Pablo Neruda

Pablo Neruda
Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.
Nobel
Nasceu a 12 Julho 1904 (Parral, Chile)
Morreu em 23 Setembro 1973 (Santiago, Chile)
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Canto IX - Que acorde o lenhador

I
Que acorde o lenhador

A oeste do Colorado River
há um lugar que amo.
Acorro ali com tudo o que palpitando
transcorre em mim, com tudo
o que fui, o que sou, o que mantenho.
Há umas altas pedras vermelhas, o ar
selvagem de mil mãos
as fez edificar estruturas:
o escarlate cego subiu do abismo
e nelas se fez cobre, fogo e força.
América estendida como a pele do búfalo,
aérea e clara noite do galope,
lá para as alturas estreladas,
bebo a tua taça de verde orvalho.

Sim, por acre Arizona e Wisconsin nodoso,
até Milwaukee levantada contra o vento e a neve
ou nos excitados pântanos de West Palm,
perto dos pinheirais de Tacoma, no espesso
odor de aço de teus bosques,
andei pisando terra mãe,
folhas azuis, pedras de cachoeira
, furacões que tremiam como toda música,
rios que rezavam como os monastérios,
marrecos e maçãs, terras e águas,
infinita quietude para que o trigo nasça.

Ali pude, em minha pedra central, estender ao ar
olhos, ouvidos, mãos, até ouvir
livros, locomotivas, neve, lutas,
fábricas, tumbas, vegetais, passos,
e de Manhattan a lua no navio,
o canto da máquina que fia,
a colher de ferro que come terra,
a perfuratriz com seu golpe de condor
e tudo o que corta, oprime, corre cose:
seres e rodas repetindo e nascendo.

Amo o pequeno lar do farmer. Recentes mães dormem
aromadas como o xarope do tamarindo, os panos
recém-passados. Arde
o fogo em mil lares rodeados de cebolas
. (Os homens quando cantam perto do rio têm
uma voz rouca como as pedras do fundo:
o tabaco saiu de suas largas folhas
e como um duende do fogo chegou a estes lares.)
Vinde para dentro de Missouri, olhai o queijo e a farinha,
as tábuas olorosas, rubras como violinos,
o homem navegando a cevada,
o potro azul recém-montado cheira
o aroma do pão e da alfafa:
sinos, papoulas, ferrarias,
e nos destrambelhados cinemas silvestres
o amor abre a sua dentadura
no sonho nascido da terra.
É tua paz que amamos, não a tua máscara.
Não é formoso o teu rosto guerreiro.
És formosa e vasta, América do Norte.
Vens de humilde berço como uma lavadeira,
junto de teus rios, branca.
Edificada no desconhecido,
em tua paz de colmeia o doce teu.
Amamos o teu homem com as mãos vermelhas
do barro de Oregon, teu menino negro
que te trouxe a música nascida
em sua comarca de marfim: amamos
tua cidade, tua substância,
tua luz, teus mecanismos, a energia
do oeste, o pacífico
mel, de colmeal e aldeia,
o gigante jovem no trator,
a aveia que herdaste
de Jefferson, a roda rumorosa
que mede a tua terrestre oceania,
o fumo de uma fábrica e o beijo
número mil de uma colônia nova:
teu sangue lavrador é o que amamos:
a tua mão popular cheia de azeite.

Sob a noite dos prados já faz tempo
repousam sobre a pele do búfalo em grave
silêncio as sílabas, o canto
do que fui antes de ser, do que fomos.
Melville é um abeto marinho, de seus ramos
nasce uma curva de carena, um braço
de madeira e navio. Whitman inumerável
como os cereais, Poe em sua matemática
treva, Dreiser, Wolfe,
frescas feridas de nossa própria ausência,
Lockridge recente, atados à profundidade,
quantos outros, atados à sombra:
sobre eles a mesma aurora do hemisfério arde
e deles está feito o que somos,
Poderosos infantes, capitães cegos,
entre acontecimentos e folhagens às vezes amedrontados,
interrompidos pela alegria e pela dor,
sob os prados cruzados de tráfico,
quantos mortos nas planícies antes não visitadas:
inocentes atormentados profetas recém-impressos,
sobre a pele do búfalo dos prados.

