Michel Gailard

Sou um apaixonado por Literatura brasileira.

1957-08-09 Lion - França
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Alguns Poemas

ABRAÇOS



Àquela hora da manhã a igreja estava praticamente vazia. Apenas alguns fiéis, lá adiante junto ao altar, silenciosamente faziam suas costumeiras orações.

Sentei-me em um dos últimos bancos e pus-me, à minha maneira, a conversar com Deus.

De repente vi que por uma das portas laterais do templo acabara de entrar uma jovem senhora. Pela aparência, percebi que se tratava de uma mulher de pouco mais de trinta anos. Estranhei quando ela se aproximou de uma pessoa sentada junto à porta e deu-lhe um abraço demorado. Por certo a recém-chegada havia encontrado ali alguém de seu conhecimento, provavelmente uma amiga que não via há muito tempo.

Não dei atenção ao que estava acontecendo. Apenas baixei os olhos e voltei ao meu monólogo com o "Dono da casa".

Entretanto, movido por uma curiosidade quase instintiva, tornei a olhar para a frente e me deparei com a mesma mulher abrindo os braços para abraçar outra pessoa, desta vez um homem já idoso, acompanhado provavelmente pela esposa. Em segundos os dois haviam sido abraçados, e a partir dali outros tantos receberam aquele mesmo gesto de carinho.

Por alguns instantes imaginei que por certo aquela mulher seria uma das pessoas responsáveis pelos cuidados da igreja. E por isso mesmo deveria conhecer todos aqueles aos quais dispensava tamanha cortesia e afeição.

Todavia, ao ver que aquele gesto se repetia com quase todos ali presentes, por um momento imaginei tratar-se de uma pessoa com problemas psíquicos. Afinal, somente uma louca se predisporia a abraçar tantos quantos encontrasse pela frente.

Tentei voltar ao que anteriormente fazia, mas não consegui por perceber que a mulher seguia naquele momento em minha direção. Olhei à minha volta tentando encontrar alguém que pudesse ser o seu próximo alvo. Ali, nos últimos bancos da igreja, não havia pessoa alguma além de mim.

Por um momento pensei em deixar aquele lugar, mas não houve tempo. Como num passe de mágica a mulher se postou diante de mim. Tinha já os braços abertos e um sorriso que deitou por terra todas as minhas supostas pretensões de ir embora.

Percebi então que não havia como escapar do que estava por vir. Pus-me de pé e deixei-me também abraçar como tantas outras pessoas assim o fizeram.

Aquele abraço, afetuoso, livre de qualquer interesse, expressão máxima de um amor profundo por outro ser humano, remeteu-me a tantos abraços que não tive oportunidade de dar ou receber.

De imediato lembrei-me do dia da partida de meu amado filho. Ia embora de casa o meu menino.

Abracei-o na porta e fiquei por alguns instantes agarrado a ele. Queria alongar aquele abraço até fazer com que ele perdesse o horário de tomar o ônibus... e não partisse. Claro que no dia seguinte ele seguiria o seu destino.

Entretanto, teria valido a pena. Pelo menos mais um dia eu seria feliz junto dele.

Ainda nos braços daquela mulher, pessoa que por certo nunca mais veria, ouvi as seguintes palavras:

- Para mim esta é a melhor hora do dia.

Mas afinal o que queria dizer ela com aquela frase?

Só depois de ter deixado aquele lugar, pude compreender ao que ela estava se referindo.

A melhor hora do dia será sempre aquela quando abrimos os nossos braços e aproximamos os nossos corações uns dos outros.







