Alguns Poemas

Hamilton


Hamilton



Hamilton gostava de ver a luz do sol passar pelas frestas da janela e fazer desenhos sem tela. Logo estaria acompanhando os colegas de escola que seguiam por sua rua e ouviria os comentários, quase sempre sobre futebol, assunto que ele não entendia e se admirava que alguém de sua idade entendesse. Os colegas iam com o pai ou a mãe, mas, Hamilton ia sozinho. A escola era próxima à sua casa.


Naquela manhã, um embolado de alunos se formou no pátio da escola, fugindo à rotina das filas. Parecia festa tamanha a algazarra, e ninguém sabia explicar o que acontecia. Hamilton evitou um grupo de meninas que conversava um pouco à frente e lançava olhares divertidos para ele. Sabia bem o significado: ainda ontem, durante o recreio, foi surpreendido por risinhos vindos delas até apontarem para sua calça exibindo uma abertura suficiente para deixar à mostra seu pintinho bem filhote. Envergonhado, nem contou o acontecido para a... mãe (não se habituara totalmente ao novo significado da palavra) para não escutar as advertências diárias por se recusar a usar cueca.


O diretor da escola, acompanhado dos professores, apareceu com uma expressão mais séria que o habitual. Após trocarem comentários, ele ergueu a mão e com pedidos insistentes conseguiu atrair a atenção de todos. Foi breve: naquele dia não haveria aula devido a morte de uma antiga professora que marcou a história da escola e a formação de várias gerações. Aos alunos, recomendou uma homenagem àquela senhora e bom comportamento.


Hamilton seguiu para casa feliz e, sem remorso por isso, tinha o dia todo para aproveitar. Era certo um sentimento seu de resistência aos mortos; por causa deles, não comemorava direito seu aniversário. Tinha nascido, veja só, no dia da partida de outros, motivo para falas baixas e visitas a cemitérios com flores. Para completar sua relutância, tinha um medo religioso da morte desde o dia em que presenciou algumas pessoas, juntamente com o pai, confusos e perplexos e, agora, misturados a imagens fugazes guardadas de sua mãe.


Em casa, de pés no chão, correu logo para o quintal onde tinha seu caminhão vermelho. Sempre com trabalho a fazer em uma estrada cheia de curvas onde somente um motorista habilidoso como ele poderia guiar. Eram assim os seus dias. Seu pai brincava quando tinha folga ou não estava recolhido no quarto tomado por dor de cabeça. Algumas vezes, Hamilton abria a porta do quarto do pai cheio de intensa alegria e se deparava com um lusco-fusco cobrindo um corpo longo, silencioso e velho.


A manhã estava calma até Tonhão Bigode, o primo quatro anos mais velho, rebelde e criado nas ruas, chegar falando alto. Antônio era maior que os meninos de sua idade e tinhas braços longos e esquisitos; para completar, uma mancha fazia sombra sob o nariz causando a impressão de bigode formado.

__ Vai lá ver a morta?__ perguntou Tonhão.


__Não sei. __respondeu com os olhos concentrados na manobra que fazia. Chegou a se deitar todo, deixando o rosto marcado por pedrinhas e pó. Mudou, rispidamente, a marcha do caminhão com um raspado forte na garganta.


__Eu, não. Nem ligo. Nunca vi e nem é parente. Você não vai, eu sei. Tem medo. Medroso e bobão!
__ abriu uma risada indecente.


Hamilton continuou calado aguardando o que o primo faria a seguir. Uma chuva de pingos grossos, como previra, começou pela estrada fazendo letras gregas, lavou o caminhão para, em seguida, acertar sua cabeça. Tonhão Bigode fazia agora o que mais agradava: marcava seu território com um mijo grosso e cheiro forte atingindo quem estivesse próximo. Enquanto isso ria seu riso debochado, mais ainda ao colocar o primo para correr e pedir ajuda ao escuro de debaixo da cama do pai onde ficava até quase dormir. Na sala, o cuco avisava a proximidade do almoço.