Da França, de Okinawa, das coralinas
de Leyte (Norman Mailer o deixou escrito),
do ar enfurecido e das ondas,
retornaram quase todos os rapazes
. Quase todos ... Foi verde e amarga a história
de lama e suor: não ouviram
bastante o canto dos arrecifes
nem tocaram talvez a não ser para morrer nas ilhas, as coroas
de fulgor e fragrância:
sangue e esterco
os perseguiram, a imundície e as ratazanas,
e um cansado e desolado coração que lutava.
Mas já voltaram,
os recebestes
no vasto espaço das terras estendidas
e se fecharam (os que voltaram) como uma corola
de inumeráveis pétalas anônimas
para renascer e olvidar.


II
Mas além disso encontraram
um hóspede em casa,
ou trouxeram novos olhos (ou foram cegos antes)
ou a hirsuta ramaria lhes rompeu as pálpebras
ou novas coisas há nas terras da América.
Aqueles negros que combateram contigo, os
duros e sorridentes, olhai:
puseram uma cruz ardendo
diante de seus casarios,
enforcaram e queimaram o teu irmão de sangue:
fizeram-no combatente, hoje lhe negam
palavra e decisão: juntam-se
à noite os verdugos
encapuzados, com a cruz e o chicote.
(Outra coisa
se ouvia em além-mar combatendo.)
Um hóspede imprevisto

como um velho octópode roído,
imenso, circundante,
instalou-se em tua casa, soldadinho:
a imprensa destila o antigo veneno, cultivado em Berlim .
Os jornais (Times, Newsweek, etc.) converteram-se
em amarelas folhas de delação: Hearst,
que cantou o canto de amor aos nazistas, sorri
e afia as unhas para que partais de novo
para os arrecifes ou para as estepes
a combater por este hóspede que ocupa a tua casa.
Não te dão trégua: querem continuar vendendo
aço e balas, preparam uma nova pólvora
e é preciso vendê-la logo, antes que lhe passe à frente
a fresca pólvora e caia em novas mãos.
Por todas as partes os amos instalados
em tua mansão aumentam suas falanges,
amam a Espanha negra e uma taça de sangue te oferecem
(um fuzilado, cem): o coquetel Marshall.
Escolhei sangue jovem: camponeses
da China, prisioneiros
da Espanha,
sangue e suor de Cuba açucareira,
lágrimas de mulheres,
das minas de cobre e do carvão no Chile,
logo batei com energia
como um golpe de garrote
não esquecendo pedacinhos de gelo e algumas gotas
do canto Defendemos a cultura cristã.
É amarga esta mistura?
Já te acostumarás, soldadinho, a bebe-la.
Em qualquer lugar do mundo, à luz da lua,
ou pela manhã, no hotel de luxo,
pede esta bebida que dá vigor e refresca
e paga-a com uma boa nota
com a imagem de Washington.

Descobriste também que Charlie Chaplin, o último
pai da ternura no mundo,
deve fugir, e que os escritores (Howard Fast, etc.),
os sábios e os artistas
em tua terra
devem sentar-se para ser julgados por “un-american” pensamentos
diante dum tribunal de mercadores enriquecidos pela guerra.
Até os últimos confins do mundo chega o medo.
Minha tia lê essas notícias assustada,
e todos os olhos da terra olham
para esses tribunais de vergonha e vingança.
São os estrados dos Babbits sangrentos, `
dos escravagistas, dos assassinos de Lincoln,
são as novas inquisições levantadas agora
não pela cruz (e então era horrível e inexplicável)
mas pelo ouro redondo que bate
nas mesas dos prostíbulos e nos bancos
e que não tem, o direito de julgar.

Em Bogotá uniram-se Moríñigo, Trujillo,
González Videla, Somoza, Dutra, e aplaudiram.
Tu, jovem americano, não os conheces: são
os vampiros sombrios de nosso céu, amarga
é a sombra de suas asas:
prisões,
martírio, morte, ódio: as terras
do sul com petróleo e nitrato
conceberam monstros.
À noite no Chile, em Lota,
na humilde e molhada casa dos mineiros,
chega a ordem do verdugo. Os filhos
acordam chorando.
Milhares deles
encarcerados, pensam.
No Paraguai
a densa sombra florestal esconde
os ossos do patriota assassinado, um tiro
soa
na fosforescência do verão.
Morreu
ali a verdade.
Por que não intervêm
em São Domingos para defender o Ocidente Mr. Vandenberg,
Mr. Armour, Mr. Marshall, Mr. Hearst?
Por que na Nicarágua o senhor presidente,
despertado à noite, atormentado, teve
de fugir para morrer no desterro?
(Ali há bananas a defender e não liberdades,
e para isso basta Somoza.)
As grandes
vitoriosas idéias estão na Grécia
e na China para auxílio
de governos manchados como alfombras imundas.
Ai, soldadinho!
 

