Pablo Neruda

Pablo Neruda
Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.
Nobel
Nasceu a 12 Julho 1904 (Parral, Chile)
Morreu em 23 Setembro 1973 (Santiago, Chile)
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Canto XIV - O Grande Oceano

I
O grande oceano

Se de teus dons e de tuas destruições, oceano, a minhas mãos
pudesses destinar uma medida, uma fruta, um fermento,
escolheria teu repouso distante, as linhas de teu aço,
a tua extensão vigiada pelos ares e pela noite,
e a energia de teu idioma branco
que destroça e derruba as suas colunas
na sua própria pureza demolida.


Não é a última onda com o seu salgado peso
a que tritura costas e produz
a paz de areia que rodeia o mundo:
é o central volume da força,
a potência estendida das águas,
a imóvel solidão cheia de vidas.

Tempo, talvez, ou taça acumulada
de todo movimento, unidade pura
que não selou a morte, verde víscera
da totalidade abrasadora.


Do braço submerso que levanta uma gota
fica apenas um beijo de sal.
Dos corpos
do homem em tuas praias uma úmida fragrância
de flor molhada permanece.
Tua energia
parece resvalar sem ser gasta,
parece regressar a seu repouso.


A onda que desprendes,
arco de identidade, pluma estrelada,
quando se despenhou foi só espuma,
e regressou para nascer sem consumir-se.


Toda a tua força volta a ser origem.

Só entregas despojos triturados,
cascas que apartou o teu carregamento,
o que expulsou a ação de tua abundância,
tudo o que deixou de ser um cacho.


Tua estátua está estendida além das ondas.


Vivente e ordenada como o peito e o manto
de um só ser e suas respirações,
na matéria da luz irisadas,
planícies levantadas pelas ondas,
formam a pele nua do planeta.

Enches o teu próprio ser com a tua substância.


Cumulas a curvatura do silêncio.


Com o teu sal e o teu mel treme a taça,
a cavidade universal da água,
e nada falta em ti como na cratera
destampada, no corpo rude:
cumes vazios, cicatrizes, sinais
que vigiam os ares mutilados.


Tuas pétalas palpitam contra o mundo,
tremem os teus cereais submarinos,
as suaves algas penduram a sua ameaça,
navegam e pululam as escolas,
e só sobe ao fio das redes
o relâmpago morto da escama,
um milímetro ferido na distância
de tuas totalidades cristalinas.




II
Os nascimentos

Quando se transmutaram as estrelas
em terra e em metal, quando apagaram
a energia e entornada foi a taça
de auroras c carvões, submersa
a fogueira em suas moradas,
o mar caiu como uma gota ardendo
de distância em distância, de hora em hora:
seu fogo azul converteu-se em esfera,
o ar de suas rodas foi sino,
seu interior essencial tremeu na espuma,
e na luz do sal foi levantada
a flor de sua espaçosa autonomia.


Enquanto como lâmpadas letárgicas
dormiam as estrelas segregadas
adelgaçando a sua pureza imóvel,
o mar encheu de sal e mordeduras
a sua magnitude, povoou de labaredas
e movimentos a extensão do dia,
criou a terra e desatou a espuma,
deixou rastros de goma em suas ausências,
invadiu com estátuas o abismo,
e em suas praias se fundou o sangue.


Estrela de marulhadas, água manancial,
mãe matéria, medula invencível,
trêmula igreja levantada em lodo:
a vida em ti apalpou pedras noturnas,
retrocedeu quando chegou à ferida,
avançou com escudos e diademas,
estendeu dentaduras transparentes,
acumulou a guerra em sua barriga.

O que formou a escuridão quebrada
pela substância fria do relâmpago,
oceano, em tua vida está vivendo.


A terra fez do homem o seu castigo.


Demitiu bestas, aboliu montanhas,
esquadrinhou os ovos da morte.


Enquanto isso em tua idade sobreviveram
as etapas do transcurso submerso,
e a criada magnitude mantém
as mesmas esmeraldas escamosas,
os abetos famintos que devoram
com bocas azuladas de anel,
o cabelo que absorve olhos afogados,
a madrépora de astros combatentes,
e na força azeitada do cetáceo
desliza-se a sombra triturando.


Sem mãos se construiu a catedral
com golpes de maré inumerável,
o sal adelgaçou-se como uma agulha,
se fez lâmina de água incubadora,
e seres puros, recém-estendidos,
pulularam tecendo as paredes
até que como ninhos agrupados
com o cinzento atavio da esponja,
deslizou-se a túnica escarlate,
viveu a apoteose amarela,
cresceu a flor calcária de amaranto.


Tudo era ser, substância tremulante,
pétalas carniceiras que mordiam,
acumulada quantidade nua,
palpitação de plantas seminais,
sangria das úmidas esferas,
perpétuo vento azul que derrubava
os limites abruptos dos seres.

E assim a luz imóvel foi uma boca
e mordeu sua pedraria roxa.


Foi, oceano, a forma menos dura,
a translúcida gruta da vida,
a massa existencial, deslizadora
de cachos, as teias do ovário,
os germinais dentes derramados,
as espadas do soro matutino,
os órgãos acerbos do enlace:
tudo em ti palpitou enchendo a água
de cavidades e estremecimentos.

Assim a taça das vidas teve
seu turbulento aroma, suas raízes
e estrelada invasão foram as ondas:
cintura e plenitude sobreviveram,
penacho c latitude arvoraram
os hóspedes dourados da espuma.

E tremeu para sempre nas praias
a voz do mar, os tálamos da água,
a pele de furacão demolidora,
o leite enfurecido da estrela.




III
Os peixes c o afogado

De repente vi povoadas regiões
de intensidade, de formas aceradas,
bocas como uma linha que cortava,
relâmpagos de prata submersa,
peixes de luto, peixes ogivais,
peixes de firmamento tachonado.

peixes cujas pintas resplandecem,
peixes que cruzam como calafrios,
branca velocidade, ciências delgadas
da circulação, bocas ovais
da carniçaria e do aumento.