Aquela conversa fez voltar aos pensamentos de Hamilton a recomendação do diretor e deu-se conta do sentimento estranho que o incomodava naquela manhã. Imagens vagas causavam uma mistura de dor e medo. Sentia saudades. Esse mal estar passageiro e impreciso roubava sua paz e o levava a se lembrar da morta; da morta, não, por não conhecê-la, mas, do encontro com ela cuja aparência imaginava ser assustadora e, ao mesmo tempo, conhecida. Sentia, no entanto, um desejo cada vez mais forte de enfrentar esse medo. Seu primo chamando-o de bobo, a ausência de seu pai, sempre ocupado para socorrê-lo, os cuidados quase exclusivos da...mãe, com Clara,sua meia-irmã, e o risinho doce e amargo das meninas, cozinhavam uma raiva de intensidade crescente e resultado imprevisível.


Pela hora do almoço, receberam a visita de um tio materno que poucas vezes viam e estava ali por causa da professora. Logo na entrada, colocou uma nota de cinco entre os dedos de Hamilton. Era seu padrinho por algum motivo e se sentia na obrigação desse carinho.


Seguiam todos em direção à cozinha quando Tonhão, que vira tudo pela janela da sala, puxou pela camisa e exigiu de Hamilton a entrega do presente. _ "Vai passando o que tá na mão" _ foram as palavras rudes ditas enquanto prensava o corpo miúdo e sujo de terra. Hamilton ficou surpreso ao descobrir a presença do primo e, sem saber o que fazer colocou os braços nas costas dizendo não ter nada nelas.


_Eu vi seu bobão; acha que me engana ou sou bobo como você? __Tonhão Bigode prensou mais um pouco.


Hamilton estava prestes a desabar em choro, mas, os sentimentos de infelicidade percebidos o encheram de coragem. Passou a mão fechada sobre os olhos e disse, limpando o suor, para Tonhão agachar, fechar os olhos e abrir bem a boca. ­__ "É coisa de comer", __ falou, seguro. Tonhão, desconfiado, resmungou não precisar daquilo e era só entregar. Mas, não houve recuo. Hamilton só entregaria nessa condição ou nada feito, disse surpreso com tamanha ousadia. Foi ameaçado de receber uns tapas se fugisse sem entregar enquanto se acomodava sobre os calcanhares, olhos fechados, boca escancarada, aguardando o sabor desconhecido.


Paralisado pela cena, Hamilton quase perdeu o tempo certo da execução de sua inesperada vingança. Virou-se de costas e aproximou-se o suficiente do rosto do primo soltando uma curta saraivada de peidinhos. Afastou-se sem correr certo de receber o castigo prometido. Tonhão Bigode ficou menor, sem graça, com o rosto muito vermelho mal conseguiu gaguejar qualquer palavra. Saiu apressado olhando para o chão. Recebeu também de Hamilton seu quinhão diário.


O cuco cantou algumas horas sem que Hamilton desse atenção, e todo aquele sentimento de desconforto pela morte da professora reapareceu torcendo seu estômago; mas não durou muito; com naturalidade, seguiu rumo ao velório . Distraiu-se pelo caminho, chegando a esquecer o motivo de sua caminhada. Virou à esquerda e entrou pela rua que descia em curva, calçamento ruim e casas com recuos diversos. Do lado de fora havia muitas pessoas e observou, sem entender, que conversavam e riam apesar do motivo de estarem lá.


A casa era pequena, com uma porta simples pintada de um azul vencido e ladeada por duas janelas ao rés do chão, exibindo as rugas do tempo. A parede era branca nos locais onde ainda havia reboco. Várias áreas desnudas mostravam tijolos de diferentes amarelos, formando um triste mosaico. Hamilton observava tudo e não hesitou em entrar. Desviou-se por entre as pernas até conseguir chegar próximo à sala onde a professora estava. O interior não era muito diferente da fachada, com paredes cheias mofo em seus cantos e quadros de santas severas. Um homem de sorriso incompreensível, preso entre elas, acenava com a mão. Velas soltavam fumaças escuras e cheiros fortes e misturavam flores e pessoas. O ambiente era triste e foi reconhecido.


