Alguns Poemas

A CORUJA

O que queres de mim a essa altura da madrugada a chirriar triste em minha janela como mau agouro do meu destino, bicho que desaparece ao dia e voltas a atormentar nas noites sombrias como esta.

Levantei-me assustado e combalido de uma noite mal dormida e o som da coruja carregado de mistérios denunciava um presságio da minha desgraça e mais uma vez me despertou ao lado da minha janela.

Entre copos e garrafas de mais uma noite tormentosa, nos grilhões dos pensamentos que me prendiam e me torturavam, cambaleante fui até a cama e adormeci um pouco. O cheiro de Alice ainda estava lá, permeava o quarto e dilacerava minha alma como uma flecha impiedosa.

Ela se foi... despareceu com fome, fraca e adoecida. Certamente, a falta de recursos em um casebre parco e quase tombando dever ser o motivo desse abandono.

Procurei por todos, procurei com todos, gritei em desespero, jurei que aceitava tudo, menos perdê-la; mas o meu brado foi em vão.

Ela se foi talvez cansada, talvez sem rumo, talvez esvaída de esperanças de uma vida melhor.

Meu choro alto e meu lamento não escutais, oh Alice, apenas a maldita coruja a bradar em um tilintar de sinos nas madrugadas frias, quando levanto, ainda cambaleante, ainda atordoado, entorpecido, talvez de álcool, talvez do amor, do seu amor, Alice, que partiu sem avisar. Donde estás que não me escutais?

Meu choro não escutais, somente a coruja, a maldita coruja, com seu canto de morte, a mim quer falar. E agora, após estas sombrias madrugadas, em que o mal vem me visitar, eu posso ouvir a coruja a dizer, após a janela se abrir: “ela ainda está aqui!”

Há noites que se vão, em silêncio sepulcral, nesse infame casebre e meu tormento ainda insiste em resistir, mas nada dói mais do que as madrugadas em que, em minha janela, a súcia coruja volta a repetir: “ela ainda está aqui!”

Ouço isso com clareza, vasculho o casebre, o quintal, embaixo da mesa, oh maldita coruja, por que me provocais, me pões em delírio, Alice partiu e levou o meu brilho.

Certa madrugada ainda mais fria, novamente assaltado pelos pensamentos tormentosos de reencontrar Alice, abri a janela e esperei pelo maldito animal, era nessa noite que daria cabo da maldita coruja e de seu som a repetir: “ela ainda está aqui!”

Esperei ao lado da minha janela, onde ela costumava pousar, mas nessa noite ela não apareceu, mas juro pelo infinito, do fundo do coração, ao deitar-me novamente escutei uma sequência de um canto, distante e infernal, que não consegui fugir, era de longe, a coruja: “ela ainda está aqui!”

Em outra noite, que se fez madrugada fria, apossei-me da garrucha que em minha mão trazia, procurei por todo lado, nem um canto, nem um som. Recostado em um canto da árvore do quintal, adormeci preocupado, naquele silêncio absurdo, já parecia um trapo, desta vida moribundo, não havia encontrado nada, nem a ave mais feia do mundo.

De repente, de sobressalto o canto retornou, tinindo os meus ouvidos e de mim se apossou, mirei firme pra coruja para nela dar um fim, pois não mais suportava do canto dela ouvir: “ela ainda está aqui!”

Ela voou de repente e pro meio da mata fechada perseguida, me levou. Avistei uma casinha branca, toda coberta de flor, havia vasos na mesa, comida e cobertor; mas parecia não ter dono, ninguém mais estava ali, era essa a morada que eu sonhava com Alice de um dia dividir, mas parece que a coruja reinava sozinha, ali.

Apossei-me do local, sonhando que Alice poderia retornar, para sempre a felicidade haveria nesse lar.

 A coruja pôs-se agora em meus ombros a sentar e em um canto que me prendia ali, de novo veio a bradar: “ela ainda está aqui”.

Por não poder ver Alice e saber que não estava ali, cheio de ódio, cólera e rancor, do bicho quis me vingar, disparei certeiramente e vi a ave desabar.

No chão com o peito dilacerado, mexeu o bico o animal, mas num piscar de olhos ela se transformou, uma mulher vestida de branco em sangue a mim retornou, era Alice, meu único e eterno amor; meus olhos piscaram forte, pela coruja a procurar, mas era no chão Alice que eu via agonizar.

Depois da atrocidade, pensei num instante de sobriedade, por todo esse tempo era ela e não percebi? Num último suspiro de Alice a mim a sorrir.... então, falou como a coruja: “Eu ainda estou aqui”.

 
*Inspirado no conto “O Corvo” de Edgard Alan Poe.

O NECROTÉRIO

Não espero que acreditem nos relatos que adiante contarei, pois minhas próprias percepções se negam em aceitá-los.

José Trindade era um homem magro, de estatura mediana. Deveria ter uns sessenta anos.