POESIA: A ARTE DE REVELAR O MUNDO

A poesia tem uma estreita relação com a arte e, essencialmente com a beleza. Ela é, em si, a síntese de todas as demais manifestações de ordem estética ou comunicativa. Sem ela de que nos serviria a pintura, a escultura, a música, a dança...?
O texto poético é, por isso mesmo, revelação de sentimento que vem da alma, é inspiração e o resultado de uma visão única do mundo. O poeta é o grande mestre das artes. É ele que nos apresenta o universo como definitivamente se descortina diante dos nossos olhos, mas que nem sempre temos a sensibilidade para percebê-lo.
Martin Heidegger, filósofo alemão, dizia que os filósofos são os "pastores do ser".
Mas e os poetas?
Segundo H. Peterson, os poetas são os "pastores das palavras". São os poetas que velam por elas, que as assistem quando se ferem, indo em busca delas quando se perdem, conhecendo-as por nome e principalmente pelas imagens que simbolizam.
Seus textos ampliam o nosso mundo, dão formas diversas às coisas, assim como novas e surpreendentes matizes às cores. E em um cotidiano tão apressado como este em que vivemos, a poesia diminui o nosso ritmo e o ritmo do mundo.
Não podemos ler um poema celeremente. Se assim o fizermos, a poesia não tocará profundamente os nossos corações e nossas almas como se espera.
Diferentemente da prosa que enche a página com palavras, os poemas têm espaços em branco, o que significa que o silêncio tem o seu lugar ao lado do som como algo significativo, essencial à apreensão dessas palavras.
E o silêncio não se apercebe na celeridade do tempo nem das ações. Portanto, não podemos mesmo ter pressa ao ler um poema. Precisamos observar as conexões, sentir a cadência, ouvir as ressonâncias.
Os poemas precisam ser lidos, relidos e relidos...
Li centenas de vezes o poema "Carta", de Drummond de Andrade. São apenas três estrofes, quatorze versos, mas um mundo inteiro de sentimentos coube ali dentro.
É preciso que nos sentemos diante de um poema da mesma maneira que nos sentamos diante de uma flor, do mar que se quebra na praia, ou de um ocaso de colorido impressionante. Dessa forma, a poesia contribui para explorar o real e o imaginário, permitindo transformações naquilo que aparentemente é real.
A poesia nada mais é, portanto, que o retrato da nossa imaginação, da nossa autenticidade, beleza e emoção.
Não são poucas as vezes que o poeta necessita ser pessimista na razão para ser otimista na ação.
Ao longo da história as ações humanas passaram, passam e sempre passarão pela poesia, pois esta é simplesmente a mais livre de todas as liberdades.
Ao longo do tempo a poesia jamais se abateu diante do obscurantismo, do terror ou silêncio impostos.

A COSTUREIRA






Acordei em meio à escuridão.

Estranho como são estas coisas de se acordar no meio da noite. Não sabemos onde estamos nem temos a menor noção de tempo e espaço.

Entretanto bastaram apenas alguns segundos para que eu tivesse certeza de que estava em minha casa.

De onde estava podia ouvir nitidamente o pedalar interminável de minha mãe na máquina de costura.

Aquela era a sua vida, seu dia a dia - e noite -, seu ganha pão.

Levantei-me em silêncio.

Precisava beber um pouco d'água. Tateando aqui e ali segui em direção à cozinha. Não queria acender nenhuma lâmpada, para não tirar a atenção de mamãe de seu trabalho.

- Volte para a cama. Preciso entregar esta roupa amanhã antes do almoço - teria me dito se ela me visse ali àquela hora.

Curiosamente naquela época, quando era ainda menina, os relógios não nos faziam falta. Todo o tempo era marcado ou regido pelos momentos das refeições: antes ou depois do almoço, antes ou depois da janta...

Em poucos segundos consegui chegar à cozinha, alcancei o filtro e em seguida saciei a minha sede. Por um instante imaginei que se um dia me faltasse a visão, conseguiria me virar sem grandes dificuldades. Pelo menos dentro de minha casa.

Pé ante pé estava voltando, quando percebi que o som da máquina de costura havia cessado.

Mamãe provavelmente já havia dado por finalizada aquela jornada de trabalho. Jornada esta que começara antes das seis da manhã, seguindo dia afora, invadindo a noite... e a madrugada.

Instintivamente procurei acelerar os passos. Melhor não ser vista, nem percebida.

Entretanto, logo ouvi as pedaladas recomeçarem.

Provavelmente alguma costura que não havia ficado a gosto e estava sendo refeita.

A minúscula sala de costura, onde trabalha eternamente a minha mãe, ficava em um cômodo contíguo à cozinha.

Parei por um instante e fiquei ali escutando aquele barulho ritmado, interminável, e que me era deste ainda bebê, muito familiar.

Mergulhada ainda na escuridão, fui até a porta do quartinho de costura.

A porta estava entreaberta e lá de dentro o que vinha, além do som da máquina de costura, era um fiapo de luz.

"Como era possível se enxergar direito alguma coisa com tão pouca claridade?", pensei.

É que as lâmpadas de nossa casa naquela época, todas pendentes do travejamento de madeira, eram amarelas como laranjas maduras.