Formosa foi a mão ou a cintura
que rodeada de lua fugitiva
viu trepidar a povoação pescadora,
úmido rio elástico de vidas,
crescimento de estrelas nas escamas,
opala seminal disseminada
no lençol escuro do oceano.


Viu arder as pedras de prata que mordiam,
estandartes de trêmulo tesouro,
e submeteu seu sangue descendo
à profundidade devoradora,
suspenso por bocas que percorrem
seu torso com anéis sanguinários
até que desgrenhado e dividido
coma espiga sangrenta, é um escudo
da maré, um traje que trituram
as ametistas, uma herança ferida
sob o mar, na árvore numerosa.




IV
Os homens e as ilhas

Os homens oceânicos despertaram, cantavam
as águas nas ilhas, de pedra em pedra verde:
as donzelas têxteis cruzavam o recinto
em que o fogo e a chuva entrelaçados
procriavam diademas e tambores.

A lua melanésica
foi uma dura madrépora, as flores enxofradas
vinham do oceano, as filhas
da terra tremiam como ondas
no vento nupcial das palmeiras,
e entraram na carne os arpões
perseguindo as vidas da espuma.


Canoas balançadas no dia deserto,
das ilhas como ponto de pólen na direção
da metálica massa da América noturna:
diminutas estrelas sem nome, perfumadas
como mananciais secretos, transbordantes
de plumas e corais, quando
os olhos oceânicos descobriram a altura
sombria da costa do cobre, a escarpada
torre de neve, e os homens de argila
viram bailar os estandartes úmidos
e os ágeis filhos atmosféricos
da remota solidão marinha,
chegou o ramo
de flores de laranjeira perdido, veio o vento
da magnólia oceânica, a doçura
do acicate azul nos quadris,
o beijo das ilhas sem metais,
puras como o mel desordenado,
sonoras como lençóis do céu.




V
Rapa-Nui

Tepito-Te-Henúa, umbigo do mar grande,
oficina do mar, extinto diadema.

De tua lava escorial subiu o rosto
do homem mais acima do oceano,
os olhos gretados da pedra
mediram o ciclônico universo,
e foi central a mão que elevava
a pura magnitude de tuas estátuas.


Tua rocha religiosa foi cortada
em todas as linhas do oceano
e os rostos do homem apareceram
surgindo da entranha das ilhas,
nascendo das crateras vazias
com os pés enredados no silêncio.


Foram as sentinelas e fecharam
o ciclo das águas que chegavam
de todos os úmidos domínios,
e o mar distante das máscaras deteve
suas tempestuosas árvores azuis.

Ninguém mas só os rostos habitaram
o círculo do reino.
Era calado
como a entrada de um planeta, o fio
que envolvia a boca da ilha.


Assim, na luz da abside marinha
a fábula da pedra condecora
a imensidade com suas medalhas mortas,
e os pequenos reis que levantam
toda esta solitária monarquia
para a eternidade das espumas,
voltam ao mar na noite invisível,
voltam a seus sarcófagos de sal.


Só o peixe-lua que morreu na areia.


Só o tempo que morde os moais.


Só a eternidade nas areias
conhecem as palavras:
a luz selada, o labirinto morto,
as chaves da taça submersa.




VI
Os construtores de estátuas (Rapa-Nui)

Eu sou o construtor das estátuas.
Não tenho nome.

Não tenho rosto.
O meu se desviou até correr
sobre a sarça e subir impregnando as pedras.

Elas têm o meu rosto petrificado, a grave
solidão de minha pátria, a pele da Oceania.


Nada querem dizer, nada quiseram
senão nascer com todo o seu volume de areia,
subsistir destinadas ao tempo silencioso.


Tu me perguntarás se a estátua em que tantas
unhas e mãos, braços escuros fui gastando,
te reserva uma sílaba da cratera, um aroma
antigo, preservado por um signo de lava?

Não é assim, as estátuas são o que fomos, somos
nós, nosso rosto que olhava as ondas,
nossa matéria às vezes interrompida, às vezes
continuada na pedra semelhante a nós.


Outros foram os deuses pequenos e malignos,
peixes, pássaros que entretiveram a manhã,
escondendo as machadinhas, rompendo a estátua
dos mais altos rostos que concebeu a pedra.


Guardem os deuses o conflito, se o quiserem,
da colheita postergada, e alimentem
o açúcar azul da flor no baile.


Subam eles e desçam a chave da farinha:
empapem todos os lençóis nupciais
com o pólen molhado que imperceptível dança
dentro da rubra primavera do homem,
mas até estas paredes, a esta cratera, só venhas
tu, pequenino mortal, canteiro.


Vão ser consumidas esta carne e a outra,
a flor perecerá talvez, sem armadura,
quando estéril aurora, pó ressequido, um dia
venha a morte à cintura da ilha orgulhosa,
e tu, estátua, filha do homem, ficarás
olhando com os olhos vazios que subiram
de uma e outra mão de imortais ausentes.


Arranharás a terra até que nasça
a firmeza, até que caia a sombra na estrutura
como sobre uma abelha colossal que devora
o seu próprio mel perdido no tempo infinito.


Tuas mãos tocarão a pedra até lavrá-la
dando-lhe a energia solitária que possa
subsistir, sem se gastarem os nomes que não existem,
e assim de uma vida a uma morte, amarrados
no tempo como uma única mão que ondula,
elevamos a torre calcinada que dorme.


A estátua cresceu sobre a nossa estatura.


Olhai-as hoje, tocai esta matéria, estes lábios
têm o mesmo idioma silencioso que dorme
em nossa morte, e esta cicatriz arenosa,
que o mar e o tempo como lobos lamberam,
eram parte de um rosto que não foi derrubado,
ponto de um ser, cacho que derrotou cinzas.


Assim nasceram, foram vidas que lavraram
sua própria cela dura, seu panal na pedra.

E este olhar tem mais areia que o tempo.

Mais silêncio que toda a morte em sua colmeia.


Foram o mel de um grave desígnio que habitava
a luz deslumbrante que hoje resvala na pedra.