Ele usava um tênis conga azul de jeans “cansado” e uma camisa “ustop” de dois bolsos com um maço de cigarro Arizona, cujas pontas do tabaco eram exibidas em um dos bolsos.

Trindade era vigia do supermercado Montreal na Cidade de Cárpoles ao norte do Estado do Paraná.

Até não sei por qual razão, contratavam um homem magrelo e fraco, que fumava mais que um motor de opala 1969 (e tinha apenas um cassetete na cintura), para ser vigia de supermercado das sete da noite às seis horas da manhã do dia seguinte.

Houvesse um conflito, certamente os ladrões, (normalmente armados), levariam a melhor.

Mas parece que o senhor Trindade era homem de respeito naquele lugar e já fazia mais de doze anos que vigiava o estabelecimento, sem nenhuma intercorrência.

E foi em uma noite dessas, mais precisamente em uma madrugada, que ele começou a ouvir barulhos, vindo do necrotério, que distava aproximadamente cem metros do supermercado e logo abaixo, mais uns cem metros era a “cidade da última morada”.

Os proprietários do Mercado nunca tiveram problemas com a clientela por causa disso, pois o mercado funcionava durante o dia e por essa razão, ninguém se preocupava com sua localização, pelo fato de estar próximo ao cemitério.

Mas naquela noite, Trindade ficou perturbado. Afinal, nesses doze anos, ele jamais teria ouvido aquele som peculiar.

Era um tipo de “voz” aguda e velha com uma certa rouquidão de tom feminino (com um tipo de presbifonia intensa) misturada a um crocitar de um corvo.

Ao mesmo tempo que a voz emitia aquele som peculiar, ouvia-se uma batida forte de latão dentro do necrotério.

Trindade, homem velho, vivido e sofrido, passara de tudo na vida e não tinha medo de nada.       Só não enfrentara o diabo, porque o bicho ainda não havia cruzado seu caminho.

Mas, mesmo assim, naquela madrugada fria do mês de agosto, ele ficou impressionado, já que em todos esses anos, era a primeira vez que ouvia aquele tipo de coisa. Aquele som perturbador misturava-se ao canto agourento das corujas e ao barulho de grilos e tudo era escuro e absolutamente sombrio.

Ele acendeu seu lampião de querosene que sempre levava consigo (lá pelas duas ou três horas da manhã) e se dirigiu ao necrotério. As batidas no latão eram mais intensas e aumentavam significativamente quanto mais ele se aproximava.

Trindade clareou a parte de trás do necrotério e naquele dia não havia corpos, não havia cadáveres, guardados ali.

Ele conseguiu destravar uma das janelas e clareou forte o “farolim” de querosene.

Era uma criatura horrenda, um tipo de corpo inteiramente liso, que parecia ter estado em decomposição e retornado agora. Mas andava de mãos e pés nos chãos como se, de quatro patas, igual a um cachorro. Os olhos eram negros e brilhantes.

O velho Trindade ficou branco e balançado e sentiu um forte arrependimento por não ter comprado um 38 do compadre Atanásio quando teve oportunidade, pois assim, teria estourado os miolos (se é que havia) daquela coisa horripilante.

Mas, aquele espírito deformado e com aparência extraterrestre emitiu uma voz rouca, trêmula e assustadora que o vigia conseguiu ouvir. O grito disse em um tilintar medonho:

“Sepultura 21”.

José Trindade, correu mais do que podia e desceu, pulando o muro do cemitério, adentrou à ala direita em direção ao jazigo 21 e ouviu vozes de desespero e socorro.

Ele “voou” de volta para as proximidades do mercado e apanhando as ferramentas, novamente desceu em direção à sepultura 21 e com cuidado removeu o concreto ainda mole.

Seu horror aumentou ainda mais quando uma moça morena de vestido vermelho, correntes, anéis e brincos de ouro pelo corpo, saiu correndo ofegante e em desespero, aos gritos insanos que ele não mais conseguia definir.

Ele recordou que, naquele mesmo dia, havia falecido a filha do maior fazendeiro de Cárpoles.

Ao subir de volta, José Trindade estava abatido, assustado e confuso.

Ele iria arrombar a porta do necrotério e entrar, quando o corpo médico do hospital de Cárpoles trazia mais um corpo para ficar ali até o velório do dia seguinte.

Tremendo forte e sem entender nada, ele apenas ouviu quando o coveiro do cemitério chegou ao necrotério e confirmou aos médicos:

“Ela será enterrada amanhã, na sepultura 21, seus pais já deixaram tudo certo”.

Era a moça morena de vestido vermelho, correntes, anéis e brincos de ouro pelo corpo, exatamente a mesma da sepultura 21 que ele teria avistado e que agora, era trazida para “repousar” no necrotério até seu velório e sepultamento, no dia seguinte.

José Trindade voltou à sepultura e havia apenas um buraco aberto, preparado para sepultamento.

Ele partiu de Cárpoles no início daquela manhã cinzenta, sem que nunca mais ninguém tivesse qualquer notícia dele.

 

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