III
Também eu mais além de tuas terras, América,
ando e faço minha casa errante, vôo, passo,
canto e converso através dos dias.
Na Ásia, na URSS, nos Uraís me detenho
e estendo minha alma empapada de soledades e resina.
Amo o quanto nos espaços
a golpes de amor e luta o homem criou.
Ainda rodeia a minha casa nos Urais
a antiga noite dos pinheiros
e o silêncio como uma alta coluna.
Trigo e aço aqui nasceram
da mão do homem, de seu peito.
E um canto de martelos alegra o bosque antigo
como um novo fenômeno azul.
Daqui olho extensas zonas do homem,
geografia de meninos e mulheres, amor,
fábricas e canções, escolas
que brilham como goivos na selva
onde morou até ontem a raposa selvagem.
Daquele ponto abarca a minha mão no mapa
o verde dos prados, o fumo
de mil oficinas, os aromas
têxteis, o assombro
da energia dominada.
Volto nas tardes
pelos novos caminhos recém-traçados
e entro nas cozinhas
onde ferve o repolho e de onde sai
um novo manancial para o mundo.
Também aqui regressaram os rapazes,
mas muitos milhões ficaram atrás,
enganchados, pendurados nas forcas,
queimados em fornos especiais,
destruídos até não ficar deles
mais que o nome na lembrança.
Também foram assassinadas suas povoações:
a terra soviética foi assassinada:
milhões de vidros e ossos se confundiram,
vacas e fábricas, até a primavera
desapareceu tragada pela guerra.
Voltaram os rapazes, no entanto,
e o amor pela pátria construída
se havia mesclado neles com tanto sangue
que Pátria dizem com as veias,
União Soviética cantam com o sangue.
Foi alta a voz dos conquistadores
da Prússia e de Berlim quando voltaram
para que renascessem as cidades,
os animais e a primavera.

Walt Whitman, ergue a tua barba de relva,
olha comigo do bosque,
destas magnitudes perfumadas.
Que vês aí, Walt Whitman?
Vejo, me diz meu irmão profundo,
vejo como trabalham as usinas,
nas cidades que os mortos recordam,
na capital pura,
na resplandecente Stalingrado.
Vejo da planície combatida
do padecimento e do incêndio
nascer na umidade da manhã
um trator rechinante na direção das planuras.
Dá-me a tua voz e peso de teu peito enterrado,
Walt Whitman, e as graves
raízes de teu rosto
para cantar estas reconstruções!
Cantemos juntos o que se levanta
de todas as dores, o que surge
do grande silêncio, da grave
vitória:
Stalingrado, surge a tua voz de aço,
renasce andar por andar a esperança
como uma habitação coletiva,
e há um tremor de novo em marcha
ensinando,
cantando
e construindo.
Do sangue surge Stalingrado
como uma orquestra de água, pedra e ferro
e o pão renasce nas padarias,
a primavera nas escolas,
sobe novos andaimes, novas árvores,
enquanto o velho e férreo Volga palpita.
Estes livros,
em frescas caixas de pinho e cedro,
estão reunidos sobre o túmulo
dos verdugos mortos:
estes teatros feitos nas ruínas
cobrem martírio e resistência:
livros claros como monumentos:
um livro sobre cada herói,
sobre cada milímetro de morte,
sobre cada pétala desta glória imutável.

União Soviética, se juntássemos
todo o sangue derramado em tua luta,
todo o que deste como mãe ao. mundo
para que a liberdade agonizante vivesse,
teríamos um novo oceano,
grande como nenhum outro,
profundo como nenhum outro,
vivente como todos os rios,
ativo como o fogo dos vulcões araucanos.
Neste mar mergulha a tua mão,
homem de todas as terras,
e levanta-a depois para afogar nele
aquele que esqueceu, que ultrajou,
o que mentiu e o que manchou,
o que se uniu com cem pequenos cachorros
da lixeira do Ocidente
para insultar o teu sangue, Mãe dos livres!