VII
A chuva (Rapa-Nui)

Não, que a rainha não reconheça
o teu rosto, é mais doce
assim, amor meu, longe das efígies, o peso
de tua cabeleira em minhas mãos, recordas
a árvore de Mangareva cujas flores caíam
sobre teu cabelo? Estes dedos não se parecem
com pétalas brancas: olha-os, são como raízes,
são como talos de pedra sobre os quais desliza
o lagarto.
Não temas, esperemos que caia a chuva, nus,
a chuva, a mesma que cai sobre Manu Tara.


Mas assim como a água endurece seus rasgos na pedra,
sobre nós cais levando-nos suavemente
para a escuridão, mais abaixo do buraco
de Ranu Raraku.
Por isso
não te divise o pescador nem o cântaro.
Sepulta
os teus peitos de queimadura gêmea em minha boca,
e que a tua cabeleira seja uma pequena noite minha,
uma escuridão cujo perfume molhado me cobre.

À noite sonho que tu e eu somos duas plantas
que se ergueram juntas, com raízes enredadas,
e que conheces a terra e a chuva como minha boca,
porque de terra e de chuva estamos feitos.
Às vezes
penso que com a morte dormiremos abaixo,
na profundidade dos pés da efígie, olhando
o oceano que nos trouxe para construir e amar.


Minhas mãos não eram férreas quando te conheceram, as águas
de outro mar as passavam como por uma rede; agora
água e pedras sustêm sementes e segredos.


Ama-me adormecida e nua, que na praia
és como a ilha: teu amor confuso, teu amor
assombrado, escondido na cavidade dos sonhos,
é como o movimento do mar que nos rodeia.


E quando também eu vá me adormecendo
em teu amor, nu,
deixa a minha mão entre os teus peitos para que palpite
ao mesmo tempo que os teus mamilos molhados na chuva.




VIII
os oceânicos

Sem outros deuses que o couro das focas apodrecidas,
honor do mar, yámanas açoitados
pelo látego antártico, alacalufes
untados com azeites e detritos:
entre os muros de cristal e abismo
a pequena canoa, na eriçada
inimizade de timbales e chuvas,
levou o amor errante dos lobos
e as brasas do fogo sustentadas
sobre as últimas águas mortais.


Homem, se o extermínio
não desceu dos rios da neve
nem da lua endurecida
sobre o vapor glacial das geleiras,
mas do homem que até na substância
da neve perdida e das águas
finais do oceano,
especulou com ossos desterrados
até empurrar-te para além de tudo,
hoje mais para além de tudo e da neve
e da tempestade desatada do gelo
vai tua piroga pelo sal selvagem
e pela furiosa solidão buscando
a guarida do pão, és oceano,
gota do mar e de seu azul furioso,
e teu gasto coração me chama
como incrível fogo que não morre.


Amo a gelada planta combatida
pelo uivo do vento espumoso,
e ao pé das gargantas,
o diminuto povo lucernário
que arde sobre as lâmpadas crustáceas
da água removida pelo frio,
e antártica aurora em seu castelo
de pálido esplendor imaginário.

Amo até as raízes turbulentas
das plantas queimadas pela aurora
de mãos transparentes,
porém a ti, sobra do mar, filho
das plumas glaciais, esfarrapada
oceânica, vai esta onda
nascida nas rupturas, dirigida
com o amor ferido sob o vento.




IX
Antártica

Antártica, coroa austral, cacho
de lâmpadas geladas, cinerária
de gelo desprendida
da pele terrenal, igreja quebrada
pela pureza, nave desbocada
sobre a catedral da brancura,
imoladora de quebradas vidraças,
furacão estilhaçado nas paredes
da neve noturna,
dá-me o teu nobre peito removido
pela invasora solidão, o leito
do vento aterrador mascarado
por todas as corolas do arminho,
com todas as buzinas do naufrágio
e o afundamento branco dos mundos,
ou o teu peito de paz que limpa o frio
como um puro retângulo de quartzo,
e o não respirado, o infinito
material transparente, o ar aberto,
a solidão sem terra e sem pobreza.

Reino do meio-dia mais severo,
harpa de gelo sussurrada, imóvel,
perto das estrelas inimigas.


Todos os mares são o teu mar redondo.

Todas as resistências do oceano
concentraram em ti sua transparência,
e o sal te povoou com seus castelos,
o gelo fez cidades elevadas
sobre uma agulha de cristal, o vento
percorreu teu salgado paroxismo
como um tigre queimado pela neve.


Tuas cúpulas pariram o perigo
da nave das nevadas,
e em teu dorsal deserto está a vida
como uma vinha sob o mar, ardendo
sem consumir-se, reservando o fogo
para a primavera da neve.




X
Os filhos da costa

Párias do mar, antárticos
cães chicoteados,
yaganes mortos sobre cujos ossos
dançam os proprietários que pagaram
por tarifa os pescoços altaneiros
cerceados a golpes de navalha.


Carregadores de Antofagasta e da costa seca,
párias, piolhos gelados do oceano,
netos de Rapa, pobres de Anga-Roa,
lêmures rotos, leprosos de Hotu-Iti,
servos das Galápagos, cobiçados
esfarrapados dos arquipélagos,
roupas desfiadas que através
do emplastro sujo mostram
a contextura do combate,
a pele salgada pela brisa, o valente
troço de ser humano e ambarino:
à pátria do mar veio o embarque,
veio a corda, o selo, o fundamento,
o bilhete com um perfil borrado,
detritos de garrafa na praia,
veio o governador, o deputado,
e o coração do mar se fez costura,
se fez bolso, iodo e agonia.


Quando chegaram a vender foi doce
o amanhecer, as camisas
eram como a neve no navio,
e os filhos celestes se acenderam,
flor e fogacho, lua e movimento.


Piolhos do mar, comei agora esterco,
espreitai os despojos, os sapatos
rotos do navegante, do gerente,
cheirai a dejeções e a pescado.

Já entrastes no círculo
do qual só saireis para morrer.

Não na morte do mar, com água e lua,
mas a dos desengonçados buracos
da necrologia, porque agora
se quereis esquecer, estais perdidos.

