J L Silva

J L Silva

1959-08-23 Florianópolis
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Alguns Poemas

Noite



Ó, noite,

que levas do dia para o mar?

Levo a luz que calcina,

as cores das flores,

das folhagens,

as cores que esplendem

no horizonte nos finais

das tardes sobre os lagos

levo a tocaia da tua saudade

e o lume dos teus sonhos

levo as tuas horas cativas

e o grito ao qual te inclinas



Ó, noite, de promessas e de

silêncios

de ausências e de contemplação

repousa teus olhos negros

no sono dos meus olhos crassos

e canta a cantiga de acalanto

que o vento murmura

ao passar pelos rochedos

onde entre as frestas brotavam

flores que a tua mão encobria

e onde ouve-se o augúrio do

gorjeio da ave noturna,

segredos, seres encantados

acalantos que a chuva traz



Agora que atravessas o mundo

carregando em teus cabelos

as cores do dia e os instantes

com os quais vivo a ilusão

de um tempo fragmentado

e com o qual transcrevo o

passado no presente,

criando o engano de um futuro

Agora, acende os espelhos onde

a vida se reflete cortando a

escuridão rumo às latentes

luzes que tecem as auroras



Ó, noite, teu fascínio se

imiscui aos crepúsculos dos

fins de tarde, sombra cinza,

amalgamando-se às cores

do dia e a elas se sobrepondo

estendendo o manto negro

para que as estrelas iluminem

as lembranças por onde me

procuro no absoluto tão cheio

de presságios e afetos,

vem e traz contigo

os hieróglifos indeléveis

da poesia, o mel de uns versos

colhidos à noite singular e terna

e que pulsam no instante milenar

onde a idéia une-se à forma

onde o murmúrio dos anjos

confortam os náufragos da noite

quando em seus braços dormem

os teus olhos de infância

e o nosso primeiro amor

Depois da chuva

Depois da chuva a tarde se fez dourada

O sol debruando em vermelhos o vento que passa

E canta

Canta a canção

E entoa os versos candentes da ausência

Suspeitando do sentido da vida pouca

Da pouca vida

Dos parcos passos miúdos e urgentes

Cantam os pássaros outras razões

São melodia e compasso da tarde que se farta

De cores e sons e incandescentes vermelhos

A tarde flana na quietude dos jardins

E na presciência das flores nos jardins

Está tudo tão quieto...

Tudo tão longe

Este silêncio sem voz

Estes segredos agonizantes no ar

Esta pele perfumando a vida em volta

Esta esfinge que me inquiri incansavelmente

Estes caminhos remotos

Onde já não me sei

Quando já não me sou

Fecho meus olhos cansados de não ver

E sinto o ar difuso no labirinto das perguntas sem respostas

Respostas que não há ou, se houver,

São grades e colunas a sustentarem

As prisões erguidas sobre os campos de crenças e ilusões

Nada existe independente da sombra e da luz

Tudo é sonho e engano fora do Amor

Mara é o sonho vígil

De onde só há uma porta para a fuga

Arde no horizonte o sol poente e o enigma de todos os dias

Minhas mãos fugidiças

E úmidas da mais plena solidão

Selam os lábios à memória dos olhos negros

Que desde cedo me fitam

Que desde sempre me têm

Olhos que o amor primeiro pôs no barquinho de papel

Rumo à ilha que emerge nos pingos da chuva

Rumo às sombras abandonadas de uma vida pouca

Sentimentos poucos

Muitos medos

A ilusão que baste

Mas há a renitente expressão do amor

Ou do que fizeram dele

Há a indelével sombra do mar

A sombra do mar é o que as palavras não são

Sinto saudades do cheiro do mar

Da maresia

O intangível mar desenhando agonias na areia

Ouço o mar esbatendo os vermelhos da tarde

Ouço aqui, sozinho, a canção da tarde calma

A tarde é o momento cravado no vazio de um tempo ignoto

É pouca para o destino que os dias roubam ao eco dos caminhos

E é pouca a tarde para tanto amor

É pouca a tarde para o carinho

É pouca a tarde

Vaga e alheia

Escondida entre palavras distantes e dissimuladas

Encoberta pelo véu da indiferença

Onde o que eu sou é quase nada

Não fosse esta rosa branca no jardim

(Que só existe e floresce dentro de mim)