Mas minha mãe enxergava, sabe-se lá Deus como.

Pela fresta da porta pude ver mamãe quase debruçada sobre a máquina, com os olhos grudados na peça de pano que corria velozmente sendo perfurada centenas, milhares de vezes pela agulha em apenas alguns segundos.

- Se sobrar uns retalhos bonitos deste vestido que estou fazendo, qualquer hora lhe faço um saia - anunciou mamãe certo dia.

Saia!

Aquele era um dos meus sonhos de menina já com quase cinco anos: vestir uma saia.

Mas os tais retalhos bonitos nunca sobravam e o meu sonho de menina ia sendo adiado.

Torcia para que alguma das clientes de minha mãe errasse algum dia o tamanho do tecido comprado e viessem pelo menos alguns centímetros a mais.

Quase nunca vinham. Mas quando isso acontecia, mamãe devolvia às clientes as sobras do pano.

Raras não foram as vezes que eu, ao ajudá-la a varrer o quartinho de costura, media com minha mão minúscula os tamanhos dos retalhos espalhados pelo chão.

Todos muito pequenos. Entretanto, muitos deles serviam para confeccionarmos roupinhas para nossas bonecas.

Outros, talvez servissem para uma saia a ser usada nas festas juninas. Esta sim, poderia ser feita de retalhos tão pequenos quanto aqueles que acabavam indo para o lixo.

Mas mamãe guardava muitos deles, sonhando fazer algum dia uma colcha de retalhos para sua cama. Coisa que jamais aconteceu.

De repente o som da máquina cessou novamente.

Pensei em sair dali, mas já era tarde.

Mamãe voltou-se para a porta e perguntou:

- É você, minha filha?

Empurrei a porta em entrei.

- Não deveria estar na cama? O dia já está quase amanhecendo.

Tive vontade de lhe fazer a mesma pergunta, mas me contive.

- Venha ver o que estou fazendo - convidou mamãe abrindo sobre uma mesinha ao lado da máquina um vestido vermelho.

Ao me aproximar da peça de roupa, percebi logo se tratar de um traje para alguma criança.

- Muito lindo, mamãe.

Por um instante a curiosidade impulsionou-se a indagar quem seria a dona daquele magnífico vestido.

Não perguntei nada.

Afinal, na tarde do dia anterior havia visto Dona Esmeralda entregar à mamãe um embrulho. Ali dentro por certo estaria o tecido que dera origem àquela verdadeira obra de arte.

Lembro-me de que na hora de sua saída de nossa casa, a velha amiga de minha mãe olhou para mim, que brincava no chão da sala, e sorriu de forma secreta.

Por certo aquele vestido que estava ali naquele momento diante de mim era roupa para sua neta. Roupa a qual seria usada em sua festa de aniversário, o qual seria comemorado no domingo seguinte.

Não me contive e passei a mão por sobre a peça de roupa.

Seda!

Aquilo era o que de mais maravilhoso poderia acontecer com uma menina de minha idade: usar um vestido como aquele.

Nem as princesas personagens dos mais fantásticos contos de fadas teriam algo sequer parecido.

Por um momento fiquei a imaginar quem seriam as costureiras dos vestidos daquelas princesas dos livros.

Seriam elas suas mães?!

Bobagem! Onde já se viu mãe de princesa ser costureira?

Nenhuma mãe, em todo o mundo, e nem em todos os reinos, mesmo que fossem encantados, teriam competência para costurar um vestido tão lindo quanto aquele.

De repente senti uma ponta de inveja de Madalena, a neta da cliente de minha mãe, aquela que estivera em nossa casa no dia anterior.

Definitivamente aquilo não era uma "ponta de inveja". Era uma inveja imensa, do tamanho do mundo.

"Cuidado, minha filha, que inveja é pecado, e dos grandes, viu!"

Aquelas eram as palavras de minha mãe que sequer foram pronunciadas, mas que foram por mim ouvidas em tom de repreensão.

- Venha aqui - pediu mamãe voltando-se para mim e preparando o seu colo para que eu nele me aconchegasse.

- É muito lindo! - disse eu num quase sussurro.

- Também achei muito bonito - comentou mamãe, aparentemente alheia ao meu sofrimento naquela hora.

- É da Madalena?

- Sim. Ela vai vir amanhã lá pelas nove horas para fazer a prova.

