filho de oito anos, haviam saído para visitar um lugar muito especial. Era lá que seu pai costumava ir quando criança. Naquele lugar, havia um labirinto feito de manilhas, aquelas usadas em construção de dutos para águas pluviais, mas que a comunidade do bairro onde morava, por ser muito pobre, pedira ao prefeito que aproveitasse as que sobrassem para construir algo com que as crianças de lá pudessem brincar. Atendendo ao pedido dos moradores, o prefeito comprou quatro caminhões de areia branca, despejou-a em um terreno que ficava à esquerda da rua da lama e teve a genial ideia de pintá-las, dispondo-as de forma que aquilo se assemelhasse a um grande labirinto. Foi uma enorme festa para a meninada, que, de imediato, já foi logo inventando seus jogos e suas regras no novo mundo que, naquele momento, era a mais nova atração de Largo do Oeste. 

Foi lá que Filipe passou toda a sua doce infância, sendo criado por sua mãe, dona Esmerina, tia Meri, como era chamada pelos amiguinhos de Lipe. Ela era uma senhora amável que fazia cocadas e as vendia em frente ao correio da cidade, bem pertinho do grupo escolar onde Filipe estudava. Tinha dias que tia Meri mais dava do que vendia, pois os coleguinhas de Filipe, ao saírem da escola, iam sempre lá para fazerem companhia ao amigo, sem nenhum aparente interesse extra, porém as fitadas que davam para o tabuleiro dos doces roubavam de tia Meri um sorriso discreto que tentava esconder quão capaz ela era de captar suas santas intenções, fingindo ser ingênua o bastante para não as notar. O coração de dona Esmerina não conseguia se conter ao ver a felicidade de Filipe em se sentir o dono da turma, o mais amigão, a companhia mais disputada. Assim, já sabendo a resposta, sempre perguntava aos meninos se eles não queriam uma cocadinha para enganar a fome até chegar a hora do almoço. 

Enquanto comiam, a mãe de Filipe observava os meninos saborearem a cocada, engolindo o caldo formado pelo doce e a saliva. Eles deixavam sobrar somente os pedaços de coco ralado, os quais levavam na boca até chegarem às suas casas. Ao fim, cada um buscava encontrar uma desculpa mais esfarrapada que a outra e dava um jeito de ir embora, até restarem somente dona Esmerina e Filipe.

Enquanto o dia duro de Filipe estava só começando, tia Meri já estava de pé desde as quatro da manhã: hora em que ela dá início a todo o processo de produção das suas deliciosas cocadas.

Embora preferisse ir para casa para poder brincar com os amiguinhos, das mais variadas brincadeiras (pega-pega, garrafão, pique-esconde, banho de rio, roda pião, bandeirinha, carrinho de rolimã, carniça, entre outras mil brincadeiras), Filipe sabia que era mais importante ajudar sua mãe, pois ela havia lhe ensinado que de onde se tira o sustento não se arreda um só momento. Ademais, Filipe sempre dava um jeitinho de brincar no restinho de horas que sobrava ao chegar, entre o deitar do Sol e a hora da janta. Sem contar que ele passava todo o final de semana se esbaldando em brincadeiras com a molecada de Largo do Oeste.

Mesmo não sendo uma mulher de posses, dona Esmerina era muito querida por toda a comunidade. Ela sempre era procurada pelos moradores daquele lugar quando precisavam de um chá ou raizadas para alguma enfermidade a que tivessem sido acometidos: de bicho-de-pé a picada de cobra. Até como parteira dona Esmerina já tinha servido na cidade. Ela também tinha todo o tipo de planta medicinal no seu terreiro, já que sua humilde casa ficava no final da cidade, afastada um quarto de légua da última casa, nos limites de Largo do Oeste.

Na verdade, a casa onde moravam Filipe e dona Esmerina ficava no pé de um morro chamado Morro do Menino Velho. Esse nome foi dado por conta de uma lenda que o povo mais antigo contava, a qual dizia que, há muito tempo, antes mesmo de Largo do Oeste se tornar um povoado, naquele morro, um menino foi abandonado ainda muito pequeno pelos seus tios malvados que tiveram que ficar com ele após os pais serem assassinados em uma incursão de cangaceiros nos idos dos anos de mil novecentos e dez. Dizia a lenda que o menino conseguiu se criar sozinho naquele morro se alimentando de mel e raízes de tubérculos, e, mesmo depois de velho, as pessoas ainda o viam gritando lá de cima, todas as sextas-feiras, às oito horas da noite, pedindo pra que viessem resgatá-lo. Diziam que sua voz nunca mudava e eu suas vestes sempre foram as mesmas desde o dia em que ele foi deixado lá.