Perdido em suas observações ouvindo rezas e lamentos sussurrados em vozes distintas, sentiu súbito suas pernas tremerem e pesarem sob um medo percorrendo o corpo. Teve vontade de fugir, mas, dominado acalmou-se ao ver muitas pessoas ao seu lado.


O grito desafinado, como de animal agredido, arregalou-lhe os sentidos. O viúvo surgiu amparado, passos lentos e pesados e, entre silêncio e choro, soltava sua dor, indiferente a tantos olhares. Passou por Hamilton já quase chegando junto ao corpo da mulher onde gritou arrebatado: __ Estou sozinho! Tudo acabou!__Hamilton, desconcertado com as calças molhadas, passou rapidamente as mãos pelas suas.



Fora da casa e respirando ar fresco, longe do peso dos lamentos e das rezas, ficou satisfeito por ter se comportado bem e já não tinha medo. Era surpreendente a leveza sentida, com céu azul claro e um sol que começava a abrir mão de todo o seu fulgor proporcionando prazer egoísta de estar vivo. A cena vista foi marcante e libertadora para ele. Mas, muito melhor, lembrou-se, entre risos, é que ficara livre do Tonhão Bigode (Só anos mais tarde entenderia o primo Tonhão). Voltou para casa confiante e feliz; semana que chega vai ter festa; aniversário com os amigos.

Semente


Semente




Quando Clarice abriu o portão de casa, tinha os olhos vermelhos e uma aparência enjoada. Largou sobre o sofá a pequena bolsa e mal cumprimentou o pai, que se encontrava na sala descansando. Já no quarto, andava de um lado para o outro com expressão indefinida. Sobre uma cadeira, dois vestidos novos de debutante e caixinhas com brincos, anéis e maquiagem jaziam sem emoções. Com cuidado, abriu de leve a porta e manteve os ouvidos atentos na sala; o rosto contraiu-se ao perceber a ausência de um envelope no bolso da calça. Tirou-a e revirou cada um deles até o fundo. Passou a rodar pelo quarto em desespero e movia os lábios num monólogo ininterrupto. Em frente ao espelho do guarda-roupa deslizou, sem tocar, a mão sobre a barriga lisa e logo correu para o banheiro, cerrando a boca; bateu a porta com força inesperada e lá ficou por mais de meia hora.
Na sala, o pai voltou ao trabalho após os minutos de folga e marcou com giz azul o tecido macio que cortaria. Estava rodeado por pilhas de moldes que roubavam sua atenção e para cada pedido havia pequenos papéis cheios de números e desenhos. Na gaveta parcialmente aberta, junto a agulhas e tesouras, contas; muitas delas.
Estavam os dois, apenas; ele parecia não esperar pela chegada de mais ninguém, nem clientes. Ela, sim; mas não sabia quem. Ele traçava riscos retos e azuis; ela, contida, vomitava sem parar. O giz, pequeno, escapou e caiu sob a cadeira. Com cuidado, o alfaiate apoiou-se na beirada do sofá para pegá-lo, quando percebeu, na bolsa largada pela filha, uma folha amassada com um timbre conhecido. Puxou devagar, devagar.
Clarice lavou o rosto abundantemente e respirou fundo, três vezes; a última, mais demorada, ao colocar a mão na maçaneta da porta do banheiro e escancará-la com determinação. Seguiu a passos largos para o pai, mas, estacou ao vê-lo segurando o papel perdido com aquele número inesperado e, lentamente, se voltava para ela. Ficaram lá, parados, no meio da sala, com lágrimas que corriam soltas e não se misturavam. O pai curvou os ombros e parecia pender a cabeça de modo a perdê-la a qualquer momento. Sentou-se com dificuldade amassando ainda mais o papel.
Clarice, olhos fixos no chão, aproximou-se do sofá pelo lado oposto ao pai. Sozinhos ficaram cada um em seu canto, imóveis, sem voz, sem mediação. A noite ia longe, escura, fechada. Clarice, entre soluços, vomitava; o pai perdera a linha e a paz; falou com aparente apreensão por minutos. Um e, logo após, o outro, seguiu para o seu quarto e fecharam as portas com cuidado. O papel amassado e malfadado voltou ao chão e sob a cadeira escondeu, esquecido.

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