Do fragrante odor dos pinheiros urais
olho a biblioteca que nasce
no coração da Rússia,
o laboratório no qual o silêncio
trabalha, olho os trens que levam
madeira e canções a novas cidades,
e nesta paz balsâmica cresce um latejar
como em novo peito:
à estepe moças e pombas
regressam agitando a brancura,
os laranjais se povoam de ouro:
o mercado tem hoje
a cada amanhecer
um novo aroma,
um novo aroma que chega das altas terras
nas quais o martírio foi maior:
os engenheiros fazem tremular o mapa
das planícies com os seus números
e as tubulações se envolvem como longas serpentes
nas terras do novo inverno vaporoso.
Em três aposentos do velho Kremlin
vive um homem chamado José Stálin.
Tarde se apaga a luz de seu quarto.
O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.
Outros heróis deram à luz uma pátria,
ele além disso ajudou a conceber a sua,
a edificá-la,
a defendê-la.
Sua imensa pátria é, pois, parte dele mesmo
e não pode descansar porque ela não descansa.
Em outro tempo a neve e a pólvora
o encontraram diante dos velhos bandidos
que quiseram (como agora mais uma vez) reviver
o knut, e a miséria, a angústia dos escravos,
a dor adormecida de milhões de pobres.
Ele esteve contra os que como Wrangel e Denikin
foram enviados do Ocidente para “defender a cultura”.
Lá deixaram o couro aqueles defensores
dos verdugos, e no vasto terreno
da URSS, Stálin trabalhou noite e dia.
Porém mais tarde chegaram numa onda de chumbo
os alemães cevados por Chamberlain.
Stálin os enfrentou em todas as vastas fronteiras,
em todas as retiradas, em todos os assaltos
e até Berlim os seus filhos como um furacão de povos
chegaram e levaram a paz vasta da Rússia.

Molotov e Vorochilov
lá estão, eu os vejo,
com os outros, os altos generais,
os indomáveis.
Firmes como nevadas azinheiras.
Nenhum deles tem palácios.
Nenhum deles tem regimentos de servos.
Nenhum deles se tornou rico na guerra
vendendo sangue.
Nenhum deles vai como um pavão real
ao Rio de Janeiro ou a Bogotá
comandar pequenos sátrapas manchados de tortura:
nenhum deles tem duzentos trajes:
nenhum deles tem ações em fábricas de armamentos,
e todos eles têm
ações
na alegria e na construção
do vasto país onde ressoa a aurora
erguida na noite da morte.
Eles disseram “camarada” ao mundo.

Eles fizeram rei o carpinteiro.
Por essa agulha não entrará um camelo.
Lavaram as aldeias.
Repartiram a terra.
Elevaram o servo.
Apagaram o mendigo.
Aniquilaram os cruéis.
Fizeram luz na espaçosa noite.
 
Por isso a ti, moça de Arkansas, ou, melhor ainda,
a ti, jovem dourado de West Point, ou, melhor,
a ti, mecânico de Detroit, ou, ainda,
a ti, carregador da velha Orleans, a todos
falo e digo: firma teu passo,
abre teu ouvido ao vasto mundo humano,
não são os elegantes do State Department
nem os ferozes donos do aço
os que te estão falando,
mas um poeta do extremo sul da América,
filho dum ferroviário da Patagônia,
americano como o ar andino,
hoje fugitivo duma pátria na qual
o cárcere, o tormento, a angústia imperam
enquanto o cobre e o petróleo lentamente
se convertem em ouro para reis alheios.
Tu não és
o ídolo que numa mão leva o ouro
e na outra a bomba.
Tu és
o que sou, o que fui, o que devemos
amparar, o fraternal subsolo
da América puríssima, os singelos
homens dos caminhos e das ruas.
Meu irmão Juan vende sapatos
como o teu irmão John,
minha irmã Juana descasca batatas,
como a tua prima Jane,
e meu sangue é mineiro e marinheiro
como o teu sangue, Peter.

Tu e eu vamos abrir as portas
para que passe a brisa dos Urais
através da cortina de tinta,
tu e eu vamos dizer ao furioso:
“My dear guy, daqui não passarás”,
daqui pra cá a terra nos pertence
para que não se ouça a rajada
da metralhadora, porém uma
canção, e outra canção, e outra canção.