Preciso





Preciso

Espargir a flor

com a água da concha das mãos

Cantar a canção

Entender a folha branca da ilusão

Restituir ao poema

a verdade com a qual te amei

Esperar no precário minuto

o penhor de outra noite

outra manhã

Acordar a manhã

e mergulhar meus dedos em teus cabelos

Acordar os anjos e o menino do retrato

Beber do orvalho

o alivio para a sede eterna



Preciso

Apagar o desespero

dos passos presos na areia,

presos nos espelhos

dos sonhos ante o meu rosto

Expressar o suspiro

o sussurro ermo e terno

a saudade sozinha

Pressentir da existência o segredo

Ter um motivo para ouvir o verso

se agora ando desperto

e o verso é sonho sílfide em meio ao mar

Calar a voz da mentira

Tecer a delicada liberdade



Preciso

Esperar a carta

(que já não se usa mais)

que cheirava a cravos rubros

amarelas rosas

que trazia teu aroma espanhol

e, por acaso,

um fio do teu cabelo

desejo e ânsia que o dia trazia

como essência nas tardes

que eram só nossas



Preciso

De um amigo

(e quem não precisa?)

que possa escrever a carta

que ainda espero

Um amigo que saiba da consumação

inelutável do existir

e do silêncio que pode haver

nas palavras

e do encanto que pode haver

nas palavras

e das palavras

que podem haver nas palavras

fios da urdidura da serena

humana alma

Um amigo que fale de nostalgias

e que tenha brincado em ruas de terra

na infância

com seu pião batatinha

com sua bolinha de gude matadeira

Um amigo que colha estrelas

nas noites pintadas à mão

Que leia a poesia

e não reprima a lágrima

ou o riso sem explicação

Um amigo que saiba do meu sonho

e saiba do encanto que os sonhos têm

e do devir que os move

Um sonho que engane as noites

que o próprio sonho desfaz,

ah! amor, tão frágil é o passado

tão lindo o vento na acácia

e nos cabelos das meninas



Preciso

Dos dias vagabundos

Das ruas de terra

Das enxurradas

Das flores primordiais

Da voz negra da noite

Dos teus olhos,

prenuncio das noites

envolvendo o mundo



Preciso

Do sono em teu colo

Da inocência nos teus braços

Da meiguice nos teus olhos

Da nudez casta

e ofegante nos teus beijos



Preciso

Perder a hora

e a compostura

Bater à porta da lua

Perder os sentidos

Mudar-me

de vez para a infância,

para aquela rua Maria

Incendiar a palavra

que me define neste instante

Escolher a mão esquiva

e o gesto que dorme

entre as nossas mãos



Peciso

Continuar

apesar do meu medo

Acostumar

meus olhos à escuridão

Fingir

que não sei da guerra

Chorar

a dor soterrada do homem

Suprimir

em todos os corações a indiferença

Aprender

um novo idioma

Dormir

o pranto e esta melancolia

Colocar o passado em seu lugar

Ver crescer o outono

e as folhas que caem longe

do engano das horas,

longe do mar

Ter tempo,

sobretudo,

para o morrer

da irresoluta persona

e, então, calar os ventos

Guardar, silenciosamente,

a tua ausência



Preciso

Desta solidão

com o seu manto de sombra bordô

vinda com o ocaso do dia,

pulsando a noite que se inicia,

suspiro de harpa,

rumores de poesia



Preciso

Desta solidão

onde começa e acaba o ser

Amigos

Os amigos, separados pelo tempo abstrato,

pelos caminhos de argila,

pelos rios e suas pontes ligando a saudade

à impressentida nostagia da ausência

enquanto em todo o céu é primaveras,

relembram estes ínicios de novembros

onde desabrocham flores por entre as frestas das pedras,

pequeninas flores interropendo

a estrutura calcinada pelo fogo do tempo compassado

a encher de presságios a vida e a alma



Girando sobre as folhas soltas do outono

a silhueta do vento derruba a gota de orvalho

e pousa no poema

e cria a lágrima

nos olhos verdes da solidão



O poema nasce assim, sem luz, sem nome

por enquanto somente esta lágrima da solidão

rio sem sementes,

sem momentos,

um sonho que fosse

um barco sem vela nos imprecisos ventos do agora

estrelas no firmamento tiritando aos olhos da lua

embalam a noite no ar

brotam saudades do chão

e o poema se expressa entre a saudade e o sem nome



Enquanto os amigos se esperam

Enquanto o vento gira

Enquanto o poema nasce

um pouco de nós fica nesta ausência

gestos,

risos,

vozes

e as mãos cheias de nada



Fica, em meio a tudo, este tom de tristeza

Fica, apesar de tudo, estes novos poemas

e a janela das Luas Antigas

onde me debruço a olhar a vida e o mundo

com olhos distraídos de artesão de estrelas

e sonhos ociosos e incognocíveis como um mistério



São tantos os momentos que fogem

e calam no gesto de demora das flores

São tantos os momentos de indagação

dos barcos rumo ao porto

São tantos os silêncios,

que quase ninguém ouve

São tantas as esperas

que a areia escorre da mão

fluída como a vida em grão



Os amigos relembram o primeiro segundo,

a última hora de tantos novembros

a perguntar pelo passado que imiscuiu-se à multidão,

bosque ou jardim,

ausência amorável

como o perfume da rosa

como um dia que amanhece

sob o encanto do dia que o precedeu



A brisa caminha em tempos e sonhos

que a chuva deixou no jardim

insinuando tardes brandas

e paisagens convidando à nostalgia,

abrindo a porta das gaiolas

para que fujamos todos...