Antes a morte teve territórios,
transmigração, etapas, estações,
e pudestes subir dançando, envoltos
no orvalho diurno da rosa
ou na navegação do peixe de prata:
hoje estais mortos para sempre: afundados
no decreto tétrico do frade,
e sois apenas vermes da terra
que no máximo revolverão a cauda
sob os cartórios do inferno.


Vinde e pululai pelas praias
do mar: ainda vos
aceitamos, podeis sair para pescar sempre
que nossa Sociedad Pesquera Inc.

seja garantida: podeis ir
arranhando as costelas nos cais,
carregando sacos de grão-de-bico,
dormindo nas escórias litorâneas.

Sois na verdade uma ameaça, mofosos
deserdados da espuma; é muito
melhor, se o sacerdote vos permitir,
que entreis no navio que vos espera,
e que, com tudo e piolhos, ao nada
vos levará, sem ataúde, mordidos
pelas últimas ondas e desgraças,
desde que não se paguem, à morte.




XI
A morte

Esqualos parecidos com as algas,
com o naval veludo do abismo,
e que de repente como estreitas luas
apareceis com o fio empurpurado:
barbatanas azeitadas em treva,
luto e velocidade, naves do medo
às quais ascende como uma corola
o crime com a sua luz vertiginosa,
sem uma voz, numa fogueira verde,
na cutelaria de um relâmpago.


Puras formas sombrias que resvalam
sob a pele do mar, como o amor,
como o amor que invade a garganta,
como a noite que brilha nas uvas,
como o fulgor do vinho nos punhais:
vastas sombras de couro desmedido
como estandartes de ameaça: ramos
de braços, bocas, línguas que rodeiam
com ondulante flor o que devoram.


Na mínima gota da vida
aguarda uma indecisa primavera
que fechará com seu sistema imóvel
o que tremeu ao cair no vazio:
a fita ultravioleta que desliza
um cinturão de fósforo perverso
na agonia negra do perdido,
e o tapete do afogado recoberto
por um bosque de lanças e moréias
trementes e ativas como o tear que tece
na profundidade devoradora.




XII
A onda

A onda vem do fundo, com raízes
filhas do firmamento submerso.

Sua elástica invasão foi levantada
pela potência pura do oceano:
sua eternidade apareceu inundando
os pavilhões do poder profundo
e cada ser lhe deu sua resistência,
debulhou fogo frio em sua cintura
até que dos ramos da força
despegou o seu nevado poderio.


Vem como uma flor da terra
quando avançou com decidido aroma
até a magnitude da magnólia,
mas esta flor do fundo que rebentou
traz toda a luz que foi abolida,
traz todos os ramos que não arderam
e todo o manancial da brancura.


E assim quando suas pálpebras redondas,
seu volume, suas taças, seus corais
incham a pele do mar aparecendo
todo este ser de seres submarinos:
é a unidade do mar que se constrói:
a coluna do mar que se levanta:
todos os seus nascimentos e derrotas.


A escola do sal abriu as portas,
voou toda a luz golpeando o céu,
cresceu da noite até a aurora
a levedura do metal molhado,
toda a claridade se fez corola,
cresceu a flor até gastar a pedra;
subiu à morte o rio da espuma,
atacaram as plantas procelárias,
transbordou-se a rosa no aço:
os baluartes da água se dobraram
e o mar se desmoronou sem derramar-se
a sua torre de cristal e calafrio.




XIII
Os portos

Acapulco, cortado como uma pedra azul,
quando desperta, o mar amanhece em tua porta
irisado e bordado como um caracol,
e entre as tuas pedras passam peixes como
[relâmpagos
que palpitam carregados pelo fulgor marinho.


És a luz completa, sem pálpebras, o dia
despido, balançando como uma flor de areia,
entre a infinitude estendida da água
e a altura acesa com lâmpadas de argila.


Junto a ti as lagunas me deram o amor
da tarde cálida com bestas e mangais,
os ninhos como nós nos ramos de onde
o vôo das garças levantava a espuma,
e na água escarlate como um crime fervia
um povo encarcerado de bocas e raízes.

Topolobampo, apenas traçado à beira
da doce e nua Califórnia marinha,
Mazatlán estrelado, porto de noite,
escuto as ondas que golpeiam a tua pobreza
e as tuas constelações, o pulsar
de teus apaixonados orfeões,
o teu coração sonâmbulo que canta
sob as redes vermelhas da lua.


Guayaquil, sílaba de lança, fio
de estrela equatorial, ferrolho aberto
das trevas úmidas que ondulam
como uma trança de mulher molhada:
porta de ferro maltratada
pelo suor amargo
que molha os cachos,
que goteja o marfim nas ramagens
e desliza à boca dos homens
mordendo como um ácido marinho.


Subi às rochas de Mollendo, brancas,
árido resplendor e cicatrizes,
cratera cujo gretado continente
subjuga entre as pedras seu tesouro,
a angústia do homem acurralado
nas calvícies do despenhadeiro,
sombra das metálicas gargantas,
promontório amarelo da morte.


Pisagua, letra da dor, manchada
pelo tormento, em tuas ruínas vazias,
em teus alcantilados pavorosos,
em teu cárcere de pedra e soledades
se pretendeu esmagar a planta humana,
se quis fazer de corações mortos
um tapete, rebaixar a desventura
como marca raivosa até romper
a dignidade: ali pelas salobras
ruelas vazias, os fantasmas
da desolação movem seus mantos,
e nas desnudas gretas ofendidas
está a história como um monumento
golpeado pela espuma solitária.

Pisagua, no vazio de teus cumes,
na furiosa solidão, a força
da verdade do homem se levanta
como um despido e nobre monumento.


Não é só um homem, não é só um sangue
o que manchou a vida em tuas encostas,
são todos os verdugos amarrados
ao lamaçal ferido, aos suplícios,
ao matagal da América enlutada,
e quando se povoaram com prisões
tuas desérticas pedras escarpadas
não foi só mordida uma bandeira,
não foi só um bandido venenoso,
mas a fauna das águas vis
que repete seus dentes na história,
atravessando com mortal punhal
o coração do povo desditado,
manietando a terra que os fez,
desonrando a areia da aurora.


