Kayc Carvalho

Kayc Carvalho

2006-03-29 Bilac, SP
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Alguns Poemas

Samba Dedilhado

Ele voltava a sentar-se depois de alguns breves rodopios e passos de baile. O trompete vibrante se destacava perante o cavaquinho e o tamborim. Criando um samba que namorava em ser jazz. Era uma sala de chão de longas tábuas de madeira, de teto altíssimo, paredes grossas que ajudavam na acústica envolvente. A roda de samba empurrava a banda de quatro pessoas contra as paredes. Restando apenas o canto da sala onde ficavam junto a algumas mesas e cadeiras que foram movidas do centro fervoroso da sala.

Fazia “um calor desgraçado dos infernos” na sala cujo as janelas grandes de vidro sujo de poeira passavam uma luz amarelada que só ressaltava esse calor que fazia com que os participantes da roda se realizassem em dançar inconscientemente.

Era a segunda vez que ele se sentava.

Mesmo seu paletó dando sinais óbvios de que era hora de ir embora com manchas escuras de suor nas costas, axilas e lapela do tecido de linho cinza claro, ele se recusava a ir. Tinha um motivo para ficar. Um motivo de cabelos curtos e onduladamente loiros.

Sua salvação era a única cadeira almofadada na mesa mais redonda mais distante de todos. Onde ele ficava até o sangue lhe esfriar para então logo voltar para a roda ao lado dela.

Além dele e da banda, haviam outros sentados nas mesas, apenas esperando novamente para dançar até o incandescente.

O cansaço dava certo conforto ao duro assento almofadado. Respirava ofegante por mais que tentasse disfarçar entre goles de água que já foi gelada, mas agora deixava o estado de frescor.

Mantinha os olhos vidrados nos belos ombros descobertos pelo vestido rosa que ela vestia. Em um rápido lapso e uma piscada de olho, ele se perdera nas memórias da noite anterior que ele dividiu com ela. Um jantar  boêmio com filés de peixe empanados acompanhados de ao todo duas garrafas de vinho e alguns cigarros fumados por ela. Deitaram-se na grande cama delicadamente arrumada. Os dois, juntos no desfecho de um inocente amor, adormeceram para a lenta e delicada manhã do dia de hoje.

A doce memória lhe passava em mente várias vezes. Até que sua atenção é recobrada por uma fala externa a memória que dizia em um tom tão monótomo que foi impossível de se distinguir sexo ou idade.

-Toma aqui.

No mesmo instante, o copo d’água que ele segurava tornou-se subitamente mais pesado. Podendo sentir o “coice” do copo.

Seus olhos voltaram-se para o seu transparente copo americano com água um pouco abaixo da metade. Mas que agora, transbordava em uma água avermelhada.

 O peso acrescentado lembrou ele do peso de dois grandes cubos de gelo. Foram dois erros que sua intuição lhe fez tomar. Não eram dois, mas sim um. E não era o mais requintado cubo de gelo, era o mais estranho e grotesco dedo anelar de uma mão que seu ofício de herdeiro latifundiário poderia lhe proporcionar.

 Teve nojo. Teve vontade de vomitar e repúdio do pedaço de carne e osso. Mas acima de tudo, teve medo. Não do dedo boiando no copo em suas mãos. Mas do que as pessoas poderiam pensar dele com aquilo, da situação que poderia desatar e de quem colocou-lhe o dedo no copo.

 Tamanho foi o choque que permaneceu parado a deslumbrar o dedo que, segundo a segundo, mais avermelhava a água com sangue. Passaram-se dois segundos dele nesse estado catatônico. Tempo em que a pessoa que lhe fez o exótico drink já havia se perdido entre a roda de samba. 

 Quando finalmente recobrou a integridade de seu pensar afetado pelo agora mais forte e notável calor, ele olhou para a frente e só viu a dançante multidão alegre por mais que cansada. Sua beleza era muita, e se originava da genuinidade dos que nela sambavam. 

 Ele desconfiou de todos. Da mais nova menina recém moça e que não entendia o por que da cólica e hemorragia que sofrera a poucos dias. Até da figura mais velha que sambava a passos descompassados e lentos. Desconfiava até do amigo do primo que lhe convidou para o baile.

