O miúdo e o cão
Havia um miúdinho,
sem nome nem passado,
nu, esquecidinho,
andava pela rua,
escaldante de tão gelada,
como sombra crua e nua.
Tinha um corpo em trevas
feito de cortes e pedras.
Quase parecia ter sido mastigado
sem dó nem piedade pelas calçadas com dentes da cidade,
era um pobre coitado.
Era seguido sempre
por um cão magro,
sofrido e largado.
Igual à ele.
O cão não ladrava,
muito menos cantava,
era inútil.
O miúdo, por sua vez,
também nada sabia,
nada lhe ensinaram.
Era imbecil,
imprestável,
invisível ao mundo.
Ambos só serviam um ao outro,
a ninguém mais.
Sentavam-se no pedregulho duro
à espera de um fim já impuro.
O miúdo, paciente,
para tentar ser eficiente,
esperou que o cão partisse,
para então poder matá-la —
a fome.
O cão, por sua vez,
até aprendera a contar até dez,
de tanto esperar que o miúdo,
vermelho de tão imundo,
fechasse os olhos
e dormisse de vez.
Assim, ele saciaria a fome
com lógica cruel,
mas destino cego.
Certo momento...
o miúdo, já derrotado,
deitou-se no granito
para poder descansar o seu corpo cansado,
o cão, desesperado,
cravou os seus dentes podres
no peito nu do miúdo,
com dó e piedade,
pois isso ainda lhe restava.
Mas morreu também,
porque o miúdo,
coitado,
não tinha carne sequer
para alimentar um cão.