- Acho que serviria para mim - disse com uma voz quase inaudível.

- Quer experimentar?

- Não, mamãe. O vestido é da Madalena.

- O que tem isso? Quem vai contar para ela que você o experimentou? Eu não vou - disse mamãe com um largo sorriso.

- Mas isto não é certo - comentei ávida para que minha mãe insistisse em seu intento.

Mamãe fez uma cara de descontentamento e completou:

- Então deixa para lá. Se você acha que não é certo...

- Vamos lá! - exclamei já saltando de seu colo já com os braços erguidos, me preparando para que mamãe me tirasse a camisola.

O vestido caiu como uma luva!

Lindo, perfeito, admiravelmente bem feito. Se tivesse sido feito sob medida para mim, talvez não tivesse ficado tão bem ajustado no corpo.

Dei diante de minha mãe duas voltas sobre os calcanhares, fui até a porta e voltei caminhando como se estivesse desfilando em uma passarela, daquelas que às vezes eu via na televisão.

Pude ver por alguns instantes o cansaço daquela mulher, acumulado por anos a fio, indo embora. Seu semblante ficou radiante e ela sorriu como poucas vezes eu havia visto.

Acho que mamãe viu naquela hora diante dela uma princesa de verdade. Descobri então que eu era a melhor parte de sua vida, de seu mundo tão pequeno, mundo este restrito quase que exclusivamente àquela casa e àquele trabalho.

E eu na minha pequenez e inocência descobri naquele momento que as costureiras são como os mágicos tão frequentes nos livros que ela lia para mim quase sempre quando tinha tempo. Elas tomam nas mãos um simples pedaço de pano e fabricam com ele um amontoado de coisa belas, de sonhos.

Minha mãe em seguida ajudou-me a tirar o vestido, ajudou-me a vestir de novo a camisola. Ainda com um aspecto radiante, tomou-me pela mão e levou-me para a cama.

- Agora precisa dormir. Amanhã vai ser um longo dia.

Coisas de minha mãe. Onde já se viu um dia ser mais longo que outro?

Somente anos mais tarde pude compreender que aquela era uma das grandes verdades da vida.



***



No dia seguinte, por volta das nove horas, chegaram em nossa casa a Dona Esmeralda e sua neta Madalena.

Foram buscar a roupa que mamãe passara boa parte da noite costurando.

A pequena Madalena nunca fora minha amiga, uma vez que morava a certa distância de nossa casa. Eu a via somente em companhia de sua avó. E isto quando apareciam as duas lá em casa para levar algum tecido para que mamãe lhe fizesse alguma roupa.

Quando eu era criança, meus amigos estavam nas proximidades de nossa casa ou eram meus primos.

Entraram as duas e eu fiquei no alpendre brincando com uma boneca "dorminhoca" de cor vermelha. Aquela boneca pertencia à minha irmã mais velha. Mas, sempre que possível, eu a pegava escondido.

Depois de alguns minutos, ouvi o chamado de minha mãe:

- Venha cá, minha filha!

Ao entrar na sala logo vi Madalena com um pequeno embrulho não mãos.

- Sei que não somos amigas, mas mesmo assim vim lhe convidar para o meu aniversário no domingo.

- Posso ir, mamãe? - indaguei certa de que teria tal consentimento.

- E este é um presente que mandamos fazer para você - falou a menina, entregando-me o pacote.

Trêmula, tomei nas mãos o que havia ganhado.

Mal comecei a desembrulhar o pacote, e vi o vestido que mamãe havia costurado na noite passada.

Em menos de dois dias eu seria verdadeiramente uma princesa.

O QUE ENXERGA A NOSSA MENTE

Dois homens, ambos gravemente doentes, estavam no mesmo quarto de um hospital. Um deles podia sentar-se na sua cama durante uma hora, todas manhãs para que os fluidos circulassem nos seus pulmões.

Sua cama ficava junto à única janela que havia naquele ambiente. O outro não tinha tal privilégio: sua cama estava a mais de cinco metros daquela abertura na parede.

Sem terem outra coisa para se fazer, os homens conversavam por horas a fio.

Falavam das suas mulheres e famílias, das suas casas, dos seus empregos, onde tinham passado as férias...

E todos os dias, quando o homem da cama perto da janela se sentava, ele passava algum tempo descrevendo para o seu companheiro de quarto todas as coisas que ele conseguia ver no mundo lá fora.