IV
Porém se armas as tuas hostes, América do Norte,
para destruir essa fronteira pura
e levar o magarefe de Chicago
ao governo da música e da ordem
que amamos,
sairemos das pedras e do ar
para morder-te:
sairemos da última janela
para derramar-te fogo:
sairemos das ondas mais profundas
para cravar-te com espinhos:
sairemos do eito para que a semente
golpeie como um punho colombiano,
sairemos para negar-te pão e água,
sairemos para queimar-te no inferno.

Não ponhas então o pé, soldado,
na doce França, porque lá estaremos
para que as verdes vinhas dêem vinagre
e as moças pobres te mostrem o local
no qual está fresco o sangue alemão.
Não subas pelas secas serras da Espanha
porque cada pedra se converterá em fogo,
e lá mil anos combaterão os valentes:
não te percas entre os olivais porque
nunca tornarás a Oklahoma, mas não entres
na Grécia, que até o sangue que hoje estás derramando
se levantará da terra para deter-vos.
Não venhais pescar então em Tocopilla
porque o peixe-espada conhecerá vossos despojos
e o obscuro mineiro da Araucania
procurará as antigas flechas cruéis
que esperam enterradas novos conquistadores.
Não confieis no gaúcho cantando uma vidalita,
nem no operário dos frigoríficos. Eles
estarão em todas as partes com olhos e punhos,
como os venezuelanos que vos esperam nessa ocasião
com uma garrafa de petróleo e uma guitarra nas mãos.
Não entres, não entres tampouco na Nicarágua.
Sandino dorme na selva até tal dia,
seu fuzil se encheu de cipós e de chuva,
seu rosto não tem pálpebras,
mas as feridas com que o matastes estão vivas
como as mãos de Porto Rico que esperam
as luzes das facas.
Será implacável o mundo para vós.
Não só as ilhas serão despovoadas, mas o ar
que já conhece as palavras que lhe são queridas.

Não chegues a pedir carne de homem
no alto Peru: na névoa roída dos monumentos
o doce antepassado de nosso sangue afia
contra ti as suas espadas de ametista,
e pelos vales o rouco caracol de batalha
congrega os guerreiros, os fundeiros
filhos de Amaru. Nem pelas cordilheiras mexicanas
busques homens para levá-los a combater a aurora;
os fuzis de Zapata não estão dormidos,
são azeitados e apontados para as terras do Texas.
não entres em Cuba, que do fulgor marinho
dos canaviais suarentos
há um único escuro olhar que te espera
e um único grito até matar ou morrer.
Não chegues
à terra de partisanos na rumorosa
Itália: não passes das filas dos soldados com jacquet
que manténs em Roma, não passes de São Pedro:
além os santos rústicos das aldeias,
os santos marinheiros do pescado
amam o grande país da estepe
no qual floresceu de novo o mundo.
Não toques
nas pontes da Bulgária, não te darão passagem,
os rios da Romênia, jogaremos neles sangue fervendo
para que queimem os invasores:
não cumprimentes o camponês que hoje conhece
os túmulos dos feudais, e vigia
com seu arado e seu rifle: não olhes para ele
porque te queimará como uma estrela.
Não desembarques
na China: já não existirá Chang, o Mercenário,
rodeado de sua apodrecida corte de mandarins:
haverá para esperar-vos uma selva
de foices labregas e um vulcão de pólvora.
Em outras guerras existiram fossos com água
e depois cercas de arame, com puas e garras,
mas este fosso é maior; estas águas mais fundas,
estes arames mais invencíveis que todos os metais.
São um átomo e outro do metal humano,
são um nó e mil nós de vidas e vidas:
são as velhas dores dos povos
de todos os remotos vales e reinos,
de todas as bandeiras e navios,
de todas as covas onde foram amontoados,
de todas as redes que saíram contra a tempestade,
de todas as ásperas rugas da terra,
de todos os infernos nas quentes caldeiras,
de todos os teares e das fundições,
de todas as locomotivas perdidas ou congregadas.
Este arame dá mil voltas no mundo:
parece dividido, desterrado,
e de repente se juntam seus ímãs
para encher a terra.
Porém ainda
mais longe, radiantes e determinados,
acerados, sorridentes,
para cantar ou combater
vos esperam
homens e mulheres da tundra e da taiga,
guerreiros do Volga que venceram a morte,
meninos de Stalingrado, gigantes da Ucrânia,
toda uma vasta e alta parede de pedra e sangue,
ferro e canções, coragem e esperança.
Se tocardes neste muro caireis
queimados como o carvão das usinas
, os sorrisos de Rochester se farão trevas
que logo a neve enterrará a brisa da estepe
e logo a neve enterrará para sempre.
Virão os que lutaram desde Pedro
Até os novos heróis que assombraram a terra
E farão de suas medalhas pequenas balas frias
Que silvarão sem trégua de toda
A vasta terra que hoje é alegria.
E do laboratório coberto de trepadeiras
Sairá também o átomo desencadeado
Na direção de vossas cidades orgulhosas.