 Entretanto, ele não desconfiava de uma pessoa. A quem ele confiava a vida e seus segredos. Essa a quem ele deu a sua sagrada virgindade a duas semanas. Procurou por ela em meio aos bailarinos. Se levantou aflito à procura dos ondulados cabelos da cor mais douradamente loira. Não a encontrou.

 Olhou à sua esquerda. Mas só encontrou a banda já cansada e que agora começava a tocar outro samba nitidamente mais lento que o anterior.

 Teve medo em olhar a sua direita e ver o desconhecido e anônimo que lhe entregara seu pesadelo. Sonhou bom foi quando viu o rosa vestido ciganinha que ela usava. Ela vinha num caminhar singelo saindo da roda e indo ao seu encontro.

 Foi o melhor e mais curto sonho que ele teve. Pois o vermelho sangue da água  em que boiava o dedo não ornamentava com o açucarado e sutil rosa do vestido. Tinha de fazer algo para com aquilo.

 [...]

 Virou-lhe o copo.

 Foram três goles até que por muita sorte o dedo estava em posição ideal para engoli-lo sem nenhum esforço necessário. E assim o fez no quarto gole. 

 No quinto e derradeiro gole ela já chegara ao seu encontro e se colocou ao seu lado.

 Esperava por tudo. Mesmo que ele não tivesse resposta para nem metade das situações que poderiam acontecer. Mas ela, sem pestanejar, o puxa pelo braço direito. Ele em um último suspiro de suas faculdades mentais, deixa o copo vazia em uma das mesas.

 Eles contornam a multidão e, quando estavam prestes a chegar a porta soltava uma brisa suave de vento vindo do restante do casarão, ela diz baixinho para que ninguém além dele ouvisse:

 -Vamos, detesto essa música.

Niilismo Estrangeiro

Tenho medo do homem dirigindo essa pocilga de carro. Parece que ele está por mirar com uma precisão absurda cada buraco da estrada. E está tendo total acerto. 

Péssima estrada. De terra seca e dura. Só não se torna mais esburacada que a arcada dentária deprimentemente amarela do homem que parece não conseguir distinguir um carro de um cavalo. Ele dirige tão bem quanto se barbeia. Ou seja, pessimamente. Tem diversas imperfeições no barbear. Mesmo se usasse uma colher como navalha, não teria resultado tão ultrajante.

Ele me irrita. Tudo nessa enrascada de viagem ainda há de me levar à loucura. Faz calor, muito calor. Está seco e a única brisa que tem neste vale desértico é uma ducha de poeira e mormaço.

Me fez repensar inúmeras vezes o por que eu estou aqui. Será que ser o “novo homem da honrada família Caunden” vá valer esse inferno de peregrinação para ir em uma terra arrasada que Deus se esforçou para esquecer.

-Vá lá ver o que tanto meu pai escondeu de nós em vida para só nos revelar sob a jura de seu testamento. [...] O que será que tem naquela fazenda? Será que é boa para plantar café? Pode esta graça de descoberta ser o nosso presente de casamento?

Convencido fui eu por me deixar levar por essas falas de encorajamento de minha esposa. Pois já deixou de ser um presente faz eras. 

E se a viagem for terminar aqui, seria tudo uma grande e sem graça piada póstuma do Cobalto já vestido de seu glamuroso terno de tábuas. Seria de seu feitio antes de ele perder a lucidez e o ácido humor característico dele. Morreu velho o coitado. Viu e fez de tudo. Foi bem vivido. E mesmo morto ainda há de contar sua derradeira chalaça.

Lutou em guerras. Não esta Grande Guerra Mundial, mas foi uma guerra. Até porque, toda guerra é ruim, e por isso, toda guerra é igual e termina da mesma forma, sem significar absolutamente nada. Mas ele sempre dizia que não lutou propriamente, apenas foi mandado e recuado na mesma carroça. Apesar dele ter tido honrarias. Meu sogro, pai de minha esposa Helga, foi um virtuoso e imponente homem.