Não diferente das outras cidades pequenas, Largo do Oeste também tem suas histórias e estórias nas quais uns acreditam piamente e outros se dizem céticos. O fato é que muitos dos moleques que brincavam com Filipe não tinham coragem de ir até sua casa se já estivesse escuro. Mais uma razão para eles o admirarem, já que Filipe não tinha nenhum medo daquele lugar

Foram aquelas cocadas e, de vez em quando, umas lavadas de roupas que ajudaram dona Esmerina a levar Lipe ao patamar que hoje atingiu: de grande e renomado advogado que ainda não havia perdido uma só causa no escritório do qual faz parte. Mas isso é outra história...

Filipe se mudou para a capital, onde cursou direito, pagando as despesas da faculdade com o dinheiro que ganhava como ajudante geral em um escritório de contabilidade. O local mais parecia um cinzeiro de cassino do que um ambiente de trabalho, devido ao cheiro da fumaça que seu patrão soprava em cada tragada nos mais de sessenta cigarros que fumava por dia. Filipe fazia questão de contar cada um que era aceso. 

Foi nessa época que ele conheceu Angélica, uma estudante de Engenharia, com a qual se encontrava nas poucas horas de almoço, mas já era o suficiente para que, dali, nascesse uma grande paixão com reciprocidade. 

Após alguns anos, Angélica, já engenheira e trabalhando para uma empresa multinacional, e Filipe, também atuando em sua área de formação, se casaram e mudaram para um apartamento na área nobre da capital. 

Ainda em fase de mudança, Filipe planejava trazer sua mãe para morar perto deles e conhecer o seu novo lar, o qual a deixaria muito orgulhosa, tendo em vista a vida que levaram em Largo do Oeste. Porém, antes mesmo que desembalassem metade das coisas que traziam na mudança, Filipe recebe uma ligação que o fizera sentir como se lhe tirassem a fala e as forças, ao que Angélica, percebendo que algo terrível havia acontecido, tomou de suas mãos a caixa que carregava e o conduziu até um dos sofás da sala principal. 

Poucas horas antes, sua mãe tivera um infarto fulminante enquanto carregava uns cocos que comprara no mercado de Largo do Oeste. Toinho, um de seus amigos de infância que ainda morava por lá, continuava do outro lado da linha quando Angélica assumiu a conversa. Ele disse que estava cuidando de tudo, mas que o velório já estava marcado para a manhã do dia seguinte e que esperaria seu amigo na rodoviária da cidade. Angélica agradeceu e disse não precisar, pois eles iriam de carro direto para o cemitério. 

Durante a viagem de, aproximadamente, seis horas, Filipe revezava seus pensamentos entre culpas e lamentações, carregando consigo doces lembranças de sua infância. 

Nem mesmo um mês havia se passado, e Angélica descobre que estava grávida. Filipe, ao saber da notícia, confunde suas emoções entre o luto e a euforia de saber que seria pai. Afinal, ele carregava consigo uma parte de dona Esmerina: o amor que ela o ensinou a amar. 

Quando a criança nasceu, por ser um menino, Filipe pediu a Angélica que o chamassem de Jorge, em homenagem ao seu pai que tanto amou Dona Esmerina, mas Deus o levou de um jeito trágico e muito cedo: morrera afogado aos quarenta e quatro anos, enquanto nadava com uns amigos no Açude das Trombetas, uma represa que o governo estadual fizera para abastecer aquela região da qual fazia parte Largo do Oeste. 

O tempo foi passando e Jorge já estava com oito anos, quando sua mãe teve que passar uma temporada de seis meses em Bangladesh para assumir um grande projeto de construção que a empresa para a qual trabalhava foi vencedora do contrato licitado por aquele Governo. 

Filipe, sozinho, teve que se virar para conciliar entre o trabalho e a vida de pai. Mas isso ele sabia fazer bem, pois tinha dona Esmerina dentro de si. Foi então que ele descobriu de verdade o que era amar. Ele era capaz de largar uma audiência à metade se Jorge estivesse precisando dele. Todo dia, não via a hora de acabar o expediente para buscar Jorge na escola e começar, de verdade, o momento ao lado do seu gigante. Era como o chamava carinhosamente. 

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Continua...