um dia



Marulho do mar

O silvo do vento passando pela fresta da janela

Houve um tempo

em que o vento despenteava o meu cabelo

e secava a lágrima que, às vezes, caía

só e silente

como a única verdade de um instante

Na distância, o rumor do vento soprando,

secava as gotas de chuva nas pétalas das flores no jardim



A vida esquece-se no rio

deixa-se levar

tecendo os fios da urdidura

enquanto nas margens

os amigos se esperam



Esperam o momento dúbio

de um possível reencontro

em outras primaveras onde as flores são abandonos,

outros outonos?

inumeráveis verões,

nas noites estreladas de um inverno

onde as saudades são quentes e ternas

Esperam, os amigos,

assim esperam

cativos de tantos outros dias



E a vida, assim, torna-se indispensável

Sentir



Há momentos em que sentir

é como a ausência do postigo

por onde poderia, se houvesse,

infiltrar-se a voz melíflua do poema

É como a carência das manhãs transcedentes

e o constante perfume do orvalho no ar

É como a garrafa lançada ao mar viajando

sob estrelas que por sua vez viajam o éter

trazendo mensagens (poemas?) do inicio das eras

É como a solidão que se instala transbordando

tudo que eu ainda não disse/não fiz

É como o som das insidiosas máquinas de guerra

que ca(n)tam as velhas canções

e reverberam a cantilena de velhos discursos

É como o choro silencioso,

sem gesto,

sem destino,

sem começo

e sem fim

É como um labirinto

infinito

onde a esperança repousa ingente

É como a inelutável noite

que envolve e acorda vendavais

e a chuva cai

parando o tempo,

revirando passados

reverberando ao som do vento nas telhas

E, afinal, que querem as lembranças?

Querem um convívio forçado

estes sentimentos que tombam e vibram

Não sei conviver

Há sempre razões definitivas,

certezas indubitáveis

e a noite que cessa

em todas as janelas

onde a parca luz amarelada

agoniza junto com a minha emoção

Onde as iamagens se evolam

e o tempo é um truque de um mágico

que transforma a eternidade

nestes fugidios instantes

Às vezes instantes longos,

páginas em branco,

às vezes cheios de emoção,

umedecidos de suspiros

que o tempo folheia impunimente

A poeisa estremece o singular

mistério da noite

e dá ao meu sentimento

este invisível caminho

e esta inefável possiblidade

de anotar e rabiscar

até perder a razão

e colher das flores as cores

e o perfume inocente

de um verso que chora

ou que ri comigo

de uma realidade que só existe nele,

no verso

Eu o olho e o ouço como

um menino me olha e me ouve...

como se me conhecesse

há muito tempo...

Um tempo em que só havia poesia

no acaso inseguro das manhãs,

na tarde que me visita

e me espera nos jardins

onde flores de papel sorvem

as palavras que dizem da brisa

crispando as águas do rio,

bebendo as pequenas ondas

que desaparecem na areia

Houve um tempo em que tudo era poesia,

madrigais, odes, elegias

Versos inconsúteis

escritos à cinzas

nas páginas da distância

e dos momentos onde sentir

é como o escorrer da chuva

no silêncio dissoluto do espinho

da rosa que não há

e o perfume da rosa, esbatido pelo vento,

ondula em teus cabelos onde dorme a noite

O vento argumenta sua quase tristeza,

arremete, debalde, as naus contra os portos,

acorda meus velhos sonhos sonolentos

e empresta-lhes a face de uma lua cheia

de um dezembro que ainda não veio

Há momentos em que sentir

é só como estes sentimentos cativos

e estes caminhos cobertos por folhas secas

caídas com o vento e com as chuvas

nas madrugadas onde me esqueci

e me esquecendo

o tempo, possesso,

me resgata deste teatro

e da contumaz mentira

que transforma o meu hoje

em um ontem irrefreável

acumulando-se aurora após aurora

ansiando por ser poesia e liberdade

Estes momentos em que sentir

é como o menino jogando as cinco pedrinhas

na praça deserta

antes de decidir morrer

Quando eu me for qual flor brotará?