Oh, portos arenosos, inundados
pelo salitre, pelo sal secreto
que deixa as dores na pátria
e leva o ouro ao deus desconhecido
cujas unhas rasparam a cortiça
de nossos dolorosos territórios.


Antofagasta, cuja voz remota
desemboca na luz cristalizada
e se amontoa em sacos e adegas
e se reparte na aridez matutina
na direção dos navios.

Rosa ressecada de madeira, Iquique,
entre tuas brancas balaustradas, junto
de teus muros de pinho, que a lua
do deserto e do mar impregnaram,
foi vertido o sangue de meu povo,
foi assassinada a verdade, desfeita
em sanguinária polpa a esperança:
o crime foi enterrado pela areia
e a distância sepultou os estertores.


Tocopilla, espectral, sob os montes,
debaixo da nudez cheia de agulhas
corre a neve seca do nitrato
sem extinguir a luz de seu desígnio
nem a agonia da mão escura
que sacudiu a morte nos torrões.


Desamparada costa que rechaças
a água afogada do amor humano,
escondido em tuas margens calcárias
como o metal maior da vergonha.

A teus portos desceu o homem enterrado
para ver a luz das ruas vendidas,
para desatar o coração espesso,
para esquecer arenais e desgraças.

Tu quando passas, quem és, quem desliza
por teus olhos dourados, quem acontece
nos cristais? Desces e sorris,
aprecias o silêncio nas madeiras,
tocas a lua opaca das vidraças
e nada mais: o homem está guardado
por carnívoras sombras e barrotes,
está estendido em seu hospital dormindo
sobre os arrecifes da pólvora.


Portos do sul, que desfolharam
a chuva das folhas em meu rosto;
coníferas amargas do inverno
de cujo manancial cheio de agulhas
choveu a solidão em minhas dores.

Puerto Saavedra, gelado nas ribeiras
do Imperial: as desembocaduras
areentas, o glacial lamento
das gaivotas que me pareciam
surgir como flores de laranjeira tempestuosas,
sem que ninguém arrulhasse suas folhagens,
doces desviadas para minha ternura,
despedaçadas pelo mar violento
e salpicadas nas soledades.


Mais tarde meu caminho foi a neve
e nas casas adormecidas do estreito
em Punta Arenas, em Puerto Natales,
na extensão azul do uivo,
na sibilante, na desenfreada
noite final da terra, vi as tábuas
que resistiram, acendi as lâmpadas
sob o vento feroz, meti as mãos
na nua primavera antártica
e beijei o pó frio das ultimas flores.




XIV
Os navios

Os barcos da seda sobre a luz levados,
erigidos na violeta matutina,
cruzando o sol marítimo, com rubros pavilhões
desfiados como estames andrajosos,
o odor caloroso das caixas douradas
que a canela fez ressoar como violinos,
e a cobiça fria que sussurrou nos portos
numa tempestade de mãos esfregadas,
as bem-vindas suavidades verdes
dos jades, e o pálido cereal da seda,
tudo passeou no mar como uma viagem do vento,
como um baile de anêmonas que desapareceram.


Vieram as delgadas velocidades, finas
ferramentas do mar, peixes de trapo,
dourados pelo trigo, destinados
por suas mercadorias cinzentas,
por pedras transbordantes que brilharam
como o fogo caindo entre as suas velas,
ou repletos de flores sulfurosas
recolhidas em ermos salinos.

Outros carregaram raças, dispuseram
na umidade de baixo, acorrentados,
olhos cativos que gretaram com lágrimas
a pesada madeira do navio.

Pés recém-separados do marfim, amarguras
amontoadas como frutos malferidos,
dores esfoladas como cervos: cabeças
que caíram dos diamantes do verão
na profundidade do esterco infame.


Navios cheios de trigo que tremeram
sobre as ondas como nas planícies
o vento cereal das espigas:
barcos das baleias, eriçadas
de corações duros como arpões,
lentos de caçadas, deslocando
para Valparaíso suas adegas,
velas graxentas que se sacudiram
feridas pelo gelo e pelo azeite
até encher as taças da nave
com a colheita branda ela fera.

Barcas desmanteladas que cruzaram
de tombo em tombo no furor marinho
com o homem agarrado a suas lembranças
e os andrajos derradeiros do barco,
antes que, como mãos amputadas,
os fragmentos do mar os conduzissem
às delgadas bocas que povoaram
o espumoso mar em sua agonia.

Naves dos nitratos, aguçadas
e alegres como indômitos delfins
até as sete espumas deslizadas
pelo vento em suas savanas gloriosas,
finas como os dedos e as unhas,
velozes como plumas e corcéis,
navegadoras do mar moreno
que bica os metais de minha pátria.




XV
A uma carranca de proa (elegia)

Nas areias de Magalhães te recolhemos, cansada
navegante, imóvel
sob a tempestade que tantas vezes teu peito doce e duplo
desafiou dividindo em seus mamilos.

Te levantamos outra vez sobre os mares do sul, mas agora
foste a passageira do obscuro, dos rincões, igual
no alto-mar, envolta pela noite marinha.


Hoje és minha, deusa que o albatroz gigante
roçou com a sua estatura estendida no vôo,
como um manto de música dirigida na chuva
por tuas cegas e errantes pálpebras de madeira.

Rosa do mar, abelha mais pura que os sonhos,
amendoada mulher que desde as raízes
de um carvalho povoado pelos cantos
te fizeste forma, força de folhagem com ninhos,
boca de tempestades, doçura delicada
que iria conquistando a luz com seus quadris.


Quando anjos e rainhas que nasceram contigo
se encerraram de musgo, dormiram destinados
à imobilidade com um honor de mortos,
subiste à proa delgada do navio
e anjo e rainha e onda, tremor do mundo foste.

O estremecimento dos homens subia
até a tua nobre túnica com peitos de maçã,
enquanto os teus lábios eram oh! doce! umedecidos
por outros beijos dignos de tua boca selvagem.