 

V
Que nada disso aconteça.
Que desperte o Lenhador.
Que venha Abraham com seu machado
E com o seu prato de madeira
Para comer com os camponeses.
Que a sua cabeça de córtice,
Seus olhos vistos nas tábuas,
Nas rugas do carvalho,
Voltem a olhar o mundo
Subindo sobre as folhagens,
Mais altos que as sequóias.
Que entre para comprar nas farmácias,
Que tome um ônibus em Tampa,
Que morda uma maçã amarela,
Que entre num cinema, que converse
Com toda a gente simples.

Que desperte o Lenhador.

Que venha Abraham, que faça crescer
Seu velho fermento a terra
Dourada e verde de Illinois,
E levante o machado no meio do seu povo
Contra os novos escravagistas,
Contra o chicote do escravo,
contra o veneno da imprensa,
contra a mercadoria
sangrenta que querem vender.
Que marchem cantando e sorrindo
o jovem branco, o jovem negro,
contra as paredes de ouro,
contra o fabricante de ódio,
contra o mercador de sangue,
cantando, sorrindo e vencendo.

Que desperte o Lenhador.

VI
Paz para os crepúsculos que chegam,
paz para a ponte, paz para o vinho,
paz para as letras que me procuram
e que em meu sangue sobem enredando
v velho canto com terra e amores,
paz para a cidade na manhã
quando desperta o pão, paz para o rio
Mississípi, rio das raízes:
paz para a camisa de meu irmão,
paz para o livro como um selo de aragem,
paz para o grande colcós de Kíev,
paz para as cinzas destes mortos
e destes outros mortos, paz para o ferro
negro de Brooklyn, paz para o carteiro
de casa em casa como o dia,
paz para o coreógrafo que grita
com um megafone, às campanhas,
paz para a minha mão direita,
que só quer escrever Rosario:
paz para o boliviano secreto
como uma pedra de estanho, paz
para que tu te cases, paz para todas
as serrarias de Bío-Bío,
paz para o coração dilacerado
da Espanha guerrilheira:
paz para o pequeno museu de Wyoming,
no qual o mais doce
é um travesseiro com um coração bordado,
paz para o padeiro e seus amores
e paz para a farinha: paz
para todo o trigo que deve nascer,
para todo o amor que buscará folhagem,
paz para todos os que vivem: paz
para todas as terras e todas as águas.


Aqui eu me despeço, volto
para casa, em meus sonhos,
volto para a Patagônia, onde
o vento bate nos estábulos
e respinga e gela o oceano.

Não sou mais que um poeta: amo todos vós,
ando errante pelo mundo que amo:
em minha pátria encarceram mineiros
e os soldados mandam nos juízes.

Porém eu amo até as raízes
de meu pequeno país frio.

Se tivesse que morrer mil vezes
lá quero morrer:
se tivesse de nascer mil vezes
lá quero nascer,
perto da araucária selvagem,
do vendaval do vento sul,
dos sinos recém-comprados.

Que ninguém pense em mim.

Pensemos na terra toda,
batendo com amor na mesa.

Não quero que volte o sangue
a empapar o pão, os feijões,
a música: quero que venha
comigo, o mineiro, a menina,
o advogado, o marinheiro,
o fabricante de bonecas,
que entremos no cinema e saiamos
para beber o vinho mais rubro.


Não venho para resolver nada.


Vim aqui para cantar
e para que cantes comigo.