O homem da cama do lado começou, a partir de então, a viver à espera desses momentos, quando seu mundo era alargado e animado por toda a atividade e cor do mundo visto pelo companheiro de infortúnio.

Segundo o narrador das belezas externas, dali era possível ver um lindo lago com uma gigantesca montanha ao fundo. Patos e cisnes chapinhavam na água enquanto as crianças brincavam com os seus barquinhos. Jovens namorados caminhavam de braços dados por entre os canteiros de flores de todas as cores do arco-íris. Árvores centenárias e gigantescas acariciavam a paisagem, e uma tênue vista da silhueta da cidade podia ser vista no horizonte, à direita das altas montanhas.

E as flores!

Ah, como eram lindas todas elas!!

Duas vezes por semana, defronte daquela janela, alguns vendedores de flores se reuniam numa espécie de feira.

Rosas, violetas, orquídeas... Orquídeas, centenas delas. Todas de um colorido até difícil de se descrever.

Entretanto, o homem da cama próxima à janela, com uma maestria própria dos grandes pintores, fazia aquilo com uma precisão e generosidade incomuns.

E enquanto ele descrevia aquilo tudo com riqueza de detalhes, o homem no outro lado do quarto fechava os seus olhos e imaginava a pitoresca cena.

Certo dia foi a vez de ser descrito um grande desfile em comemoração ao aniversário da cidade. A multidão multicolorida passou defronte ao hospital, dando ainda mais vida a tudo lá fora.

Embora o outro homem não conseguisse ouvir a banda, o que lhe pareceu estranho em princípio, ele conseguiu vê-la e ouvi-la em sua mente, enquanto o outro paciente a retratava por meio de palavras essencialmente descritivas.



***

Dias e semanas se passaram.

Certa manhã, a enfermeira chegou ao quanto dos dois enfermos trazendo água para o banho. Ao entrar encontrou o corpo sem vida do homem que ficava perto da janela.

Ele havia falecido calmamente enquanto dormia.

A enfermeira, muito triste, chamou os funcionários do hospital para que levassem embora o corpo do desafortunado.

Logo que lhe pareceu apropriado, o homem que havia continuado vivo perguntou se podia ser colocado na cama perto da janela.

A enfermeira disse logo que sim, e ele para lá se mudou de imediato.

Depois de se certificar de que o homem estava bem instalado, a enfermeira deixou o quarto.

Lentamente, e ainda cheio de dores, o homem ergueu-se, apoiado nos cotovelos, com o objetivo de contemplar o mundo lá fora. Para isto fez um esforço sobre-humano para olhar para o lado de fora da janela.

Grande foi sua surpresa ao descobrir que do outro lado da abertura pela qual olhava, nada havia, além de uma imensa parede de tijolos.

Desolado, o homem chamou de volta a enfermeira e indagou quando aquele "muro" havia sido erguido ali.

A funcionária do hospital contou-lhe então que ele fora construído há mais de dez anos.

Desolado com a informação, o homem questionou então sobre os motivos que levara o falecido a descrever coisas tão maravilhosas do lado de fora da janela.

A enfermeira, estupefata, respondeu que não fazia a menor ideia do que seu interlocutor estava falando. Isto porque o homem que fora seu companheiro de quarto era cego.

LEMBRANÇAS




Empurrei a porta da biblioteca como jamais havia feito: lentamente.

Ouvi como nunca havia ouvido o ranger das dobradiças. Rangeu o metal como rangera por toda a vida a voz áspera de meu pai.

- Carlos, coloque óleo singer nesta coisa que ela para de cantar - dizia minha mãe sempre que abria o portão de entrada da casa.

Eu ia lá e resolvia a cantoria dos ferros do portão. E imaginava, na minha inocência de menino, a possiblidade de amaciar também a voz estridente e pesada de meu pai com óleo singer.

Dali mesmo, do limiar da porta, corri os olhos pela prateleira de livros. Todos impecavelmente dispostos por ordem alfabética. Alguns estavam ali há décadas, desde muito antes de eu nascer. Olhei para o Dom Quixote. Sempre tive curiosidade em saber quem era aquele personagem, mas principalmente quem era o seu criador.

Cervantes!

Aquela era uma obra em que a criatura superou em muito o criador.

Mas eternizaram-se os dois.