Sob a chuva estranha a tua cintura deixava
cair o peso puro da neve nas ondas
cortando na sombria magnitude um caminho
de fogo derrubado, de mel fosforescente.

O vento abriu em teus cacheados sua caixa tempestuosa,
o desencadeado metal de seu gemido,
e na aurora a luz te recebeu tremendo
nos portos, beijando o teu diadema molhado.


Às vezes detiveste sobre o mar o teu caminho
e o barco tremulante desceu por seu costado,
como uma gorda fruta que se desprende e cai,
um marinheiro morto que acolheram a espuma
e o movimento puro do tempo e do navio.

E somente tu entre todos os rostos esmagados
pela ameaça, mergulhados numa dor estéril,
recebeste o sal salpicado em tua máscara,
e os teus olhos guardaram as lágrimas salgadas.

Mais de uma pobre vida resvalou pelos teus braços
para a eternidade das águas mortuárias,
e o rocio que te deram os mortos e os vivos
gastou o teu coração de madeira marinha.


Hoje recolhemos da areia a tua forma.

Afinal, a meus olhos estavas destinada.

Dormes talvez, adormecida, talvez morreste, morta:
teu movimento, por fim, esqueceu o sussurro
e o esplendor errante fechou sua travessia.

Iras do mar, golpes do céu coroaram
tua altaneira cabeça com gretas e rupturas,
e teu rosto como um caracol repousa
com feridas que marcam teu rosto equilibrado.


Para mim tua beleza guarda todo o perfume,
todo o ácido errante, toda a sua noite escura.

E em teu empinado peito de lâmpada ou de deusa,
torre turgente, imóvel amor, vive a vida.

Tu navegas comigo, recolhida, até o dia
em que deixem cair o que sou na espuma.




XVI
O homem no navio

Além da linha do navio
fiada pelo sal em movimento,
entre a graxa morta que transpassa os sonhos
o tripulante dorme com nua fadiga,
alguém de guarda arrasta um cabo de metal,
soa o mundo
do barco, range o vento nas madeiras,
palpitam surdamente os ferros viscerais,
o foguista olha o seu rosto num espelho:
num pedaço partido de vidro, reconhece
dessa ossuda máscara manchada pelo fumo
uns olhos: aqueles olhos que amou Graciela
Gutiérrez, antes de morrer, sem que junto
a seu leito estes olhos que amou pudessem vê-la,
levá-la nesta última embarcação, adentro
da jornada, entre as brasas e o azeite.

Vão importa, com os beijos que se uniam
entre as viagens e aqueles presentes, agora ninguém,
ninguém na casa, O amor na noite do mar,
toca todos os leitos dos que dormem, vive
mais embaixo de navio; como uma alga
noturna que desliza seus ramos para cima.


Há outros estendidos na noite da viagem,
no vazio, sem mar sob os sonhos,
como a vida, alturas fragmentadas, pedaços
da noite, pedregulhos que separaram
a destroçada rede dos sonhos.

A terra
de noite invade o mar com suas ondas e cobre
o coração do pobre passageiro adormecido
com uma única sílaba de pó, com uma
colherada de morte que o reclama.


Toda pedra oceânica é oceano, a mínima
cintura ultravioleta da medusa, o céu
com todo o seu vazio constelado, a lua
tem mar abolido em seus espectros:
mas o homem fecha seus olhos, morde um pouco
seus passos, ameaça seu coração pequeno,
e soluça e arranha a noite com suas unhas,
procurando terra, fazendo-se verme.


É terra que as águas não cobrem e não matam.


É orgulho de argila que morrerá no cântaro,
quebrando-se, separando as gotas que cantaram,
amarrando à terra sua indecisa costura.


Não busques no mar esta morte, não esperes
território, não guardes o punhado de pó
para integrá-lo intacto e entregá-lo à terra.


Entrega-o a estes lábios infinitos que cantam,
doa-os a este coro de movimento e mundo,
destrói-te na eterna maternidade da água.




XVII
Os enigmas

Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre [as suas patas de ouro
e eu vos respondo: O mar o sabe.

Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente? Que espera?
Eu vos digo, espera como vós o tempo.

Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.


Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
[do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.

Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré austral?
E sobre a construção cristalina do pólipo tereis embaralhado, sem dúvida,
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactite que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
[que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.


Eu não sou mais que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, ,medidas
de um tímido hemisfério de laranja.


Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.




XVIII
As pedras da praia

Oceânicas não tendes a matéria
que emerge das terras vegetais
entre a primavera e as espigas.


O tacto azul do ar que navega
entre as uvas não conhece o rosto
que da solidão sai ao oceano.


O rosto das rochas destroçadas,
que não conhece abelhas, que não tem
mais que a agricultura das ondas,
o rosto das pedras que aceitaram
a desolada espuma do combate
em suas eternidades gretadas.


Ásperas naves de granito hirsuto
entregue à cólera, planetas
em cuja imóvel dimensão detêm
as bandeiras do mar seu movimento.


Tronos da intempérie dos furacões.


Torres de soledades sacudidas.


Tendes, rochas do mar, a vitoriosa
cor do tempo, o material gastado
por uma eternidade em movimento.


O fogo fez nascer estes lingotes
que o mar estremeceu com suas granadas.


Esta ruga em que o cobre e a salmoura
se uniram: este ferro alaranjado,
estas manchas de prata c de pomba,
são o muro mortal e a fronteira
da profundidade com seus cachos.


Pedras de solidão, pedras amadas
de cujas duras cavidades pende
o tumultuoso frio das algas,
e a cuja borda ornada pela lua
sobe a solidão das praias.

Dos pés perdidos na areia
que aroma se perdeu, que movimento
de corola nupcial subiu tremendo?

Plantas de areia, triângulos carnosos,
aplanadas substâncias que chegaram
a acender seu fulgor sobre as pedras,
primavera marinha, delicada
taça sobre as pedras erigida,
pequeno raio de amaranto apenas
aceso e gelado pela fúria,
dá-me a condição que desafia
as areias do páramo estrelado.


