E se um diário de bordo for uma missiva de amor?
"Escrever-te sem que tu saibas" - É o conceito unificador de um diário de bordo escrito pelo mar báltico, durante oito dias, um texto por dia. As fotos foram feitas durante a mesma viagem e estão associadas aos textos.
#1
Sempre tu
À noite, que ali e nestes dias pouco tem de escuro, sentei-me no deck panorâmico.
Ainda estacionados para receber passageiros, as gaivotas saudavam os novos e subiam para me beijar os pés.
Até nem foi bem assim. Elas beijavam o reflexo no vidro a ‘pensar’ que me beijavam os pés.
Depois, as gaivotas subiram ao coração e sacudiram os fios da minha memória.
Queria que estivesses aqui.
Ficaste do outro lado.
Nem sei se algum dia vais poder estar no lado em que eu estiver. Ao meu lado.
Queria que viesses.
Não posso pedir. Não devo pedir.
O não dever pedir é mais forte do que o não poder fazê-lo.
Agarrei neste caderno, o das folhas antigas e que diz “Dreams come true”, e escrevi-te. Mas tu não sabes.

2
A eterna preguiça que há no mar
O mar espalmou as horas e distendeu-as.
O mar juntou trinta minutos a cada hora da terra para ter tempo de preguiçar.
O mar armou-se em engraçado e fabricou um relógio só para ele.
O mar enfiou no relógio as horas espalmadas e distendidas.
O mar engoliu o relógio e ficou com uma barriga muito grande.
O mar às vezes tem a barriga tão grande que lhe crescem dobras onduladas.
O mar deixa que eu, e talvez tu se lhe pedires, acrescentemos mais dez minutos a cada hora. Por causa dos batimentos da alma.
O mar não deixa afogar mágoas. Tem boias de salvação.
O mar não engole as mágoas. O relógio deixou-lhe a barriga a abarrotar e não a dar horas.
O mar deixa lavar as mágoas. Até podem ficar a boiar.
O mar devolve-nos as mágoas bem escovadas para as amanharmos melhor.
O mar chateou-se com as minhas mágoas e enfiou-as no meu caderno dos sonhos.
Escrevi-te. Mas tu não sabes.

#3
Tubos
O céu é o que se assemelha mais ao mar.
O céu e o mar são irmãos gémeos. Gémeos falsos.
Nada que tenha a ver com o sexo.
Muito embora o céu tenha anjos.
E tanto se discute acerca do sexo dos anjos.
Já descobriste? Vá, vá, diz-me.
A única diferença entre o céu e o mar é o estado do lençol.
No mar, o lençol está sempre encharcado.
No céu, o lençol só deita gotas quando é lavado.
Ao longe, pensei-te piano. Os meus olhos até foram buscar um banquinho em que sentei um pianista a interpretar uma peça.
Juro que ouvi o nocturno em modo diurno.
Na aproximação, vi-te um conjunto de trombetas a apontar para o céu.
Convoquei os anjos para te usarem a preceito.
Meti-me debaixo de ti para averiguar o estado do lençol.
A cada canudo correspondia um retalho.
Acolchoado de algodão, pedaços de linho, tiras de seda.
Acrescentei comprimento aos braços.
Para compensar a dificuldade em pintar-te sorrisos, escrevi frases em cada retalho.
Saí debaixo de ti, alinhei os pedaços no caderno e escrevi-te. Mas tu não sabes.

#4
Do fim
Pensas na morte?
Perguntei-te junto aos túmulos de alabastro.
Não respondeste.
A morte não se diz.
Dizem para aí.
E tu és desses? Vá diz, diz, diz…
O meu eco abanou os cordões de ouro.
Mortos pintados a ouro… Valem mais, é?
Qual é a cotação do morto em relação ao vivo?
Também não sabes?
Os teus olhos quiseram calar-me com o fogo roubado aos santos.
E calaram.
Voltei costas e escrevi-te sobre a morte.
Tu não sabes que te escrevi?
Ou finges?
Eu digo a morte, sim.
Penso nela todos os dias.
Ou quase.
Penso na minha morte, não na dos outros.
Sempre pela possibilidade de ela estar mais certa para mim.
A imortalidade não deixou sobrar uma nesga para mim.
Foi a noite do mármore.
A pedra fria, branca, muito branca… Conspurcada pelo animal danado.
Estar no fio da navalha muda o referencial da vida para sempre.
É um pressentir estar aqui pela última vez, mesmo sem motivo para descartar a repetição.
O mais seguro é não estar.
É um viver em despedida, sem vislumbre de retorno.
É um sentir vazio de futuro.
É um perceber constante da vida com sofrimento. Porque a vida tem-no sempre. Mais, muito mais, quando não há amor.
E tu não estás, meu amor.
Medo de morrer?
Interroguei-me junto às bochechas rosadas dos anjos.
Não, perdi-o todo de repente.
Ou parece.
Era de noite, estava frio e arrancaram-me tudo.