Escancarei a porta e entrei.

Por um momento escutei a voz inconfundível do meu pai.

- Preciso ir ao banheiro!

Aquela voz sem nenhuma maciez castigou meus ouvidos por longos e longos anos. Era uma voz que desejei, durante um bom tempo, que fosse calada.

- Preciso ir ao banheiro!!! - gritava meu pai sem saber ao certo se alguém o estava ouvindo.

Mas com frequência ele era ouvido. Principalmente por mim, que quase sempre estava no quarto ao lado, mergulhado nos livros, ou nas lições da escola.

Mesmo ouvindo-o, fingia que não. Esperava que minha mãe ou dona Lucinha fosse socorrê-lo.

Eram duas velhas cuidando de um velho que, sozinho, já não ia a lugar nenhum.

Dei alguns passos adiante e me detive mais uma vez: estava diante da poltrona na qual meu pai esteve sentado por longas hora diariamente nos últimos anos.

Institivamente toquei com meus dedos o couro escurecido pelo tempo.

Era a primeira vez em toda a minha vida que entrava naquele cômodo da casa, sem que ali estivesse o espectro de meu pai.

O seu fantasma havia partido, entretanto, aquele lugar estava carregado de sua presença.

Tomei a liberdade de me sentar. Confortável aquele banco. Nunca havia me sentado ali.

Voltei a olhar uma das prateleiras à minha frente. Ali estavam Machado, Jorge Amado, Graciliano, Thomas Mann, Steinbeck...

Livros, livros, livros...

Naquelas estantes, irretocavelmente organizadas, estava um mundo inteiro, sua história, suas pessoas, seus lugares mais distantes.

Meu pai havia, ao longo de toda uma vida, guardado tudo aquilo nas estantes e em sua cabeça.

Nunca havia parado para pensar naquilo, nem tampouco na grandiosidade daquele homem.

Imediatamente senti uma saudade indescritível dele.

Definitivamente sua ausência estava me machucando de uma forma avassaladora.

Pus-me de pé e virei-me para a porta de entrada da biblioteca. Diante de mim estava meu pai com os braços abertos para um aconchego que nunca havia existido.

Fechei os olhos e esperei pelo seu abraço.

Foi uma eternidade aquela espera.

Ao abrir os olhos, avistei pela abertura da porta dona Lucinha com um espanador na mão.

Vinha ela tirar o pó das estantes e varrer para longe as minhas lembranças.

NÃO MATARÁS

- E como vão indo as coisas em casa? - procurou saber o médico Cláudio Alencar enquanto preenchia o receituário.

- Sem novidades. A mesma peleja de sempre. Aquela infeliz de minha sogra vai acabar me matando um dia desses.

- Interessante - comentou o médico entregando à Catarina a receita.

- O que é interessante?

- Como a maioria das pessoas não se dão bem com sogras. Isto parece até ser...

O médico não teve tempo de terminar a frase e foi interrompido pela paciente:

- Se houvesse um jeito de dar fim naquela infeliz...

- Ora, Mariângela, eu a conheço desde os tempos do ginásio e sei perfeitamente que não teria coragem de fazer uma coisa dessas - disse seu interlocutor com um discreto sorriso.

- Este negócio de coragem é muito relativo. Já vi gente fazendo o impensável. Tudo depende da situação a que certas pessoas são expostas. Um ameaça, por exemplo...

- É, mas este não é o caso pelo que sei. Não acredito que a mãe do Fernando venha te importunando de tal forma que esteja pensando em matá-la.

- Olha, vou lhe dizer uma coisa: se pudesse dar um jeito nela sem que ninguém descobrisse que fui eu, esteja certo de que faria isto. E sem nenhum remorso ou peso na consciência.

- É mesmo verdade isto que está dizendo? - indagou o médico, naquele instante já mostrando-se visivelmente preocupado com o que estava ouvindo.

Seria mesmo sua velha amiga capaz de algo daquela natureza? Afinal estava ela falando, e com certo grau de seriedade, em tirar a vida de alguém.

Por um momento lembrou-se das palavras ouvidas instantes atrás: "Tudo depende da situação a que certas pessoas são expostas."

E estaria ela de fato exposta a situações tão desesperadoras assim?