Pedras do mar, centelhas detidas
no combate da luz, sinos
dourados pelo óxido, afiadas
espadas da dor, cúpulas partidas
em cujas cicatrizes se constrói
a estátua desdentada da terra.




XIX
Molusco gongorino

Da Califórnia trouxe um múrex espinhoso,
a sílica em suas farpas, ataviada com fumo
sua eriçada postura de rosa congelada,
e seu interior rosado de paladar ardia
com uma suave sombra de corola carnosa.


Mas tive uma ciprinóide cujas manchas saíram
sobre sua capa, ornando o seu veludo puro
com círculos queimados de pólvora ou pantera,
e outra levou em seu dorso liso como uma taça
um ramo de rios tatuados na lua.


Mas a linha espiral, sustentada
apenas pelo ar, oh,
escadaria, escadaria delicada,
oh, monumento frágil da aurora
que um anel com opala amassada
enrola deslizando a sua doçura.


Tirei do mar, abrindo as areias,
a ostra eriçada de coral sangrento,
spondylus, fechando em suas metades
a luz de seu tesouro submerso,
cofre envolto em agulhas escarlates,
ou neve com espinhos agressores.


A azeitona grácil recolhi da areia,
úmida caminhante, pé de púrpura,
jóia umedecida em cuja forma
a fruta endureceu sua chamarada,
poliu o cristal sua condição marinha
e ovalou a pomba a sua nudez.


O caracol do tritão reteve
a distância na gruta do som
e na estrutura de sua cal trançada
sustém o mar com pétalas, sua cúpula.


Oh, rostellaria, flor impenetrável
como um signo erguido numa agulha,
mínima catedral, lança rosada,
espada da luz, pistilo de água.


Mas na altura da aurora assoma
o filho da luz, feito de lua,
o argonauta que um tremor dirige,
que um trêmulo contacto da espuma
amassou, navegando em uma onda
com sua nau espiral de jasmineiro.


E então escondida na maré,
boca ondulante do mar cor de amora,
seus lábios de titânica violeta,
a tridacna fechou como um castelo,
e lá a sua rosa colossal devora
as azuis estirpes que a beijam:
monastério de sal, herança imóvel
que encarcerou uma onda endurecida.


Mas devo nomear, tocando apenas,
ó Nautilus, a tua alada dinastia,
a redonda equação em que navegas
deslizando a tua nau nacarada,
a tua espiral geometria em que se fundem,
relógio do mar, o nácar e a linha,
e devo até as ilhas, no vento,
ir-me contigo, deus da estrutura.




XX
As aves maltratadas

Alto sobre Tocopilla está o pampa nitroso,
os ermos, a mancha das salinas, é o
deserto sem uma folha, sem um escaravelho,
sem uma fibra, sem uma sombra, sem tempo.


La a garuma dos mares fez os seus ninhos,
faz tempo, na areia solitária e quente,
deixou seus ovos debulhando o vôo
desde a costa, nas ondas da plumagem,
até a solidão, até o remoto
quadrado do deserto que alcatifaram
com o tesouro suave da vida.


Formoso rio desde o mar, selvagem
solidão do amor, plumas do vento
arredondadas em globos de magnólia,
vôo arterial, palpitação alada
em que todas as vidas acumulam,
num rio reunido, suas pressões:
assim o sal estéril foi povoado,
foi coroado o páramo de plumas
e o vôo se incubou nos areais.


Chegou o homem.
Talvez encheram
a sua miséria de pálido extraviado
do deserto, os ramos do arrulho
que como o mar tremia no deserto,
talvez o deslumbrou como uma estrela
a extensão crepitante de brancura,
mas chegaram outros em seus passos.


Chegaram na alva, com garrotes
e com cestos, roubaram o tesouro,
espancaram as aves, derrotaram
ninho por ninho a nau de plumas,
sopesaram os ovos e esmagaram
aqueles que tinham criatura.


Levantaram-nos à luz e os arremessaram
contra a terra do deserto, em meio
ao vôo e ao grasnido e à onda
do rancor, e as aves estenderam
toda a sua fúria no ar invadido,
e cobriram o sol com as suas bandeiras:
mas a destruição feriu os ninhos,
arvorou o garrote e arrasada
foi a cidade do mar no deserto.


Mais tarde a cidade, na salmoura
vespertina de névoas e bêbados,
ouviu passar os cestos que vendiam
ovos de ave do mar, frutos selvagens
do ermo em que nada sobrevive,
senão a soledade sem estações,
e o sal agredido e rancoroso.




XXI
Leviatã

Arca, paz iracunda, resvalada
noite bestial, antártica estrangeira,
não passarás por mim deslocando
teu timbale de sombra sem que um dia
eu entre por tuas paredes e levante
a tua armadura de inverno submarino.


Para o sul crepitou o teu fogo negro
de expulsado planeta, o território
de teu silêncio que moveu as algas
sacudindo a idade da mata.


Foi só forma, magnitude fechada
por um tremor do mundo em que desliza
a sua majestade de couro amedrontado
por sua própria potência e sua ternura.


Arca de cólera acesa
com as tochas da neve negra,
quando o teu sangue cego foi fundado
a idade do mar dormia nos jardins,
e em sua extensão a lua desfazia
a cauda de seu ímã fosforescente,
A vida crepitava
como uma fogueira azul, mãe medusa,
multiplicada tempestade de ovários,
e todo o crescimento era pureza,
palpitação de pâmpano marinho.


Assim foi a tua gigante mastreação
disposta entre as águas como a passagem
da maternidade sobre o sangue,
e teu poder foi noite imaculada
que resvalou inundando as raízes.

Extravio e terror estremeceram
a solidão, e fugiu o teu continente
para além das ilhas esperadas:
mas o terror passou sobre os globos
da lua glacial, e entrou em tua carne,
agrediu solidões que ampararam
a tua aterradora lâmpada apagada.

A noite foi contigo: te envolvia
aderindo-te um limo tempestuoso
c revolveu a tua cauda de furacão
o gelo em que dormiam as estrelas.