Trágica foi todo o drama tramado pelo destino que fez com que ele não estivesse vivo para ver o nosso casamento.

Helga e sua mãe, dona Adamar, choraram muito no dia em que ele partiu. Derramei lágrimas, mas foi só quando o vi no caixão vestido do terno turquesa que ele mais gostava. Era espalhafatoso e extravagante.

Mas se há um homem que tem total licença para usar o que bem entendesse, este foi o doutor e sargento Cobalto Solares Caunden.

Tenho muita sorte dele ter me aceito na família e ter confiado a mão se sua única filha a mim. Pois quando entrei na história, Cobalto já lecionava na universidade de São Paulo. Já tinha se consagrado doutor e sargento, ganhou diversos prêmios por seus estudos, trabalhos e livros. E além disso, Helga já era antes disso desejada por homens e mulheres muito mais capacitados que eu.

Ela poderia ter a família que bem quisesse com quem quisesse.

Mas ela me escolheu.

Eu, “filho do carbono e do amoníaco”. Que, na época, era apenas jornalista da segunda menor rádio. Estava na metade da faculdade de jornalismo e não tinha família. Deixei tudo em Linhares. Era eu um solteirão varrido que mal falara com mulheres antes na vida. Não sei o que ela percebeu ou sentiu uma meia dúzia de ossos dentro de um saco de pele. Talvez fosse um palerma que aceitasse viajar de São Paulo para o interior do noroeste paulista sozinho atrás de uma terra que eu aposto que será só uma imensidão de braquiárias amarelas de secas por não verem uma única nuvem a mais de quatro meses. E esse imbecil estupido não sabe dirigir. Isso eu afirmo com a certeza de alguém disposto a levar essa afirmação para ser colocada em minha lápide.

Ele conseguiu estourar o pneu em um buraco. Em um buraco de uma estrada de terra. Inocente fui eu que pensei que Jeca Tatu fosse a pior espécime que eu encontraria.

Agora me encontro em um complicado e dificílimo dilema que pode me custar a vida e a sanidade. Vou para fora do carro e queimo até a morte pela baforada de vento quente enquanto amaldiçoo o tonto do motorista trocando o pneu, ou, espero dentro dessa banheira velha e aceito meus miolos sendo lentamente cozinhados pelo calor do ar em temperatura ambiente dos calabouços do nono nível do inferno.

O que eu faço?

Fico pensando e debatendo no problema e mal dizendo minha recém esposa e sogra que mais parecem ter me despachado para enlouquecer nessa desventura, mesmo eu sabendo a resposta do dilema: Eu virarei um ensopado dentro do carro.

Acaba de cair uma gota de suor nas páginas brancas deste caderno de capa de couro preto. Escorreu outra gota de suor de minha testa. Ela passou pelas minhas sobrancelhas e conseguiu atravessá-las. Percorreu meu desnecessariamente grande nariz até chegar a ponta. Pensei que ela iria se acumular e então despencar e desaguar no assoalho. Mas contra todas as expectativas, ela caiu, mas foi barrada em pleno ar pelo meu bigode.

Mas que diabos de baderna!

Poderia ter logo me matado em vez de tentar fazê-lo com esse susto.

Aquele desafortunado desgraçado bateu na porta do carro enquanto gritava uma tentativa da mais rudimentar fala. Acho que ele quer que eu saia do carro para gratinar o monte de carne já cozida com as labaredas de luz do sol mais quente e estonteante que eu já tive o azar de sentir.

Quando abro a porta, veio até mim um vento quente de mormaço e poeira. Se assemelha quando se abre um forno e vem aquela baforada quente. A diferença se dá quando o vento do forno tem cheiro de bolos, tortas e pães. Enquanto ao que sofro agora é seco e tem cheiro das únicas coisas que esse carrasco de sol deixa se ter nesta terra, morte, peste e tristeza.

Lentamente tomo coragem de prosseguir com o suicídio. A terra é dura como pedra. Quando coloco meus pés nela, chego a pensar que estou pisando sobre os paralelepípedos das ruas de São Paulo. Mas o calor é este sujeito de cara abominável me lembram o quanto estou distante de casa. 