Branca, vermelha, amarela, lilás, azul...?

Que importa?

As flores brotarão e levarão

o pânico da minha noite

e atearão fogo à minha suposta "poesia"

incorrigível e alquebrada

sentindo o que não sente

virando o mundo às avessas

antes que a aurora envolva e encubra

a voz do poeta

e este, então, adormeça

Manhã de domingo



Manhã de domingo

Dia nublado

A vida acorda sem o instante amarelo e menino do sol

Na rua soa a monotonia dos ruídos dos carros

a encobrir a vida e ignorar a barulhenta certeza

da sandice que o homem acalenta

O homo sapiens sapiens fere a cidade suprimindo o silêncio

e encobrindo a Voz imanente à Alma

E a cidade geme e explode e grita...

Um alarme dispara

para proclamar em voz alta a insensatez humana

Indiferentes à insanidade pássaros cantam

Nas árvores os pássaros aliam-se aos anjos, e cantam,

por que é de ser pássaro cantar

Em algum lugar um bem-te-vi

lança, súbito no ar, o seu mantra:

bem-te-viiii

Outros pássaros se manifestam,

cada um no seu idioma,

encobertos pelo ruído dos carros

São tristezas a vida nesta incessante

dicotomia,

nesta afronta plangente

onde a vida caminha para o ignaro fim

Em algum lugar da cidade nasce uma flor,

em um jardim?

Uma flor irremovível,

que alguém espera

Nasce a flor

e com ela nasce mais um verso

e quando a chuva cair o verso se fará poesia,

independente da ignomínia daqueles para quem

o amor e a poesia têm outra existência,

outro devir que não o de ser amor e poesia

Mas, a flor desabrocha,

por que é do sentido da vida da flor desabrochar

Flor de orvalho e eflúvios de estrelas

mais um acalanto de ternura dos poetas,

mais um milagre em busca do equilíbrio

Nasce a flor e o som da flor nascendo

confunde-se com o som do Universo

expandindo-se e contraindo-se

Há na vida e na morte expansão e contração

Nascer é fazer um pacto silente com a morte

e a cada instante a impermanência entoa, nua,

o cântico cego do tempo a passar indolente

após o giro da ampulheta,

após a intimidade do amor

Após o exílio silencioso da minha face na

candura do teu colo

e dos versos trêmulos

que leio de olhos fechados, com as pontas dos dedos

na manhã nublada de domingo

onde borboletas voejam aprendendo as flores

para apagar as noites crispadas pelo teu nome nos ventos

Os pássaros cantam sonora e comoventemente

compondo a claridade do verão

com a qual o Amor entrará pela minha janela

e o sol se fará

atado ao instante absorto dos meus olhos





(*É a poesia ficando repentinamente como a lembrança

da primeira noite em todas as outras noites...)



*Lêdo Ivo in Poesia Completa - 1940 - 2004

Noite após noite eu minto

Acorda a noite sob o cicio das àguas da chuva
recendendo à terra molhada e à enigma
Nasce a flor na escuridão da noite
entre os sonhos úmidos do jardim
Aponho no negro céu estrelas sonolentas
Sombras esbatem-se à luz liquefeita da lua
Sopra a brisa sutil onde pousa um vaga-lume
a sua verde luz e o seu reflexo de ilusão
Evolam-se nuvens vindas de um passado inapreensível
Incendeiam-se imagens no velho e baço espelho,
símbolos indecifráveis,
cores tingindo o ar
Desata-me do cárcere das tuas lembranças, ó noite,
que se dispersa nas notas da música ecoando
nos olhos lassos de uma madrugada antiga
O pássaro passa errante e o meu coração se encanta
como a criança que brinca com o espelho
olhando o teto como reflexo do chão
Caem estrelas na areia que a lua borda
O mar repete na penumbra as ondas e os rumores dos rochedos
As noites inconsúteis,
iguais,
iguais,
iguais,
cobertas pelo pó e pelo simulacro
dos segredos do enredo a me escreverem
cena após cena
sina após sina
instante após instante...
arquétipos olhando os olhos da morte
nos milhões de anos esquecidos no ir e vir dos sonhos
que separam o homem e a alma
como quem depõe a vida e o destino aos pés do vento
que embalde traz as fagulhas do mar
e os caminhos solitários dos minutos dissolvidos
onde correm meus passos de criança
Quantos séculos discorrem o destino leviano dos homens?
Quantas mortes hei de subornar
e iludir devagar com a antiga pressa?
Diante dos sonhos
e da possibilidade do retorno eu minto
Para não morrer eu minto
Noite após noite eu minto

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