Deus no banco dos réus (Parte I)
Vamos! Acorda gigante! Já estamos atrasados.
Disse Filipe, se incluindo na culpabilidade do atraso.
- Ah não pai, me deixa faltar hoje? Eu tô cansado e com muito sono ainda.
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Na tarde anterior, Lipe, como era chamado pelos mais próximos, e Jorge, seu filho de oito anos, haviam saído para visitar um lugar muito especial. Era lá que seu pai costumava ir quando criança. Naquele lugar, havia um labirinto feito de manilhas, aquelas usadas em construção de dutos para águas pluviais, mas que a comunidade do bairro onde morava, por ser muito pobre, pedira ao prefeito que aproveitasse as que sobrassem para construir algo com que as crianças de lá pudessem brincar. Atendendo ao pedido dos moradores, o prefeito comprou quatro caminhões de areia branca, despejou-a em um terreno que ficava à esquerda da rua da lama e teve a genial ideia de pintá-las, dispondo-as de forma que aquilo se assemelhasse a um grande labirinto. Foi uma enorme festa para a meninada, que, de imediato, já foi logo inventando seus jogos e suas regras no novo mundo que, naquele momento, era a mais nova atração de Largo do Oeste.
Foi lá que Filipe passou toda a sua doce infância, sendo criado por sua mãe, dona Esmerina, tia Meri, como era chamada pelos amiguinhos de Lipe. Ela era uma senhora amável que fazia cocadas e as vendia em frente ao correio da cidade, bem pertinho do grupo escolar onde Filipe estudava. Tinha dias que tia Meri mais dava do que vendia, pois os coleguinhas de Filipe, ao saírem da escola, iam sempre lá para fazerem companhia ao amigo, sem nenhum aparente interesse extra, porém as fitadas que davam para o tabuleiro dos doces roubavam de tia Meri um sorriso discreto que tentava esconder quão capaz ela era de captar suas santas intenções, fingindo ser ingênua o bastante para não as notar. O coração de dona Esmerina não conseguia se conter ao ver a felicidade de Filipe em se sentir o dono da turma, o mais amigão, a companhia mais disputada. Assim, já sabendo a resposta, sempre perguntava aos meninos se eles não queriam uma cocadinha para enganar a fome até chegar a hora do almoço.
Enquanto comiam, a mãe de Filipe observava os meninos saborearem a cocada, engolindo o caldo formado pelo doce e a saliva. Eles deixavam sobrar somente os pedaços de coco ralado, os quais levavam na boca até chegarem às suas casas. Ao fim, cada um buscava encontrar uma desculpa mais esfarrapada que a outra e dava um jeito de ir embora, até restarem somente dona Esmerina e Filipe.
Enquanto o dia duro de Filipe estava só começando, tia Meri já estava de pé desde as quatro da manhã: hora em que ela dá início a todo o processo de produção das suas deliciosas cocadas.
Embora preferisse ir para casa para poder brincar com os amiguinhos, das mais variadas brincadeiras (pega-pega, garrafão, pique-esconde, banho de rio, roda pião, bandeirinha, carrinho de rolimã, carniça, entre outras mil brincadeiras), Filipe sabia que era mais importante ajudar sua mãe, pois ela havia lhe ensinado que de onde se tira o sustento não se arreda um só momento. Ademais, Filipe sempre dava um jeitinho de brincar no restinho de horas que sobrava ao chegar, entre o deitar do Sol e a hora da janta. Sem contar que ele passava todo o final de semana se esbaldando em brincadeiras com a molecada de Largo do Oeste.
Mesmo não sendo uma mulher de posses, dona Esmerina era muito querida por toda a comunidade. Ela sempre era procurada pelos moradores daquele lugar quando precisavam de um chá ou raizadas para alguma enfermidade a que tivessem sido acometidos: de bicho-de-pé a picada de cobra. Até como parteira dona Esmerina já tinha servido na cidade. Ela também tinha todo o tipo de planta medicinal no seu terreiro, já que sua humilde casa ficava no final da cidade, afastada um quarto de légua da última casa, nos limites de Largo do Oeste.
Na verdade, a casa onde moravam Filipe e dona Esmerina ficava no pé de um morro chamado Morro do Menino Velho. Esse nome foi dado por conta de uma lenda que o povo mais antigo contava, a qual dizia que, há muito tempo, antes mesmo de Largo do Oeste se tornar um povoado, naquele morro, um menino foi abandonado ainda muito pequeno pelos seus tios malvados que tiveram que ficar com ele após os pais serem assassinados em uma incursão de cangaceiros nos idos dos anos de mil novecentos e dez. Dizia a lenda que o menino conseguiu se criar sozinho naquele morro se alimentando de mel e raízes de tubérculos, e, mesmo depois de velho, as pessoas ainda o viam gritando lá de cima, todas as sextas-feiras, às oito horas da noite, pedindo pra que viessem resgatá-lo. Diziam que sua voz nunca mudava e eu suas vestes sempre foram as mesmas desde o dia em que ele foi deixado lá.