Estou em algum lugar de Minas Gerais. O nome eu desconheço,até porque estamos no meio do absoluto e vazio nada. O último sinal de civilização ficou para trás há vários quilômetros.

O nome deste indivíduo desprezível é Romero Romeu. Um imprestável bêbado que contratei como guia no começo dessa empreitada por um grande equívoco. A propaganda era senão um sonho bom de alguém que realmente era guia. Certamente não foi Romero o publicitário. Ele não tem sequer a capacidade de sonhar miragem tão admirável. Desde então estou preso aqui com esses palheiros fétidos, bafo de bebida que mais se parece com o odor de um animal no décimo quinto dia de decomposição. Sem é claro esquecer dos comentários, falas e dialetos desagradáveis. Pois esquecer essa aberração bípede seria o grande tesouro dessa viagem ao inferno.

Quando esse diabo de caipira metido a caboclo com nariz torto dá-me uma paz, pego-me pensando: Será que o plano de Helga e Adamar de me mandar para esse fim de mundo é somente para se livrarem de mim e então ter todos os bens declarados no testamento só para a verdadeira família Caunden? Pois não há cabimento eu passar por isso sozinho enquanto as duas ficam tranquilas sob os aposentos do casarão e desfrutando dos frescos ares de São Paulo.

Posso bem, chegar até a terra prometida por Cobalto, colocá-la sob minhas propriedades e nunca mais voltar. Mas eu não teria coragem de fazê-lo. Não com Helga.

Iria contar a história de como nos conhecemos. Mas Romero me interrompe grasnando como um touro.

-Óia, u’diacho du pneu 'storô. E nóis nun'tem pneu reserva.

Ora, como os pais desse sujeito deixaram esse asno humanoide viver até atingir este estado catatônico de inutilidade. Melhor seria para a espécie humana se a chocadeira que cuspiu este verme matasse ele ali mesmo. Romero nem mesmo consegue dar total providências de seu próprio ofício que, se merece alguma caracterização  somente pode-se dizer: é feito nas coxas.

-I'intão dôtor? Nóis tem duas coisa qui'a genti podi fazê. Ou'o sinhô vai até na cidadi'i'eu fico no carro. Ou'eu vô'e'ocê fica.

É de tamanha incompetência este caipira dos infernos. Mesmo quando Romero tem a insolência de me dirigir a palavra, ele não possui a decência de parar de fumar. E ainda nem muda seu olhar vagante e sem foco que, com qualquer mosquito, se distrai. Mesmo eu pagando, ele age como se me devesse satisfações. Eu o amaldiçoo. 

Eu olho para a estrada que ainda iremos ter que percorrer. É longa, triste e quente. Nada de diferente do que passei até agora. Mas com um ótimo desconto que não teria este horroroso me perturbando. Porém lembro o por que ele fez essa pergunta, coisa essa que se não estivesse nos assolando ele nem mesmo iria perguntar. Era o sol, o grande astro estava radiantemente forte. 

-Eu prefiro ficar aqui. Será melhor se você ir à cidade. - Falei eu me orgulhando de minha estupefata perspicácia.

-Ora sô, maiz’eu digo qui’é mió eu fica’qui.

Este desalmado acha que consegue barganhar comigo para que eu sofra em seu lugar? Eu estou lhe pagando seu idito imbecíl. Se há alguém que deve sofrer aqui é você. Ora se já não é pertencente ao seu povo preguiçoso e doente. 

Romero que estava agachado de cócoras ao lado da roda traseira esquerda do carro se levantou. Mas somente esticou as pernas. Manteve sua postura lastimável com os ombros para frente de seu peito fazendo lhe uma corcunda tristonha e arrematadora de todos os piores diagnósticos de doenças.

-Oiá fí, vô ti fala’unegóço. Por’essas bandas tem’muito’é’onça. E seco du jeitu que ta’as coisa. As’onça nun’teve de cumê muit’não. Elas vai’ta é com os istrombu colado nas’costa de tanta’fome.

Onças? Nesse serrado de vegetação baixa e seca? Mas nem ao menos a mais temerosa criança teria acreditado em tamanha falácia sem cabimento.

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