- Esqueça o que acabou de ouvir, meu amigo. Foi apenas um desabafo. No fundo acho que não teria coragem para tal coisa. Além do mais, matar pode até ser fácil; difícil é sair impune depois. Mas que eu tenho, às vezes, vontade, eu tenho - reafirmou a paciente.

De repente o médico, disse-lhe algo que a deixou atônita.

- E se eu lhe dissesse que eu sei um jeito de você se "desfazer" dela sem deixar nenhum vestígio?

- De que está falando? Me desculpe. Eu só...

- Não precisa se desculpar. Acho que sei como são esses ódios que nós guardamos ao longo de toda a vida. Chega um ponto em que...

- Está ficando tarde - argumentou Mariângela, pondo-se de pé e pronta para deixar o consultório. Naquele momento era ela que estava achando muito estranho os rumos que a conversa estava tomando.

- Minha amiga, sente-se.

- É verdade. Preciso mesmo ir.

- Sente-se, por favor. Nossa conversa ainda não terminou.

Meio a contragosto, a paciente voltou a se sentar.

De imediato o médico abriu uma das gavetas de sua mesa e de lá retirou um frasco cheio de cápsulas.

- O que é isto? - questionou a paciente com os olhos arregalados.

Sem demonstrar qualquer tipo de constrangimento, o médico disse em voz baixa, como se tentasse não ser ouvido por mais ninguém além de Mariângela:

- Veneno.

- O quê !! Ficou louco, doutor Cláudio !!

- Ora, não quer dar cabo da mulher? Com isto aqui jamais alguém irá descobrir a causa da morte dela.

Já refeita do susto, a moça arriscou:

- E por que tem tanta certeza disso?

- Esqueceu-se de que além de médico, sou químico?

Mariângela fechou os olhos por alguns instantes. Estava tentando absorver a ideia de definitivamente...

- Mudei de ideia - disse ela em tom decidido, pondo-se novamente pé.

- Muito bem. Entretanto, vou lhe dar as cápsulas. Ela deve tomar uma a cada semana. Pode desmanchar na comida que ela não vai nem sentir o gosto. Se mudar de ideia, elas já estarão contigo. Só lhe faço uma recomendação se decidir colocar o plano em ação.

- E qual seria?

- Comece a tratar muito bem a sua sogra. Não pode levantar qualquer suspeita ao longo do tempo em que ela estiver tomando este "medicamento". Não lhe poupe atenção, carinho nem afeição. Precisará fazer isto por apenas seis meses dias. Outra coisa: ela não apresentará qualquer reação ao veneno durante este tempo. Mas esteja certa de que ao final deste período ela já não estará mais por aqui.

Mariângela ouviu aquelas últimas palavras ainda estupefata.



***

Cerca quinze dias depois lá estava ela no consultório do doutor Cláudio.

- Dei início ao tratamento - informou ela quase num desabafo.

- Muito bem. Foi dada a largada - riu o médio. - Agora lembre-se do que lhe falei: trate-a como se a amasse profundamente. Procure, inclusive, mostrar sempre ao seu marido este seu novo "lado" angelical.

Foi-se Mariângela e dela não se ouviu mais falar por quase quatro meses até que ela reapareceu no consultório, com ares de grande preocupação.

- Meu Deus, minha amiga! Você está bem?

- Não. Estou muito mal, e é por isto que vim lhe falar.

- Do que se trata, afinal?

- Vim lhe falar para me ajudar a reverter o caso. Mudei de ideia com relação à minha sogra.

- Mudou de ideia?! De que está falando? Já se foram mais de cem dias de "tratamento". Agora não tem mais jeito. Estamos já na reta final.

- Pelo amor de Deus. Você tem que me ajudar. Eu não a quero morta de jeito nenhum.

- E por que não?

- Descobri nestes meses que ela em verdade é uma pessoa maravilhosa. Santo Deus, como estou arrependida de tudo que fiz a ela ao longo de todos estes anos. Somente agora quando comecei a tratá-la bem, dando-lhe carinho e atenção é que pude perceber a pessoa fantástica que é ela.

Naquele momento o doutor Cláudio, abraçou Mariângela longamente e disse-lhe ao ouvido:

- O que você deu a ela foi placebo. Espero que tire disto tudo uma lição, por menor que seja: se tratarmos alguém com amor incondicional, certamente descobriremos o quão maravilhosa esta pessoa pode ser.

-
anjodanoite
Sua forma de expressão é de encher os olhos e me agrada.
06/junho/2018

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