Oh, grande ferida, manancial quente
revolvendo seus trovões derrotados
na comarca do arpão, tingido
pelo mar do sangue, dessangrado,
doce e adormecido bicho conduzido
como um ciclone de partidos hemisférios
até as barcas negras da graxa
povoadas por rancor e pestilência.


Oh, grande estátua morta nos cristais
da luta polar, enchendo o céu
como uma nuvem de terror que chora
e cobre os oceanos de sangue.




XXII
“Phalacrocorax”

Aves estercorárias das ilhas,
multiplicada vontade do vôo,
celeste magnitude, inumerável
emigração do vento da vida,
quando os vossos cometas deslizam
areando o céu sigiloso
do calado Peru, voa o eclipse.

Oh, lento amor, selvagem primavera
que desenraíza sua taça plena
e navega a nave da espécie
com um fluvial tremor de água sagrada
deslocando o seu céu caudaloso
para as ilhas vermelhas do esterco.


Eu quero submergir-me em vossas asas,
ir para o sul dormindo, sustido
por toda a mata tremulante.

Ir no rio escuro das flechas
com uma voz perdida, dividir-me
na palpitação inseparável.

Depois, chuva do vôo, as calcárias
ilhas abrem o seu frio paraíso
de onde cai a lua da plumagem,
a tormenta enlutada das plumas.


O homem inclina então sua cabeça
ante o arrulho das aves mães,
e cava esterco com as mãos cegas
que levantam as grades uma a uma,
raspa a claridade do escremento,
acumula as fezes derramadas.

e se prosterna ao meio das ilhas
da fermentação, corno um escravo,
saudando as ácidas ribeiras
que coroam os pássaros ilustres.




XXIII
Não só o albatroz

Não da primavera, não esperadas
sois, não na sede da corola,
não no mel roxo que se entretece
fibra por fibra em cepas e cachos,
mas na tempestade, na andrajosa
cúpula torrencial do arrecife,
na greta perfurada pela aurora,
e ainda mais, sobre as lanças verdes
do desafio, na desmoronada
solidão dos páramos marinhos.


Noivas do sal, pombas procelárias,
a todo aroma impuro da terra
destes o dorso pelo mar molhado,
e na selvagem claridade mergulhastes
a geometria celestial do vôo.


Sagradas sois, não só a que andou
como gota ciclônica no ramo
do vendaval: não só a que se aninha
nas vertentes da fúria, mas
a gaivota de neve arredondada,
a forma do remeiro sobre a espuma,
o prateado fardel de platina.


Quando tombou fechado como um nó
o alcatraz, mergulhando o seu volume,
e quando navegou a profecia
nas asas extensas do albatroz,
e quando o vento do petrel voava
sobre a eternidade em movimento,
para além dos velhos cormorões,
meu coração se recolheu em sua taça
e estendeu aos mares e às plumas
a desembocadura de seu canto.


Dá-me o estanho gelado que no peito
levais às pedras tempestuosas,
dá-me a condição que se congrega
nas garras da águia marinha,
ou a estatura imóvel que resiste
a todos os crescimentos e rupturas,
o vento da flor de laranjeira desamparado
e o sabor da pátria desmedida.




XXIV
A noite marinha

Noite marinha, estátua branca e verde,
te amo, dorme comigo.
Fui por todas
as ruas calcinando-me e morrendo,
cresceu comigo a madeira, o homem
conquistou a sua cinza e se dispôs
a descansar rodeado pela terra.


Fechou a noite para que os teus olhos
não vissem o seu repouso miserável:
quis proximidade, abriu os braços
custodiado por seres e por muros,
e caiu no sonho do silêncio, baixando
à terra funeral com suas raízes.

Eu, noite oceano, a tua forma aberta,
à tua extensão que Aldebarã vigia,
à boca molhada de teu canto
cheguei com o amor que me constrói.


Te vi, noite do mar, quando nascias
golpeada pelo nácar infinito:
vi se tecerem as fibras estreladas
e a eletricidade de tua cintura
e o movimento azul dos sons
que acossam a tua doçura devorada.


Ama-me sem amor, sangrenta esposa.


Ama-me com espaço, com o rio
de tua respiração, com o aumento
de todos os teus diamantes transbordados:
ama-me sem a trégua de teu rosto,
dá-me a retidão de teu quebranto.


Formosa és, amada, noite formosa:
guardas a tempestade como uma abelha
adormecida em teus estames alarmados,
e sonho e água tremem nas taças
de teu peito acossado de vertentes.


Noturno amor, segui o que erguias,
tua eternidade, a torre tremulante
que assume as estrelas, a medida
de tua vacilação, as povoações
que levanta a espuma em teus costados:
estou acorrentado à tua garganta
e aos lábios que rompes na areia.


Quem és? Noite dos mares, dize-me
se a ma escarpada cabeleira cobre
toda a solidão, se é infinito
este espaço de sangue e de prados.

Dize quem és, cheia de navios,
cheia de luas que tritura o vento,
dona de todos os metais, rosa
da profundidade, rosa molhada
pela intempérie do amor nu.


Túnica da terra, estátua verde,
dá-me uma onda como um sino,
dá-me uma onda de flor de laranjeira furiosa,
a multidão de fogueiras, os navios
do céu capital, a água em que navego,
a multidão do fogo celeste: quero um só
minuto de extensão e mais que todos
os sonhos, tua distância:
toda a púrpura que medes, o grave
pensativo sistema constelado:
toda a tua cabeleira que visita
a escuridão, e o dia que preparas.


Quero ter a tua fronte simultânea,
abri-la em meu interior para nascer
em todas as tuas praias, ir agora
com todos os segredos respirados,
com as tuas escuras linhas resguardadas
em mim como o sangue ou as bandeiras,
levando estas secretas proporções
ao mar de cada dia, aos combates
que em cada porta - amores e ameaças -
vivem adormecidos.

Mas então
entrarei na cidade com tantos olhos
como os teus, e sustentarei a vestimenta
com que me visitaste, e que me toquem
até a água total que não se mede:
pureza e destruição contra toda a morte,
distância que não pode gastar-se, música
para os que dormem e para os que despertam.