#5
Ao pôr-do-sol
Desceste enrolado nas gotas de suor que deslizavam sobre a minha pele.
Percebi-te
nos arrepios bons
nas picadas ligeiras
nas borboletas na barriga (– Essa é de adolescente?! Tens cá uma graça!)
no mareio da competição com a laranja orgulhosa.
Uma laranja inchada, gorda, redonda,
bola que rebola no negrume ondulado.
Irrequietos, profundos, com pinceladas breves de tristeza,
assim são os teus olhos bonitos.
Ainda mais na noite do fogo,
reflectidos nas águas doces do mar.
Sorrimos em modo gigante.
A primeira vez!
E a laranja rabugenta a querer dormir.
Que maçada!
Rabisquei à pressa o nosso desenho,
para juntar à missiva da garrafa cristalina lançada ao mar.
Já chegaram os traços que grafei?
Tu não sabes que te escrevi, pois não?

#6
Da química
O trabalho e o amor implicam sempre sofrimento.
Foi o que disse a rapariga dos olhos azuis e pele muito branca, enquanto nos guiava pelo bosque.
Nós aprendemos a lidar com o sofrimento e por isso dissimulamos as emoções. Os homens ainda falam menos sobre o que sentem e por isso sofrem mais.
Continuou a menina-mulher de semblante triste.
Estanquei o coração e quis agarrar-me com força à razão.
Para tentar encontrar algum fio condutor.
Porque, para mim, as mulheres à minha volta pareciam estar dessincronizadas.
Na véspera, a matrona, ao explicar um quadro, dissera sem ponta de hesitação que o pintor foi um homem muito feliz. Ela nunca falou com o pintor, nem trocou correspondência… Ela nem sequer viveu na mesma época do homem.
[E sem que tu visses, rabisquei à pressa estas notas para ti. Não fazias ideia da minha missiva, pois não?]
Os palpites sobre a in|felicidade alheia parecem-me abjectos, por muito frio e cru que tal seja interpretado.
No outro dia, o rapaz de trinta e picos e que de longe alinha palavras cuidadosas e doces, dissera-me que o melhor é evitar-se a paixão por causa do sofrimento que vem a seguir. Julgo que ele não acredita no amor. Tão novo, já viste?
Como se evita a paixão?
E é preferível evitá-la, caso seja possível?
As vezes penso que seria mais fácil não te desejar com esta força avassaladora... Mas não, fazes-me falta.
A rapariga de olhos azuis e pele muito branca encontrou um rapaz. Cumprimentaram-se de forma cúmplice e sorriram.
A pele dela avermelhou-se.

#7
Apeteces-me
Abri a janela e deixei-te o bilhete que escrevi às escondidas.
Encontraste-o?
Corre, corre!
Vem para a barca.
Deslizaste as mãos pelo meu vestido branco.
Cintaste-me.
Peguei na tua pele e juntei-a à minha pele.
Dão-se bem!
A minha pele com a tua pele.
Deixámo-las brincar às escondidas - tudo às escondidas? - debaixo das pontes.
Tão baixinhas!
Olha a cabeça! - avisavas-me a cada novo buraco.
Sabes que gosto muito de ti?
Sorriste-me com os olhos brilhantes.
Atiro-te para trás.

#8
Nas nuvens
Tudo me parecia muito distante.
Não eram as coisas. Não era um desligar dos procedimentos necessários.
A distância, que eu queria que fosse cada vez maior, era do ruído infindável do caudal de reclamações.
Nada esteve bem. Nada estava bem. Diziam.
Sem que vissem, recolhi-me nos meus pensamentos.
Ou o meu grau de exigência andava pelas ruas da amargura ou aquela mole humana mostrava sinais de ter passado um punhado de dias num campo de concentração. Não para se concentrar, está bom de ver. Naqueles campos à antiga.
Apeteceu-me gritar. Não. Já havia demasiado ruído.
Puxei pelo caderno dos sonhos, aquele em que peguei ao calhas antes de sair de casa, e continuei a registar palavras para ti. Não as viste, eu sei. Um dia... Talvez.
Ali do alto respiro fundo.
Vou para perto de ti. Mais perto, talvez.
Continuo a querer que venhas para o lado em que eu estiver. Para o meu lado.
Sabes que tenho esse sonho muito bem guardado naquela caixinha de que te falei?
De vez em quando vou lá espreitar. Levanto o papel de seda e atiro-te beijos. De volta, sempre os teus olhos bonitos. Irrequietos, profundos, com breves pinceladas de tristeza.