Não diferente das outras cidades pequenas, Largo do Oeste também tem suas histórias e estórias nas quais uns acreditam piamente e outros se dizem céticos. O fato é que muitos dos moleques que brincavam com Filipe não tinham coragem de ir até sua casa se já estivesse escuro. Mais uma razão para eles o admirarem, já que Filipe não tinha nenhum medo daquele lugar
Foram aquelas cocadas e, de vez em quando, umas lavadas de roupas que ajudaram dona Esmerina a levar Lipe ao patamar que hoje atingiu: de grande e renomado advogado que ainda não havia perdido uma só causa no escritório do qual faz parte. Mas isso é outra história...
Filipe se mudou para a capital, onde cursou direito, pagando as despesas da faculdade com o dinheiro que ganhava como ajudante geral em um escritório de contabilidade. O local mais parecia um cinzeiro de cassino do que um ambiente de trabalho, devido ao cheiro da fumaça que seu patrão soprava em cada tragada nos mais de sessenta cigarros que fumava por dia. Filipe fazia questão de contar cada um que era aceso.
Foi nessa época que ele conheceu Angélica, uma estudante de Engenharia, com a qual se encontrava nas poucas horas de almoço, mas já era o suficiente para que, dali, nascesse uma grande paixão com reciprocidade.
Após alguns anos, Angélica, já engenheira e trabalhando para uma empresa multinacional, e Filipe, também atuando em sua área de formação, se casaram e mudaram para um apartamento na área nobre da capital.
Ainda em fase de mudança, Filipe planejava trazer sua mãe para morar perto deles e conhecer o seu novo lar, o qual a deixaria muito orgulhosa, tendo em vista a vida que levaram em Largo do Oeste. Porém, antes mesmo que desembalassem metade das coisas que traziam na mudança, Filipe recebe uma ligação que o fizera sentir como se lhe tirassem a fala e as forças, ao que Angélica, percebendo que algo terrível havia acontecido, tomou de suas mãos a caixa que carregava e o conduziu até um dos sofás da sala principal.
Poucas horas antes, sua mãe tivera um infarto fulminante enquanto carregava uns cocos que comprara no mercado de Largo do Oeste. Toinho, um de seus amigos de infância que ainda morava por lá, continuava do outro lado da linha quando Angélica assumiu a conversa. Ele disse que estava cuidando de tudo, mas que o velório já estava marcado para a manhã do dia seguinte e que esperaria seu amigo na rodoviária da cidade. Angélica agradeceu e disse não precisar, pois eles iriam de carro direto para o cemitério.
Durante a viagem de, aproximadamente, seis horas, Filipe revezava seus pensamentos entre culpas e lamentações, carregando consigo doces lembranças de sua infância.
Nem mesmo um mês havia se passado, e Angélica descobre que estava grávida. Filipe, ao saber da notícia, confunde suas emoções entre o luto e a euforia de saber que seria pai. Afinal, ele carregava consigo uma parte de dona Esmerina: o amor que ela o ensinou a amar.
Quando a criança nasceu, por ser um menino, Filipe pediu a Angélica que o chamassem de Jorge, em homenagem ao seu pai que tanto amou Dona Esmerina, mas Deus o levou de um jeito trágico e muito cedo: morrera afogado aos quarenta e quatro anos, enquanto nadava com uns amigos no Açude das Trombetas, uma represa que o governo estadual fizera para abastecer aquela região da qual fazia parte Largo do Oeste.
O tempo foi passando e Jorge já estava com oito anos, quando sua mãe teve que passar uma temporada de seis meses em Bangladesh para assumir um grande projeto de construção que a empresa para a qual trabalhava foi vencedora do contrato licitado por aquele Governo.
Filipe, sozinho, teve que se virar para conciliar entre o trabalho e a vida de pai. Mas isso ele sabia fazer bem, pois tinha dona Esmerina dentro de si. Foi então que ele descobriu de verdade o que era amar. Ele era capaz de largar uma audiência à metade se Jorge estivesse precisando dele. Todo dia, não via a hora de acabar o expediente para buscar Jorge na escola e começar, de verdade, o momento ao lado do seu gigante. Era como o chamava carinhosamente.
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Continua...