A VIAGEM


A VIAGEM
Hoje, precisei fazer uma viagem muito longa. Viajei para o interior do meu ser pra visitar algumas pessoas que lá vivem e outras que ainda nem conhecia. Assim que cheguei, deparei alguém que, embora se chamasse Tristeza, de forma antagônica, tinha, estampada em seu rosto, uma alegria de causar inveja, pois foi a ela quem mais procurei nos últimos anos. Logo à frente, avistei outra pessoa, de rosto erguido, bem vestida e confiante. Então lhe perguntei seu nome ao que me disse sem titubear: “Como podes não lembrar de mim? Arrogância é meu nome”.
Não tão longe dessa, vi outra, que era muito gorda, quase a se explodir, a qual tomava bastante espaço no estreito caminho e, antes que eu perguntasse, foi logo me dizendo: “A mim já conheces bem. Meu nome é Impaciência.”. Mais alguns passos, e vejo alguém toda maquiada e vestida em uma bela roupa, mas algo era estranho: tinha terra sob as unhas, e os dentes alvos deixavam precipitar as facetas expondo seu amarelo natural. Então, sem que olhasse direto nos meus olhos, respondeu-me ao ser indagada: “Meu nome é Mentira, lembras?”.
A partir daí, enfrentei um longo trecho de estradas difíceis. Subi morros, atravessei vastas colinas, mas notei que a pouca luz que irradiava ia ficando cada vez mais intensa. Enfim consegui enxergar alguém ao longe que, desesperada, acenava pra mim. Ao me aproximar, disse que estava a me esperar havia algum tempo, pois achava que eu já não iria mais procurá-la. E com um sorriso amedrontado, temendo não me agradar, me disse: “Olá! Sou a Humildade. Quanto tempo...!”. Mais ao alto, quase inalcançável, encontrei uma que estava encolhida, semideitada, cansada de me esperar. Essa já não falava mais e pra se identificar escreveu no pó que cobria o chão: ”Meu nome é Empatia.”.
Notei, então, que quanto mais longe eu ia, mais difícil ficava o caminho e menos familiar me eram as pessoas que encontrava.
Chegando ao fim da viagem, um senhor que estava à porteira, de pés rachados e beiços estalados me indicou um caminho mais curto pra voltar. Disse que se eu fechasse os olhos para o que é feio na estrada e olhasse somente aonde ela pode me levar, eu jamais teria que ir tão longe pra atingir o que está bem perto. Que se eu me abaixasse de vez em quando pra ouvir aqueles que penso estarem abaixo de mim, talvez encontrasse respostas para as perguntas que carrego sozinho lá em cima. Disse que se eu usar sempre a verdade como fundamento para os meus anseios, obterei resultados reais e mais duradouros pra minha vida. Disse, ainda, que quando eu achar que não careço mais daquilo que os outros carecem, não terei de novo a deliciosa sensação do atingir, a menos que eu supra a necessidade de alguém que ainda nada tem. Então me despedi e perguntei: “E a ti, como te chamam? De onde vens?”. Ele então me respondeu com um sorriso que me fez sentir como o tolo que procura, desesperado, o chapéu que sombreia a própria cabeça: “A mim, só me chamam Mestre e estive aqui o tempo todo. Nunca me vias porque estiveste sempre lá em cima do pico que nunca existiu, do pedestal que criaste para ti próprio.”.
Então, envergonhado, voltei.
Aleomar Tolentino

A VIAGEM 2


O CEGO QUE RECUSOU A VISÃO
Ainda envergonhado, tentei lembrar-me daquelas pessoas com as quais me encontrei na última viagem e passei a observar a estrada que me conduz a tudo o que faço no meu dia-a-dia.
Acordei logo cedo, arrumei-me, beijei as crianças que ainda dormiam e fui para o trabalho.
Ao chegar, não notei grandes diferenças. Nem em mim, nem ao redor. Como sempre, na entrada principal do hospital, o vigilante abriu a portinha pra mim. Entrei e fui direto pra minha sala. Lá, pensei: hoje será diferente. Vou olhar tudo o que me rodeia e não deixar que escape uma só oportunidade para agir diferente. Coitado... até ali, já escapara ao menos uma.
À medida em que as pessoas me procuravam, eu já ia logo abrindo um sorriso e me dispondo a ajudá-las. Confesso que até gostei do jeito que elas me agradeciam depois. Já estava me sentindo melhor.
De vez em quando, uma agonia me tirava o sossego, então saía pra pitar meu cigarro de palha, o qual carregava em uma caixinha que tinha na estampa o desenho de um senhor usando aquele chapéu gasto e com um bigode modesto: um perfeito caipira mineiro. Aliviado, então, voltava à minha sala passando sempre pela mesma portinha da entrada principal.
O dia parecia circundar pelas mesmas coisas, até que chegou ao fim. Cheguei em casa mais animado, afinal consegui trabalhar a paciência, a tolerância e a simpatia. Mas, aí, estalou em minha mente aquilo que deixei escapar: notei que meus olhos, naquele dia, só conseguiram enxergar as pessoas que a mim buscavam. Vi que passei por diversas vezes por aquela portinha da qual já falei, que sempre alguém a abria mesmo sendo tão simples puxar o ferrolho pra entrar e devolvê-lo pro seu lugar ao sair. Não notava nem mesmo se era mulher ou homem que ali estava, só sabia que a porta era aberta toda vez que precisava, como se houvesse uma espécie de sensor que detectava minha presença e vontade de passar. Então, uma forte emoção, como aquela de quem encontra a resposta que buscara há tanto tempo para um problema que o afligia, tomou conta de mim. Eu sempre ouvi as pessoas me dizerem que devo ver Deus em tudo, até mesmo nas folhas que se despregam de suas árvores, porém nunca consegui, embora quisesse tanto. Mas dessa vez, pude ver onde Ele estava.
Achando que eu era a pessoa que faria o mundo ficar diferente para os outros com as novas atitudes adotadas, não percebi aquelas pessoas que faziam por mim as coisas mais simples, porém as que me davam acesso a tudo que era importante: os vigilantes que abriam a portinha.
Vi que Deus estava na figura daquele que abria a porta pra mim, mesmo sabendo que eu poderia usar minhas próprias mãos. Vi que o ar passava por minhas vias aéreas sem necessitar de que aparelhos o fizessem por mim. Notei que eu caminhava sozinho, sem perceber que não precisava utilizar de nenhum artefato pra isso. Era tudo tão automático que eu não conseguia enxergar o processo envolvido em cada movimento involuntário que meu corpo fazia. Pra eu respirar, Deus abria a portinha pra mim. Pra eu andar, Deus de novo abria a portinha pra mim. Até mesmo pra ir ao banheiro, Deus abria aquela portinha pra mim. Porém, assim como com o vigilante do hospital, eu nunca o notava nem lhe agradecia e, muitas/quase todas as vezes, não o cumprimentava. Mesmo assim, ele sempre abria a portinha pra mim. Fui tão arrogante com Ele que, se fosse de sua vontade, deixava que eu respirasse através de aparelho; que eu me locomovesse utilizando de muletas, bengala ou cadeira de rodas; que se eu quisesse falar, utilizasse as mãos pra dizer palavras mudas de som. Ainda assim, Ele sempre abriu a portinha pra mim. Obrigado, meu eterno Vigilante!
Aleomar Tolentino
Mora em Brasília-DF. Gosta de escrever crônicas. Atualmente está trabalhando em uma obra a qual relata o drama de um advogado bem sucedido que, após duas trágicas perdas, e, diante de uma iminente terceira, se revolta por não poder usar do seu maior dom - sua habilidade com as palavras - para levar Deus ao banco dos réus e ter a chance de provar que Ele é, além do criador, um criminoso, segundo sua visão humana. Sua vontade desenfreada é atendida por Deus de uma maneira que não será revelada agora, mas ao final do julgamento, ele percebe o quanto a sabedoria divina supera a humana.
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evelinbast
Quando estamos sozinhos e desconectamos nossa mente desse mundo, ela viaja para vários lugares. Os pensamemtos podem nos sufocar e trazer dor ou podem nos dar prazer e alegria, podem nos levar a várias dimensões dentro de nós mesmos. Quando não guarda somente para si seus pensamentos e partilha com o mundo, podemos ler sua alma e encontrar uma conexão, identificação e compreensão de que somos todos um só.
11/dezembro/2018
Evelin
Texto muito sábio, faz a gente refletir sobre as escolhas e caminhos que tomamos na vida e sobre nós mesmos.
11/dezembro/2018
Lia
Uauuuu! Sucesso! Tem um filme com esse título é muito interessante. Traz a lenda de que prisioneiros judeus em Auschwitz fizeram um julgamento no qual Deus é o réu e o seu crime é de não ter mantido o seu pacto com eles.
05/junho/2018

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